Seja na tetralogia napolitana, seja nos romances esparsos, os trabalhos de Elena Ferrante se fundam em três eixos: maternidade, a relação conflituosa e algo insolúvel entre mãe e filha, explorada magistralmente em dois de seus três primeiros romances (A filha perdida e Um amor incômodo) e mesmo num conto infantil como Uma noite na praia.
A violência, que atravessa toda a narrativa ficcional da escritora como força-motriz, capaz de arrastar personagens e mergulhá-las em turbilhão, determinando geografia e modos de falar. Um brutalismo que se expressa na linguagem também, caso de Dias de abandono, história na qual uma mulher, Olga, recupera-se de uma separação implodindo a gramática afetiva que manteve por 15 anos com o marido e ao final refazendo laços rompidos de forma traumática, mas tudo a custo de ruína, de colocar abaixo as fundações da instituição casamento.
E, finalmente, o desaparecimento, que tem muitas camadas e perpassa todos os demais temas: o escape da cidade, do matrimônio, da infelicidade, das fronteiras, da violência e da língua dialetal. Não raro, Ferrante trabalha esse embate com o dialeto napolitano como figuração do que está na raiz, no sangue familiar e no que é herdado a contragosto, algo mais próximo da natureza; e a língua italiana, adquirida como cultura, resultado de disciplina e estudo, de cujo domínio as personagens se sentem pressionadas a se assenhorar como único modo de fugir não apenas ao microcosmo opressor de Nápoles (no caso da tetratologia), mas também para ordenar o caos e vencer os obstáculos (um abandono no casamento, por exemplo).
Dominar a língua é sobrepor o humano à natureza, é armar-se contra a violência (física, simbólica, psicológica, verbal), experiência que as amigas Lenu e Lila tratarão de colocar em prática nos quatro volumes da série, sempre que confrontadas com o poder do homem, do marido, da comunidade e da família. É um mecanismo de autodefesa, ora desarmando conflitos, ora precipitando mudanças que influirão decisivamente no destino das duas personagens-irmãs ao longo de quase 1,7 mil páginas, da infância à vida adulta.
Um tópico extra, porém, que se não surge como tema é porque subjaz a toda a obra da escritora italiana, é a representação do feminino como uma força em contrafluxo. As mulheres de Ferrante veem frustrarem-se planos sociais e afetivos: casamento, trabalho, família. A maneira como lidam com isso, todavia, é que as distingue de outras personagens marcantes da literatura. Em resposta a uma leitora que lhe pergunta se suas mulheres são sofredoras, a própria autora diz: as minhas mulheres não estão ali para sofrer, mas para resistir. Elena, Olga, Delia, Leda, Lila - a vasta galeria feminina de Ferrante prova isso.
Henrique Araújo
O POVO online
Leia entrevista sobre a obra de Ferrante com a pesquisadora Fabiane Secches em
http://bit.ly/2iNw4XnServiço
Frantumaglia, os caminhos de uma escritora, de Elena Ferrante
416 páginas
Preço: R$ 49,90Intrínseca
ARTIGO
A enorme repercussão que nos últimos anos a literatura de Elena Ferrante está encontrando a nível mundial, com os seus milhões de exemplares vendidos, assemelha-se ao extraordinário sucesso internacional que, nas décadas de sessenta e setenta, receberam as obras de Jorge Amado. Se nos livros de Amado é fortíssima a presença da Bahia e do Nordeste brasileiro, nos textos da Ferrante a cidade de Nápoles é o teatro de acontecimentos cruciais dentro da lógica da narração.
O fato surpreendente é que tanto as criações de Amado quanto as elaborações da Ferrante conseguem transformar uma realidade local em algo muito maior. É, porém, o olhar que muda radicalmente. Nos livros da Ferrante, Nápoles, nos momentos de maior tensão narrativa, acaba por se revelar o cerne de uma perturbadora geografia da angústia.
Tradicionalmente na literatura italiana, desde Giovanni Boccaccio até Alberto Moravia, o horizonte figurativo é um dispositivo que fornece ao leitor coordenadas culturais necessárias para que ele possa identificar-se com o que está sendo narrado. Livros da Ferrante como Um amor incômodo, Dias de abandono, A amiga genial ou História de quem foge e de quem fica se tornam singulares porque Nápoles, realidade da infância dos protagonistas, não é o lugar da identificação, do reencontro com o passado, mas se torna o espaço da perda vertiginosa de si.
Gera-se uma desidentificação também com os lugares da “maturidade”, como Roma, Pisa ou Florença, e determina-se nas principais personagens uma busca fascinante e, ao mesmo tempo, dramática: voltar para Nápoles significa realizar uma viagem no lado mais obscuro de si. Lila, alter ego de Lenu, a protagonista de A amiga genial, define tal encontro com as mais íntimas contradições utilizando o termo italiano smarginatura, que apropriadamente Maurício Santana Dias traduz com a palavra desmarginação: “Naquelas ocasiões, de repente se dissolviam as margens das pessoas e das coisas”. Nisso Nápoles é universal. Não pelo fato de ser uma folclórica imagem universalmente conhecida, perfeita para um cartão postal. Nápoles é o nome do véu que disfarça o desconcertante abismo escondido em todos nós.
Yuri Brunello
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFC