[FOTO1]
Na última quarta-feira, Thiago Nunes, 47 anos, assistiu pela terceira vez ao documentário “Torquato Neto - Todas as horas do fim”. Levou consigo Nicolas, de 12 anos. “Ele ficou fascinado pelo filme e eu fiquei tocado profundamente. Ao mesmo tempo, eu conhecendo meu pai e ele, o avô. Dessa vez, eu fiquei emocionado de verdade”.
Único filho do poeta piauiense com a baiana Ana Maria Duarte, Thiago perdeu o pai com pouco mais de dois anos. Pelos caminhos tortos e novos que a vida foi traçando, ainda menino ele passava férias em Fortaleza. No final dos anos 1990, ele chegou a morar em Fortaleza por uns três anos. Voltou a morar na Cidade na segunda metade dos anos 2000, já com o filho pequeno. Hoje, o piloto de avião mora em Indaiatuba, São Paulo. Ele conversou por telefone com O POVO, de Orlando, onde está a trabalho.
O POVO – O que você achou do documentário?
Thiago Nunes - Fiquei impressionado com quantidade de coisa que meu pai produziu pra quem morreu com 28 anos. O filme resgata desde a primeira poesia dele com 9 anos ("O meu nome é Torquato / O de meu pai é Heli / O da minha mãe, Salomé /O resto ainda vem por aí") até a carta de despedida e tem muito mais imagens do que imaginei. O filme foi importante também porque não se tinha registro da voz dele, mas na época da produção foi publicado um artigo no O Globo e um radialista de Porto Alegre, da Gaúcha, ligou dizendo que tinha uma entrevista completa com ele. Isso foi importantíssimo na composição do filme. Gosto muito porque chega uma hora que você já não sabe mais quem está dando depoimento e isso ressalta a figura dele (Torquato). Ele está no centro do filme o tempo todo. Eu gostei demais.
OP – O filme apresenta a vida do seu pai como uma obra.
Thiago – Na verdade, se você for analisar bem, a poesia, os artigos da Geleia Geral (coluna que Torquato escrevia no jornal Última Hora), o cinema, o jornalismo, as cartas que ele trocava – tudo isso é a obra dele. Imagina se ele tivesse ficado, o quanto teria produzido até hoje.
OP – Qual sua colaboração no filme?
Thiago – Só não foi financeira, mas foi fundamental. Um dia o Marcos Fernando, um dos diretores, ligou pra minha mãe, ela disse que não se interessava no projeto, e deu meu telefone pra ele. Ele me ligou, me explicou a relação que ele tinha com Teresina, a filha dele mora em Teresina, ele morou lá um tempo, se mostrou um superconhecedor da obra do meu pai, falou do projeto e combinou de encontrar comigo. Eu fiquei absolutamente impressionado com a vontade que ele tinha de fazer o filme. Eu até falei: mas como você vai fazer um filme de alguém que tem tão poucas imagens, não tem registro de voz, ele falou assim tenho ideia de uma composição diferente que vai fugir bastante do padrão de documentário, vai ficar legal. Eu o ajudei a entrar em contato com meu primo que tem o acervo todo lá em Teresina, ele passou um mês quase todo lá em Teresina fotografando entrevistando e tal. Boa parte dessa ponte eu ajudei ele a fazer. Foram quase 4 anos de produção, pra encontrar imagens, algumas eu só fui conhecer no cinema, não sei onde ele conseguiu todas, mas tem algumas imagens da minha mãe, fiquei muito emocionado por conta disso também, a presença dela no filme também, e tem fotos minhas no filme que eu não conhecia. Uma vez eu estava dirigindo em Indaiatuba, onde eu moro, e ele me ligou. “Onde você está?”. “Estou chegando em casa”. “Para o carro aí. Vou te mandar umas fotos e você não pode estar dirigindo”. Era um monte de foto minha, pequeno, com meu pai, que estava perdido na gaveta de alguém. E que ele conseguiu resgatar. Fiquei meia hora em estado de choque. Parado no carro, olhando as fotos.
OP - Você citou que tem um primo que guarda um acervo do seu pai. O que você guarda de acervo?
