O POVO – Seu pai nasce em Garanhuns (PE) e sua mãe vem de família de Itapipoca (CE), que migrou para o Acre. Você, porém, nasceu no Rio de Janeiro e mora em São Paulo. Esses percursos te inspiraram a amar viagens?
Arthur Veríssimo – Eu me sinto um amálgama da história do Brasil.Uma mãe acreana, um pai pernambucano, nascido no Rio de Janeiro, e fui morar lá em Santo Amaro (SP), que é o bairro mais populoso de norte-nordestinos no Brasil. Para mim foi uma dádiva. E quando tinha 15, 16 anos, numa livraria, no lance do autodidatismo, eu descobri um guru indiano, que chamava BhagwanShreeRajneesh e depois mudou o nome pra Osho. Enlouqueci. A minha vida se desviou completamente. Minha mãe com todas as tradições ameríndias dela, papai católico, mas ao mesmo tempo com esses aspectos da cultura indígena brasileira, com o candomblé, da umbanda. Isso me deu todo esse estofo, toda essa capacidade do meu entendimento, no limite da minha ignorância, eu comecei a entender o mundo.
OP – Arthur, dizem que o brasileiro acaba conhecendo muito pouco do próprio País, mas você foge à regra. O que mudou no seu olhar por conhecer tanto assim o Brasil?
Artur – Em primeiro lugar, eu recomendo pra todo mundo conhecer. As pessoas têm que fazer uma reformulação nos seus corações, nas suas mentes e no comportamento. Por exemplo, eu falo de Amazônia pras pessoas e elas ficam apavoradas, porque o objetivo de quem dispõe de uma verba, de algum dinheiro, é ir conhecer Miami, ir conhecer Paris, ir conhecer Nova York, ou quiçá uma pessoa mais espiritualizada ir pra Índia. Eu sempre falo: gente, mergulhe no Brasil. As tradições, a espiritualidade que a gente tem aqui, no Centro-Oeste, no Sul, no Norte, Nordeste. Nós temos mais de 700 Áfricas por aqui. Os grupos indígenas que nós temos na região do Amazonas, do Pará, do Maranhão, aqui no Ceará, por todos esses recantos do Brasil. Então eu sempre recomendo, falo: “gente, abra sua mente, pega o bumba”, principalmente os jovens. Vai viajar de ônibus. Se você tem dinheiro, se você quiser ir de avião, mas só a experiência de ir parando em pontos aonde você perde toda essa noção do ego, do preconceito alheio. Isso tudo vai desmoronando ao longo dessas viagens, que você vê que o Brasil não é superfície, o Brasil é profundo.
OP – Uma situação dramática de seca como a do Cedro, em Quixadá, te assusta? O que mais te causa espanto numa viagem?
Arthur – É, realmente, o nosso coração fica transtornado. Principalmente com um açude como esse. Um lugar tão imenso, com esses monólitos de fundo... Eu havia visto em documentários, fotografias, esse açude aqui com a água coberta. Mas isso realmente é o momento em que a gente vive, essa passagem. Vinte anos, quinze anos atrás, falar sobre meio ambiente, falar de aquecimento global, falar sobre a desertificação da Amazônia, toda essa visão que nós temos... Eu tive a oportunidade de viajar pelos Andes, pela Bolívia. Eu fui numa estação de esqui chamada Chacaltaya, próxima à La Paz, a estação de esqui mais alta que existe no mundo. O local simplesmente só tinha uma língua de neve, então não dava mais para esquiar. Eu também tive a oportunidade de fazer voos no Himalaia, nas dez maiores do mundo. Pra você ter uma ideia, as oito maiores montanhas do mundo estão no Nepal, das dez maiores. Circulando num voo de uma hora, você vê cada vez mais marrom. Sempre quando eu tenho a oportunidade, nos documentários, de ir ao Nepal eu aproveito pra fazer esse voo, que é o meu reconhecimento. Então realmente a gente tá nesse período dessas mudanças climáticas. Olha só o inverno que tá passando na Europa agora, na Itália, 17 graus negativos. São Paulo, que é a cidade em que eu moro, a infestação dos mosquitos, uma cidade sem chuva. A gente fala da falta de chuva aqui, mas a situação também dramática dos habitantes... Então a gente tá vivendo um período, realmente, que temos que ficar com os olhos muito abertos, com o coração pleno, pra perceber todas essas mudanças, e as mudanças de comportamento.
