CLETO PONTES
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Médico
O belo livro autobiográfico de dona Lúcia Rocha Dummar nos revela que viver em harmonia, apesar de todas as adversidades, resulta do exercício da prática do bem e culto ao belo. A multidimensionalidade do ser humano é singular, ninguém, nem gêmeos univitelinos, é igual, apenas semelhante. A grande maioria dos mortais desconhece a sua missão na Terra, quando não, são simples sombras. Dona Lúcia tinha luz própria, aliás, era um clarão de bondade e sabedoria. Feliz daquele que tenha sido parte do convívio dela. Considero-me, portanto, um afortunado por três décadas de uma sólida amizade. Defeitos meus, se percebia, passavam em branco; qualidades sim, sempre as enaltecia, como a minha devoção de pai às filhas, suas netas. Na leitura de seu livro, confesso, a saudade invadiu como uma tormenta n’alma, no entanto, algo novo surgiu com vontade, melhor compreendê-la e, porque não dizer, amá-la como se bem próxima estivesse com toda a sua sabedoria.
De fato, o homem e as instituições nascem e morrem. A longevidade do O POVO se deve, em grande parte, à longevidade de dona Lucia, última de sua geração, guardiã da memória de todos familiares e amigos que pelo jornal passaram. O seu livro foi lançado no ano 90 de O POVO, fundado por seu pai Demócrito Rocha. O seu centenário, em 2017, não teria sido tão simbólico quanto foi o aniversário do jornal e os 130 anos do pai, em 2018.
O amor foi fundamento da existência de dona Lúcia, não como conceito esvaziado do cotidiano hipócrita da vida em sociedade. O amor de dona Lúcia faz jus ao sobrenome Rocha. Curiosa e sedenta de conhecimento, ela nunca deixou de lado cuidar do outro, a sua espiritualidade e fé inabalável, em detrimento que fosse dos bens materiais. Ressurgia diariamente como uma fonte de juventude em busca de trabalho na casa, no jardim, no memorial Rocha Dummar, construído amorosamente em um ano como uma rocha, em homenagem aos Demócritos, aos filhos, netos, bisnetos, à família e amigos. Nunca presenciei um maldoso comentário seu contra ninguém, mas “achava graça” das pitadas maliciosas dos convidados, em sua farta mesa dos almoços aos sábados, ou na cadeira de balanço no alpendre. Inúmeros fatos curiosos a relatar... No enterro da dona Albanisa, a Izinha, ela me obrigou a segurar numa das seis alças do caixão. No lançamento da Coleção Terra Bárbara, da Fundação Demócrito Rocha, ela me disse: você vai escrever a biografia do meu pai e faço questão de ser uma fonte de pesquisa. Moral da história: é no presente que se faz história.
Muitos acham incrível O POVO ser tão resistente, como as palavras em versos do Demócrito, pai, “morrendo e resistindo...” no poema Rio Jaguaribe. Fortaleza de então era uma província na Velha República, nada a se comparar à de hoje. Dona Creuza, sua mãe, foi a primeira mulher em tirar o título de eleitor no Ceará. Demócrito, desapegado de bens materiais, morreu sem assistir a realização do sonho da vitória dos aliados na Segunda Grande Guerra. Demócrito, seu filho, tinha a aura do avô e assim levou o jornal na alma, razão de sua existência. O jornal é uma instituição, dizia ele. Uma empresa cuja matéria prima é a informação e o seu registro, e não o papel moeda, do lucro pelo lucro. Na manhã em que dona Lúcia soube da morte do filho, com o olhar perdido e olhos lacrimejantes, disse: o meu sentimento é o mesmo de quando perdi o meu pai ... Um grande silêncio ecoou mais forte do que tudo ao redor. Certamente, ela queria dizer: ele foi ao holocausto. Na vida tudo passa, menos o valor incomensurável das guardiãs da memória, como a nossa querida dona Lúcia.