Thiago - Olha, na verdade, pouca coisa, porque o George (Mendes), meu primo, tem uma produtora em Teresina e tem uma sala muito grande e todo o acervo, tudo o que ele tinha de foto, é tudo catalogado, climatizado, para não estragar os filmes e tal. Então, muita coisa que eu tinha eu mandei pra ele pra efeito de conservação e pra efeito de pesquisa. Muita gente me pergunta: “Cara, onde eu consigo material?”. E eu mando pra lá porque eu sei que lá tem tudo. Então eu tenho pouca coisa. Tenho uns livros tenho algumas coisas de imprensa, tenho aquela entrevista que fiz quando morei aí, mas o principal que é significativo eu preferi que ficasse no acervo, lá em Teresina, porque é tudo catalogado mais fácil pra quem quiser. É mais seguro e melhor. Uma coisa que só eu tenho é a lembrança do Torquato Neto como pai. Não como a figura que ele era. Mas isso está guardadinho.
OP – Quando ele morreu você tinha dois anos. O que você lembra?
Thiago – Um pouco mais de dois anos. Mas eu lembro. Algumas cenas. Eu, ele e minha mãe, deitados na cama. Descrevi o quarto pra minha mãe e ela disse esse era nossa casa lá na Tijuca. Ela tinha uma mesa de desenho, ela era diagramadora, e ficava no quarto de dormir e eu lembro direitinho nós três nesse quarto e ele ao meu lado. E por mais incrível que possa parecer, quando foi achada essa gravação (em áudio), a Mariana (Filgueiras) que é a editora do segundo caderno do O Globo organizou um jantar na casa dela pra ouvir a fita, a voz dele pela primeira vez, e quando começou, na hora, me pareceu uma voz familiar. Foi bem legal. Tenho memória do afeto. É algo difícil de colocar em palavras. No filme, fica bem claro que quando eu nasci ele deu um tempo. Adorou o fato de ser pai e passava o dia inteiro comigo. Isso está guardado aqui de alguma forma. Dizem que ele era muito afetuoso. Doido, mas muito afetuoso. Cresci ouvindo isso. Em Teresina, todo mundo fala que quando ele chegava, iluminava tudo. Como meu avô, né? Eram muito parecidos. De abraçar, beijar todo mundo, dar cheiro... uma coisa nordestina pra caramba. Que eu acho bem legal.
OP – Você cita o seu avô (o defensor público) Heli da Rocha Nunes. Ele só morreu eu 2010, aos 92 anos. Qual o convívio que vocês tiveram?
Thiago – Meu filho conheceu ele, em Teresina. Era grandinho já. Ele lembra. Foi a melhor convivência possível, durante muitos anos. Ele sofria, impossível não sofrer, quem perde um filho, não quero nunca imaginar uma sensação dessas, mas por ele ser kardecista minimizava o sofrimento. Acho até que esse mergulho dele na religião foi a maneira dele minimizar o sofrimento. Ele falava de meu pai de uma maneira super tranquila diferente da minha avó (a professora Salomé Araújo Nunes) que falava três palavras e começava a chorar, ela mesma dizia que começou a morrer no dia da morte do meu pai e de fato foi o que aconteceu. Mas com meu avô, a gente tinha uma relação bacana de verdade, ele nunca teve grilo de falar com meu pai nem nada. Era um cara, esse sim, iluminado pra caramba.
OP – Quando entrei em contato com você pra marcar a entrevista, você falou que fica impressionado como a moçada hoje em dia está ligada na obra do Torquato. Do que você conhece, o que você mais gosta?
Thiago – Pensando isso outro dia. Estava relendo algumas coisas. Já no fim do filme alguém fala, e já não dá pra saber quem é, que ele havia poesia de uma maneira geral em tudo que ele escrevia as cartas pra família no Brasil, e tem uma carta que eu não sei porque não foi pro filme chamado “Cartas brasileiras”, organizado por Sérgio Rodrigues, fui no lançamento tem uma carta que ele escreveu pra minha mãe pedindo ela em casamento é a coisa mais linda do mundo, aquela carta. Um negócio que...ainda que você não conheça a obra dele, mesmo sem saber quem é, você vê que ali tinha uma pessoa que tinha o poder da palavra. Gosto de tudo – cartas, jornalismo – mas demorou pra eu me dar conta disso. Fui perceber tardiamente.