OP – Que aspecto político e econômico mais cruel o mundo já te revelou?
Arthur – A xenofobia que a gente vê pelo planeta, o apartheid que existe entre ricos e pobres, isso aqui no Brasil, né, que a gente vê essa divisão muito clara. Não é divisão de raça, aqui é divisão de grana. O cara, se é pobre, é de uma casta inferior. Isso eu acredito que com as novas gerações... Cada vez mais eu observo os jovens muito mais flexíveis com isso. A gente tá tendo novas gerações que estão realmente revolucionando, independente... Existe uma grande cultura da pasteurização, que a gente acompanha dentro da publicidade, dentro dos grandes veículos de comunicação, mas essa revolução que tem das plataformas de mídia, as plataformas digitais, tem um lado bom. Eu tenho acompanhado os próprios jovens fazendo o seu clipping, montando o que eles desejam ver, de televisão. Como lá no passado, né? No passado a gente não tinha Internet, eu escrevia com máquina de escrever, à mão, era super difícil. Agora com o computador, o fato de ser jornalista, você tem mil facilidades, você tem o oráculo Google, que também facilita muito nas suas pesquisas. Mas você tem que estar in loco, você tem que estar com as pessoas, conversar com elas, fazer estudos prévios que os livros têm e no Google não têm.
OP– O que mais te completa numa viagem: conhecer as pessoas, conhecer as paisagens, saber da história?
Arthur – Todos esses elementos. Mas o ser humano anônimo é algo inacreditável. Eu, em viagens, me deparo com pessoas que eu nunca vi e, de repente, essa pessoa fala oito línguas, é um linguista, só tem um trapinho amarrado no corpo, foi um filósofo, foi pai de família. Que na Índia tem essa tradição, e estou falando da Índia porque já fui pra lá mais de vinte vezes e foi um foco muito importante no meu discernimento do que é o ser humano e o que é espiritualidade. Mas um exemplo, eu estava num Khumba Mela, que é o festival mais antigo da história da humanidade, que acontece de 12 em 12 anos em quatro cidades sagradas da Índia, tem toda uma história, uma narrativa dos livros sagrados, em que caiu quatro gotas do néctar da imortalidade e essas quatro gostas caíram em quatro cidades específicas. Eu estava na festa de Nasik, isso em 2003, 2004, e me vem um cara, e eu estava junto com um grande amigo que também viaja bastante e agora está morando na Austrália, o André Meier, e ele falou: “Arthur, o cara é parecido com você!” e o cara era, assim, uns dez centímetros menor que eu, mas igualzinho, com o mesmo tipo de óculos... Daí o cara veio, eu olhei para o cara, daí foi só sorriso e a gente foi conversar, ele falava muito bem inglês, e era um filósofo. Estava ali com um paninho enrolado e me contou de tantas histórias fascinantes. Eu e o André ficamos lá com aquele cara e foram três horas que pareciam não ter temporalidade, naquele momento. Esses encontros são encontros fascinantes nas nossas vidas, que realmente nos transformam. Por isso é muito importante, é fundamental viajar. Não precisa você viajar para a Índia, China, África. Eu torno a dizer, o Brasil é fascinante. A gente tem tantas paisagens, tantos biomas, biomas de pessoas, a diferença de sotaques que existe nesse País, o amálgama de grupos que existem, desde a Pomerânia, que veio pessoas do Senegal, da Nigéria, pessoas que vieram do Peru, da Itália, da Alemanha. Isso daqui é um caldeirão étnico. A gente tem que aproveitar isso, ainda mais com as dificuldades que tem de viajar pelo mundo, é um custo muito grande. Quem que tem grana pra ficar viajando a toda hora? Só quem é rico e herdeirinho, certo? E por falar nisso, os gurus sempre falam sobre os ricos. Os ricos chegaram num grande patamar na vida onde eles tem tudo. Uma boa casa, belíssimos automóveis na garagem, viajam de executiva e primeira classe, vão a bons restaurantes, e chegaram aonde? Chegaram nos bens de consumo absoluto. Então o cara fatalmente vai pra espiritualidade, o que não vai pra espiritualidade é um ignorante, então pra quê ter tanta riqueza, compreende? Isso é algo muito importante que os mestres dizem, que os pobres que entram pra espiritualidade são pessoas realmente especiais, porque eles não galgaram esses planos de terem os objetos de consumo.
