[FOTO1]
PhD em Psicologia no trânsito, a australiana Judy Fleiter pensa a segurança viária não apenas como a existência de leis de trânsito. Educação, compreensão das regras assim como suas as aplicações são essenciais para a redução de acidentes, indica.
Como psicóloga, ela discute o comportamento das pessoas no trânsito há 15 anos, tendo prestado consultoria para a Organização Mundial da Saúde (OMS) em gerenciamento de situações de risco, como velocidade e o consumo de álcool associado à direção.
Atualmente, ela é gerente da Global Road Safety Partnership (GRSP — Parceria Global pela Segurança Viária, em tradução livre), órgão vinculado à Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Judy esteve em Fortaleza no último mês como convidada do Fórum do Observatório de Segurança Viária.
O POVO – O que acontece com a pessoa para que, dentro do carro, se torne um ser mais individual e menos social?
JUDY FLEITER – Existe uma palavra que usamos para o entorno do carro que é “carcoon” (aglutinação, em inglês, das palavras car - carro e cocoon - casulo). Antes de a borboleta ir ao trânsito, ela é um pequeno casulo. Então, como a interação na rua poderia ser diferente, se nós estamos tão isolados? Porque se eu e você estivermos andando na rua e nos esbarrarmos acidentalmente, eu vou dizer ‘desculpas’, mesmo se eu não conhecer você. Mas, no trânsito, nós ficamos com raiva e não ficamos suscetíveis a perdoar os erros. As coisas que fazemos no trânsito não necessariamente são ilegais, mas são pouco educadas ou rudes. Toda sociedade tem sua próprias regras informais no trânsito. Por outro lado, temos as regras formais, as leis. Ter uma boa lei é muito importante, mas não é suficiente para melhorar a segurança. Precisamos que as pessoas conheçam e entendam lei. Mas educação pode ter também um outro papel, de dizer ao público que a polícia pode te pegar se você fizer algo errado.
OP – Por que é tão difícil as pessoas terem a mentalidade buscada por essa educação à qual você se refere?
JUDY FLEITER – Eu gostaria de ter uma resposta fácil para essa pergunta, mas não existe. Quando você acordou nesta manhã, você pensou ‘hoje eu vou matar alguém no trânsito’? Não. Ninguém acorda pensando isso. Mas 1,3 milhão morrem todos os anos e outros milhões se machucam no trânsito (no mundo). Nós não pensamos em nós como causa de um acidente de trânsito. E seres humanos não são muito bons em perceber o que é perigoso. Um bom exemplo é o tabagismo. Há muito tempo a sociedade tem conhecimento científico que o cigarro vai te matar, mas as pessoas ainda assumem esse risco.
OP – Aproveitando a questão do tabagismo, governos legislam sobre a publicidade em torno dele. Na publicidade do trânsito, vemos sempre os carros em alta velocidade. Como a publicidade influencia comportamentos negativos no trânsito?
JUDY FLEITER – Na Austrália, existe uma lei que levou muitos anos para vigorar sobre o que exatamente as montadoras podem mostrar nos comerciais. Um dos pontos é não mostrar carros em alta velocidade. Essa não pode ser a mensagem primária do comercial. Mas, ainda assim, as montadoras o fazem. Quando isso ocorre, a sociedade pode reclamar e as autoridades podem intervir. As pessoas não necessariamente entendem que elas podem optar por comprar um veículo mais seguro e não o mais barato ou mais rápido.
[QUOTE1]
OP – No Brasil, as pessoas se formam motoristas e só voltam a fazer testes se perderem algum tipo de prazo na renovação. Em outros países, há algum bom exemplo de reciclagem na formação de motoristas?
JUDY FLEITER – Isso é algo muito comum. De onde eu venho é do mesmo jeito.
É incomum as pessoas terem educação formal continuada para guiar. É muito incomum encontrar um lugar em que as pessoas tenham que ter mais educação. A menos que tenha recolhida a licença
para dirigir.
OP – Aqui em Fortaleza há a crítica à chamada Indústria da Multa. Não sei se há em outros lugares, mas é a ideia de que o motorista é perseguido pelo poder público, que multa, e não é feito nada pela educação. Há esse discurso de que o poder público está multando em excesso em outros lugares?
