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A legislação brasileira que trata sobre o tráfico de fósseis deixa brecha para que o comércio ilegal do patrimônio fossilífero do País seja levado daqui e, dificilmente, retorne para instituições nacionais. A constatação é de Renato Pirani Ghilardi, presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP) e professor da Universidade Estadual Paulista e Faculdade de Ciências de Bauru. Confira trechos da entrevista com o paleontólogo. (Demitri Túlio)
O POVO - Como a SBP tem acompanhado a questão do tráfico de fósseis no Brasil e, em particular, na Bacia do Araripe?
Renato Pirani - A SBP acompanha de perto e com interesse. Um dos maiores problemas é a legislação muito genérica sobre o tema. A mais detalhada legislação referente à temática é a portaria número 155 de 2016 do antigo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), atual Agência Nacional de Mineração (ANM), que estabelece que todo estrangeiro, ao coletar fósseis, deve comunicar à ANM e ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Contudo, se observarmos a lei, ela trata da extração do fóssil e não normatiza transporte e guarda de material coletado, exceto os holótipos - fósseis que fundamentam novas espécies. Isso é uma grande lacuna legislativa que a SBP está tentando resolver durante o próximo biênio. Não somos omissos em repudiar qualquer tipo de contrabando fóssil sem a chancela da legislação e procuramos atuar sempre na extradição das peças fósseis quando há possibilidade legal.
OP - O professor Álamo Saraiva, da Universidade Regional do Cariri, defendeu nas Páginas Azuis do O POVO (28/8) que os fósseis retirados da Bacia do Araripe para pesquisa deveriam ser depositados no Museu de Paleontologia de Santana do Cariri. O que diz a SBP?
Renato Pirani - A SBP segue a Constituição Federal, que estabelece que fósseis são bens culturais brasileiros, e a portaria 155 do DNPM, que determina, em seu artigo 301, que os extratores de fósseis em território nacional devem ter autorização prévia do DNPM, se estiverem enquadrados nas situações descrita na norma. Dessa forma, não vemos como imprescindível o tombamento do material em instituições do local de origem. Não há normativa para isso. Reconhecemos como benéfico que os fósseis estejam em diversas instituições como forma de aumentar a salvaguarda e a acessibilidade dos pesquisadores. Também reconhecemos que a manutenção do material em seu local de origem fomenta a atividade paleontológica na região. É imprescindível, todavia, que o material esteja em território nacional caso não esteja em consonância com a lei que permite saída de fósseis do País sob condições específicas.
OP - Como a SBP intermediou, por exemplo, na questão da Cratoavis e da Tetrapodophis amplectus - a primeira está no Rio de Janeiro e a segundo na Alemanha. Os dois fósseis originais da Bacia do Araripe?
Renato Pirani - Em relação à Cratoavis, a SBP não possui a documentação trocada entre as duas instituições brasileiras e não temos condições de opinar ou impor legalmente nenhuma determinação sobre o caso em questão. Legalmente não há impedimento nenhum que material do Crato seja depositado em outras instituições brasileiras.
O fóssil de Tetrapodophis amplectus (um lagarto) de fato teve uma ampla repercussão no meio científico e na sociedade em geral pelo fato de ser um fóssil de grande importância evolutiva e ser descrito por um conjunto de pesquisadores de fora de nosso País. E, diferente, do caso anterior, possui registro pelo menos parcial de todos os trâmites de deslocamento desse fóssil, fora do Brasil. À época de sua descrição, a SBP rapidamente entrou em contato com a revista Science, que publicou o material, expondo o contrabando ocorrido. A revista respondeu não ter capacidade de julgamento sobre as questões, mas que teria predisposição a uma maior restrição na publicação de trabalhos envolvendo fósseis coletados/exportados de forma ilegal.
OP - O paleontólogo inglês David Marthill, da Universidade de Portsmouth (Inglaterra) é apontado pelo professor Álamo Saraiva como um “traficante científico”. Descreveu fósseis da Bacia do Araripe e ignora os retornos para o Brasil. A SBP tratou alguma vez a questão?
Renato Pirani - A SBP sempre se posicionou contra as atitudes do profissional citado e manteve inúmeras conversas com o mesmo.
Infelizmente, o pesquisador tem como ideia que o comércio, mesmo que escuso, de material fossilífero pode ser realizado para pesquisa científica. É uma questão de caráter da pessoa que tem muitos adeptos no exterior.
Praticamente por todo o País temos relatos de estrangeiros que obtiveram material paleontológico brasileiro de forma legal e moralmente errada. Algumas vezes há troca de material entre instituições e consequente descrição de material por estrangeiros, por exemplo. Como não há, volto a frisar, legislação pertinente a isso, fica-se mais na questão de ética científica do que de legalidade. Existem vários exemplos como material da Bacia do Acre, da Bacia Bauru e outras.
OP - O que representa a existência do Geopark Araripe?
Renato Pirani - O Geopark Araripe é um marco para a sociedade brasileira. É o único Geopark reconhecido e com a chancela da Unesco e, para isso, tem uma série de condições de desenvolvimento de difícil manutenção. O controle da saída de fósseis da região só permitirá ainda mais a manutenção desse importante Geopark. Obviamente, a viabilidade de realização de pesquisa de ponta na própria região é um fator que também facilita a manutenção da chancela e que a SBP sempre estará disposta a colaborar.