O POVO – Aproveitando pra falar de fé, espiritualidade, você tem uma relação profunda com o tema, apesar de você ter dito também que é importante ser um pouco ateu diante disso, para poder chegar sem preconceitos. Como é essa sua relação com a fé, com a espiritualidade?
Arthur – Para mim sempre me encanta ver as manifestações religiosas, os transes coletivos, essas festas populares, aonde você vê que o todo é maior que a soma das partes. Aí você vê realmente o fluxo... Porque existe essa droga, que é a multidão, e no Ocidente ela é muito desvalorizada. Vai num show de rock, de música sertaneja, vai num comício político, num jogo de futebol, que isso faz parte do nosso universo. Fica todo mundo potencializado, você vai pra uma oitava superior. Nessas festas de transes coletivos, aonde vão 3, 5, 10 milhões de pessoas, 80 milhões como na Índia. Vai um exemplo de uma festa fascinante, o Círio de Nazaré, que é em Belém do Pará. É algo inacreditável, eu entrei em contato com o divino quando eu botei a mão na corda, ali eu estou com o cordão umbilical do divino, participando com milhares de pessoas segurando aquela corda, ali você perde sua identidade, não tem ego, você não é VIP, você é nada, é um fiapo da corda, a respiração coletiva, essas experiências são vitais para qualquer ser humano, eu recomendo ir participar de uma escola de samba para desfilar na avenida, isso é fascinante, está tudo a nossa disposição, a gente não pode se pasteurizar. É preciso compreender a sabedoria e toda a transparência de um Prem Baba, que é uma figura fascinante. O Brasil é tão multifacetado, que tem um guru único com toda uma tradição que vem da índia e com todos os elementos da Amazônia. Ô povo afortunado de ter essas possibilidades, como diversos babalorixás, mães de santo. São pessoas que tem uma sabedoria inata, que não é um conhecimento emprestado, que têm a sabedoria plena.
OP – o que o jornalismo gonzo te ensinou?
Arthur – Todo mundo sempre coloca o jornalismo gonzo como Hunter Thompson. Lógico, ele foi um jornalista único, mas um cara que sofria muito, ele até se suicidou. Mas os textos eram impetuosos, em estados alterados de consciência. Mas é importante dizer que toda essa tradição vem do Marco Polo, dos grandes exploradores, do Vasco da Gama a Pedro Álvares Cabral. Era gonzo jornalismo absoluto e o maior de todos é o Jack Kerouac que é o cara que fez aquele livro chamado On The Road, que o Walter Salles fez o filme.
OP – Você não apenas observa uma realidade e, sim, procura vivenciá-la. O que isso diferencia no seu jeito de contar histórias?
Artur – Tem um extrato do jornalismo que é muito careta que a pessoa se distancia, só fica de observador. Qualquer um pode ser observador, você tem que trazer os elementos, as imperfeições daquilo que você vê. Distante, o louco é inacreditável. Próximo, essa pessoa vira um provocador. Então você tem que provocar uma reflexão para o seu leitor, se não vira bula de remédio.
OP – A imprensa brasileira está precisando de mais ousadia nesse sentido?
Arthur – Nós temos grandes jornalistas aqui no Brasil. Eu acredito que a gente não está ‘tão quebrado’. A questão é o formato, que deixou muitos jornalistas que têm extremo talento quadradinhos. O jornalismo tem que sair da caretice.
OP - O seu método é se desconstruir diante das realidades que encontra?
Arthur – Meu método é deixar o leitor à vontade, eu o levo para um mundo que parece imaginário, mas é um mundo real. Uma vez eu fui lá para o Acre para rituais com grupos indígenas Ianauás. Na festa deles passei pela experiência da desintoxicação com o veneno do sapo. A câmera me filmando e eu comecei a engrossar a voz, eu fiquei inchado, passei por aquele momento que foi um desgaste psicológico, físico, mas inacreditável. Eu um homem com mais de 50 anos naquele momento parecia que tinha 20, com uma vitalidade incrível. Eu passo por esses experimentos e tento passar isso por telespectador e para o leitor. Isso é que é o fundamento do jornalismo, você tem que passar sua experiência vital.