OP – Você era adolescente quando a música Go Back, do Sérgio Britto, baseada numa poesia do Torquato, fez sucesso com os Titãs. Queria que você me contasse como foi ver essa visibilidade em torno do seu pai. Despertou interesse entre seus amigos? Como foi?
Thiago – Vou te contar uma história mais interessante do que essa. Eu não lembro se contei isso no dia do meu depoimento pro filme. Acho que não. Se eu soubesse que eu não ia aparecer eu tinha ficado mais à vontade pra falar, com toda certeza. (risos). Teria sido um depoimento bem melhor. Mas foi super legal. Voltando a sua pergunta, na época daquela música, como até hoje, todo mundo conhece. As pessoas perguntam o que meu pai escreveu e quando eu cito essa música, todo mundo se admira. Foi musicado muitos anos depois, mas é um poema dele e tal. Mas quando eu era adolescente, 15, 16 anos, minha mãe sempre evitou muito falar do meu pai, acho que ela cortou relações com o passado, pra colocar numa frase só. E, certa vez, eu estava na escola, acho que 8ª série, era diferente, mas acho que era isso. Eu sempre sentei no fundo da sala de aula, perto da janela. E nesse dia estava tendo aula de literatura e a professora, completamente fora do programa, começou a falar de poesia dos anos 60 e passou a aula inteira falando do meu pai. Explicou do suicídio dele. E foi nessa aula que eu soube muita coisa que não era clara pra mim, minha mãe não deixava claro. Só depois de muitos anos, depois que meu filho nasceu, ela teve mais liberdade para falar de algumas coisas. Mas nessa época eu não sabia. Ouvi tudo, na aula, quietinho, prestando atenção e no final da aula fiquei e falei pra ela que era o meu pai. Ela me abraçou, emocionada, conversamos por um bom tempo. História bacana pra caramba. Falou do fim da vida dele, da dor, daquela época atormentada criativamente. Eu não esqueço.
OP – Você tinha relações com os amigos do seu pai? Pessoal da Tropicália. Houve algum interesse seu e deles de manter contato.
Thiago – Minha casa era como um ponto de encontro. Foi a vida toda lá no Rio antes dele ficar mal. Até um pouco antes do meu nascimento. Quando chega uma criança, muda, tem que baixar a bola. Mas o fato é que depois de 72 (ano da morte de Torquato), durante muitos anos, todos aqueles amigos continuaram frequentando. Minha mãe dizia assim, você vai entender: “Thiago, você é igual ao seu pai, tem uma atração por doido, você gosta de amigo maluco”. Eles continuaram a frequentar a casa da minha mãe por muitos anos, muitos anos. Hélio Oiticica, Wally Salomão, (Jards) Macalé. Aquela turma toda que andava com ele, continuou visitando a casa da minha mãe. Convivi com eles por muitos anos. Depois de um tempo, se afastaram. Claro. Mas um tempo desse eu tava não sei aonde e veio um cara falar comigo. Era o Macalé! “Jards! Você me reconheceu?” “Como eu não vou reconhecer? Você é a cara do seu pai, pô!”.
OP – Através do segundo marido da sua mãe, você visitou Fortaleza por um tempo e acabou por morar aqui na vida adulta. Qual sua relação com a Cidade?
Thiago – Olha, filho de baiana com piauiense, meu sangue é nordestino, não tem como negar, embora eu tenha nascido no Rio. É minha gente. Meu contato inicial com Fortaleza foi através do segundo marido da minha mãe, mas a identificação com as pessoas foi imediata. Tão forte que resolvi me mudar pra aí depois. Só não vou mais por falta de tempo. Sempre que vou a Teresina, Fortaleza, Recife – vou muito a Recife porque faço um voo pra Flórida que parte e volta pra Recife – e é impressionante como me sinto em casa no Nordeste. É como um alemão que volta pra casa. As pessoas, o sotaque... E foi por isso que fui parar aí, eu acho. Não moro aí, mas minha relação com o Estado continua firme e forte.