JUDY FLEITER – De onde eu venho isso se chama aumento de receita. É uma crítica comum também. O que as pessoas têm que entender é que não é apenas por dinheiro. Claro que o dinheiro tem um papel na mudança de comportamento. Na Austrália, é parte da lei que qualquer dinheiro recolhido por multas de câmeras de velocidade não vá para o governo geral. Vai para um fundo de melhorias da segurança viária. Nem todo mundo entende isso. Eu acho que nunca todos vão ser convencidos de que o governo pegar esse dinheiro é uma boa ideia, mas exerce um papel poderoso na mudança de comportamento. Nós não temos que pagar esse dinheiro. É um imposto voluntário. O que significa que, se você obedece à lei, você não precisa pagar o dinheiro. Se você escolhe beber álcool e dirigir, você assume voluntariamente as consequências. Você não precisa pagar. Você precisa apenas obedecer a lei.
OP – Como fazer com que as pessoas, além de conhecerem as leis, se apropriem delas?
JUDY FLEITER – É um processo muito longo — e não podemos dizer que essa regra funciona para todas as pessoas. Quando os países passaram a multar pelos níveis de álcool de quem dirige ou quando passou a multar pelo não uso do cinto de segurança, a população não gostou da ideia. Por que passaram a usar o cinto de segurança? Porque não queriam receber uma penalidade. Com o tempo, passaram a perceber ‘tenho que usar meu cinto de segurança’. Hoje, temos índices muito altos de pessoas utilizando cinto de segurança. E a maioria das pessoas nem pensa mais nisso. Entra no carro e põe. É um hábito. O mesmo com álcool e direção. Quando eu era uma garota, muita gente bebia e dirigia. No começo, as pessoas não concordam. Somos resistentes ao que o governo nos diz para fazer. Se eu estiver na Austrália e disser à minha família ou aos meus amigos que bebi e dirigi isso é uma grande vergonha. Trinta anos atrás não era problema. As pessoas passaram a ter obrigação moral de cumprir a lei. E também vemos a polícia regularmente parando as pessoas. Eu sei que a fiscalização está fazendo seu trabalho. E isso passa a mensagem ‘Não faça isso. Não dirija depois de beber’. Se a polícia para de fazer, a comunidade regride. Não é só educação e não é só ter a lei: execução contínua da lei também é importante. No Brasil, as pessoas bebem muito. Na Austrália, as pessoas bebem muito. Pode ser muito tentador pensar ‘só mais uma cerveja’.
Mas a ameaça de pensar ‘ops, a polícia pode estar lá esta noite’ faz com que as pessoas parem de fazer isso.
Na maioria das vezes.
OP – Quando a gente pensa em mobilidade, o carro é o primeiro a ser condenado. Mas a gente sabe que o carro também tem um papel. Como fazer uma transformação da mobilidade e o que pode ser feito pelo poder público e pelas pessoas para mostrar possibilidade e tentar fazer com que haja um outro olhar para a mobilidade?
JUDY FLEITER – É interessante porque, em muitas partes do mundo, carros são vistos como símbolos de liberdade. O primeiro carro para os jovens, por exemplo, é um símbolo. Dizer às pessoas que elas não podem ter um carro não é o meio de resolver a questão. Penso que isso não funcionaria. Encorajar as pessoas a pensarem que o carro não é o único meio de mobilidade na cidade é um caminho. Linhas exclusivas para ônibus, ciclovias são coisas que Fortaleza está fazendo. Todas essas coisas mandam uma mensagem para a sociedade de que há outras formas além do carro. Em muitas cidades, o carro é dominante e é o foco do design das vias. Mas há uma oportunidade neste século de remodelar isso. Em algumas cidades, e Londres é um exemplo, há um imposto que se paga por dirigir na área central da cidade. Isso é o poder público dizendo ‘você pode ter o seu carro, mas para dirigir nesta área você tem que pagar’. Há várias formas de repensar o uso do carro sem proibir as pessoas de tê-lo.
Isso pode levar tempo.