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Na Grécia antiga, as personagens femininas das tragédias e comédias eram apresentadas por homens. Se utilizando de máscaras, somente atores narravam aquelas histórias de amor e luta, afinal, as mulheres nem consideradas cidadãs eram – elas não possuíam direitos políticos nas pólis.
Um salto para os Estados Unidos do século XIX e mais uma narrativa de apagamento: eram os artistas brancos que davam vidas aos personagens negros, uma prática hoje condenada, conhecida como blackface.
[SAIBAMAIS]
Brasil de 2018 e a atriz carioca Renata Carvalho, umas das principais vozes do Movimento Nacional de Artistas Trans (Monart) defende ser preciso refletir sobre o histórico do teatro para entender a atual reivindicação de artistas trans Brasil afora. Desde o início do ano, coletivos LGBTs veem batendo recorrentemente numa tecla: é importante que personagens transgêneros de filmes, novelas e peças sejam representados por atores e atrizes trans. Os militantes estão chamando de “transfake” a prática de atores como a do cearense Silvero Pereira que dá vida a travestis em cena.
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Há, porém, forte resistência ao debate, afinal, o “fazer de conta” não seria a base da arte de interpretar? “Essa ideia de que o artista pode interpretar qualquer papel é do mundo ideal, na prática não é assim. O fato de eu ser travesti me tira de todos os papéis. Essa liberdade é para quem? É para os homens cis brancos que já têm espaço garantido”, pondera Renata, em entrevista ao O POVO. Ela é responsável por acalorar ainda mais a discussão após discursar sobre o tema esta semana na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp).
Desde janeiro, essa pauta está em voga no meio artístico. O estopim foi um protesto realizado em Belo Horizonte na estreia da peça Gisberta, solo do ator Luis Lobianco (do Porta dos Fundos) cujo tema é a saga de vida e morte de Gisberta Salce Junior, paulista assassinada brutalmente em Portugal. Na porta do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Belo Horizonte, no dia 5 de janeiro, militantes trans protestaram contra a ausência de travestis e transexuais na peça. O fato repercutiu, depois disso o Monart lançou um manifesto contra o transfake e passou a protestar contra outros trabalhos com o tema, chegando ao coletivo cearense As Travestidas. O POVO tentou contato com Silvero Pereira e Luis Lobianco, que preferiram não comentar o caso.
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No perfil do Facebook, o ator carioca postou sobre o tema: “E o teatro não seria a arte do “fake”? O plano harmônico das verdades e mentiras? Em 24 anos de carreira já fiz velho fake, mulher fake, criança fake, até escandinavo fake eu já fui! O que não cabe mesmo é a comparação com o blackface por respeito a outros movimentos e à simbologia desta prática”, ponderou, afirmando ainda não “representar” Gisberta diretamente no palco e, sim, dar vazão à história dela. E desabafou: “Somos todos artistas. Por que não lutar por mais espaço pra todos? Vamos gastar mesmo tanta energia contra aliados? LGBTs contra LGBTs, mesmo quando há tantos inimigos lá fora torcendo pra que a gente se destrua e poupe o trabalho deles?”.
Sobre o tema, o colunista do jornal Folha de S. Paulo, Tony Goes, foi além e escreveu texto-resposta em que ponderou: “Teatro não é documentário, nem tem por único objetivo promover a visibilidade ou a inclusão de quem quer que seja. Reduzir o teatro ao ‘lugar de fala’ e outros conceitos pseudomodernos é cercear a arte e tentar controlá-la”, apontou.
Sobre o discurso de que o debate sobre transfake poderia representar censura, Renata Carvalho rebate apontando que quem está em espaço de hegemonia costuma recorrer a argumentos drásticos. “Os senhores de escravos diziam que com a abolição o Brasil ia quebrar, os homens diziam que as mulheres não tinham capacidade para votar”, enumera. “Esse discurso é típico da estrutura patriarcal do País”, detalha.
A atriz, porém, ressalta que não é um ataque pessoalizado a Silvero ou Lobianco e, sim, à estrutura. “O que a gente está debatendo é essa engrenagem transfóbica que eles acabam reforçando por mais que tenham boa intenção. Quando nós deixamos de poder nos interpretar nossa identidade é apagada”, afirma, apontando que o debate vai muito além do palco. “E não só no teatro. Ainda tem um discurso ‘patologizante’ em cima dos corpos trans. A gente ainda tem que sempre ser aceita. É lutar para existir”.