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#Ranço. O que sobra é o ranço
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#Ranço. O que sobra é o ranço

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Ranço é sentimento 2.0, nascido nas plataformas digitais. Meio-termo entre a ancestralidade do rancor e a apatia do asco, a tal expressão vem se reinventando como resposta-padrão das redes sociais a toda sorte de bizarrice que acomete nosso dia a dia. A cada gole no noticiário, fica o retrogosto rançoso, um familiar sentimento de indignação e impotência. É, de certa forma, um reflexo nacional do mais cearense “abuso”, uma autêntica sensação restrita à internet.

 [SAIBAMAIS]

Verdade é que o ranço, enquanto sentimento, sempre existiu e nunca teve nome. E mesmo o apelido de hoje não garante que o sentido seja consensual. Por mais que o ranço se expresse para a coletividade, com o “peguei ranço” que dominou a internet em 2017, nuances de recalque nascem nas entranhas. Ranço é experiência particular. É algo que todo mundo sempre conheceu e que ninguém jamais vai desvendar.


Antes mesmo de ser sentimento, do ranço se desprendia o asco.

“Sabor e cheiro acre que adquirem os alimentos gordurentos”, define o dicionário. Hoje, nas redes sociais, o termo adquiriu um caráter onipresente, com uma transversalidade capaz de expressar ódio ao uso indiscriminado de passas nas ceias natalinas e ao governo Temer. No Facebook, onde engajamento com likes se confunde com consciência, o “peguei ranço” virou grito mudo de rejeição a qualquer coisa.


O problema do ranço é quando ele é usado para direcionar o público para problemas irrelevantes, dissipando questões urgentes. No Brasil, em vez de debater as reformas trabalhista e da Previdência, as redes sociais se dedicavam a catar puritanismo contra a nudez em museus. Nos Estados Unidos, Donald Trump pinta e borda em um governo recordista em impopularidade, mas vez ou outra parece mais urgente fazer abaixo-assinado de repúdio ao novo Star Wars.


O ranço traz em si uma espiral de comodismo. É declaração de “abuso” contra minorias, contra Pabllo Vittar, contra Anitta, mas também é a inquietação contra a atividade das facções. Ranço é algo que desliza por baixo da porta da indignação e pode alimentar uma revolta crescente. Quando o grito deságua das redes sociais para o mundo, essa pulga de incômodo deixa de ser puro recalque e vira ativismo. O acesso do Ceará para a Série A tem um pé no ranço — surgiu do desdém pela conquista do Fortaleza e se metamorfoseou em obstinação por um feito histórico para chamar de seu.
Escrever sobre ranço é um desafio por si só. Cai-se no risco de “pegar ranço” do próprio texto. Quer coisa mais arbitrária do que definir um sentimento? 2017 foi ano de se familiarizar com o misto de calor e desânimo do ranço. Foram 365 dias tão surreais que a resposta foi um dar de ombros coletivo para esses nós cegos da vida. Resta olhar para frente e fazer com que mesmo os mais negativos dos sentimentos tragam reflexos positivos para a sociedade, e, em suma, para nós.
  

DICIONÁRIO


ran·ço
substantivo masculino


1. Sabor e cheiro acre que adquirem os alimentos gordurentos alterados ou em decomposição.
2. Cheiro e sabor desagradáveis resultantes da falta de renovação do ar.
3. Sentimento de repulsão sobre algo. Nojo, raiva ou aversão.

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