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Em outubro de 1975, o jornalista da TV Cultura e professor da Universidade de São Paulo (USP), Vladimir Herzog se apresenta na sede do DOI-Codi de São Paulo. A família conta que ele esperava que o interrogatório não demorasse muito. Achava que estaria em casa a tempo para o jantar com a mulher Clarice e os dois filhos Ivo, então com 9 anos, e André de 7. Nunca mais voltou.
A morte do jornalista desencadeou uma luta da sociedade e ainda mais longa, da família, por reconhecimento do que se passava nas épocas do governo militar no Brasil. Ivo, hoje com 52 anos, superou a idade do pai em anos de luta por justiça. Vladimir morreu aos 38 anos. Há 43 anos, os filhos e a mulher pedem que o caso seja investigado. No mês passado, saiu, depois de quase uma década, sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condena o Brasil e manda que se abra investigação sobre o assassinato do jornalista.
Por quase 40 anos, o Estado sustentou a tese de suicídio na cela da prisão. Os agentes da época, deram-se ao trabalho de tirar uma foto do homem pendurado pelo pescoço, mas quase ajoelhado, com pernas dobradas e os pés arrastados no chão. Em 2013, a família conseguiu a mudança no atestado de óbito, que finalmente apontou a causa da morte como “lesões e maus tratos sofridos durante os interrogatórios em dependência do II Exército (DOI-CODI)”.
Logo após o assassinato, os familiares moveram uma ação civil na Justiça Federal que desmentiu a versão do suicídio em 1976. Em 1992, o Ministério Público paulista pediu a abertura de um inquérito policial, mas o Tribunal de Justiça do Estado considerou que a Lei de Anistia impedia a investigação. O entendimento se repetiu no Supremo Tribunal Federal, que avaliou a Lei de Anistia entre 2010 e 2013, e decidiu que ela não deveria ser ferida com novas investigações. A decisão da Corte internacional, portanto, vai contra a avaliação do STF.
O POVO: O que a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos representa para a família Herzog?
Ivo Herzog: Ela representa uma longa etapa. Na Corte mesmo, esse processo foram 7, 8 anos que a gente aguardou. Abre a porta para o passo mais importante. Na verdade, essa sentença ordena que a investigação. Mas ela não é a investigação em si. Ela evidencia mais a verdade que todos nós sabemos: as circunstâncias em que meu pai morreu. Mas ainda falta um processo judicial, de investigação o nome das pessoas envolvidas e que eventualmente elas serem levadas à Justiça.
O POVO: Vocês acreditam que ela será cumprida?
Ivo Herzog: Sim. Afinal é uma corte que joga elementos importantes e o Brasil é signatário do tratado de San José (da Costa Rica).
O POVO: Como essas decisões impactam famílias de outras vítimas?
Ivo Herzog: O caso do meu pai é um dos mais notórios, então as decisões que saem em relação ao meu pai acabam servindo para abrir portas.
O POVO: Sendo filho de uma vítima do excessos das Forças Armadas, como o senhor enxerga a intervenção militar no Rio?
Ivo Herzog: Acho um equívoco. A gente não vê nenhum conjunto de propostas para resolver a coisa de maneira permanente. Então, eu vejo a ineficácia. Eu particularmente acho que foi feito com uma agenda política-eleitoral. Sou contra.
O POVO: Que diferenças e similaridades existem da época do assassinato de seu pai para hoje?
Ivo Herzog: A principal diferença é uma liberdade de imprensa. Na época da morte do meu pai, os jornais nem podiam noticiar as circunstâncias da morte dele. O Estado soltou uma nota criando a tese do suicídio e isso foi a única coisa que pode ser noticiada. Se você pega os jornais da época, não se fala em assassinato do meu pai. Hoje você consegue que a sociedade esteja mais próxima do que realmente aconteceu e consiga formar uma opinião a respeito do fato.Sabe que tem pessoas mal resolvidas que dizem que meu pai se matou até hoje. Inclusive essa é uma das importâncias da investigação: enterrar de uma vez por todas a farsa que o Estado criou sobre a morte do meu pai. A principal semelhança que tem muito a ver, muito simbólico, sobre a Marielle Franco e a questão do meu pai é uma indignação generalizada. Apesar de que na época do meu pai se criou uma farsa, a maioria das pessoas sabia o que tinha acontecido. Foram às ruas. Milhares de pessoas, universidades em greve, uma grande mobilização da sociedade externando sua indignação. A mesma coisa a gente vê com a morte da Marielle.
O POVO: O que tornou Vladimir Herzog uma pessoa de interesse do regime?
Ivo Herzog: Você tem um governo que coloca, num contexto de Guerra Fria, que o Brasil não seja tomado por comunistas. Meu pai era um cara de esquerda, ligado ao partido comunista (PCB). Mas lembrando que o PCB não tem nada a ver com PCdoB. Era um partido comunista de esquerda, absolutamente contrário a qualquer forma de luta armada, mas que buscava um governo de esquerda, social-democrata. Meu pai acredita nele como contraponto à política do governo de cerceamento de liberdades. Nessa campanha de instaurar o medo comunista, vários jornalistas são presos e torturados. São jornalistas que faziam trabalhos significativos colocando contrapontos ao regime vigente e, dessa maneira, começam a mobilizar a população para que democraticamente se opusesse à ditadura. As eleições de 1974 já trouxeram uma derrota importante ao governo posto. E dentro do modus operandi do governo estava prevista tortura e até a morte, como a gente vê nos documentos da CIA, que o Ernesto Geisel estava ciente. Meu pai entrou nesse redemoinho e acabou sendo morto.
O POVO: Se ele era pacífico, como o senhor acredita que ele acabou morto?
Ivo Herzog: Ele realmente não acreditava que isso fosse acontecer, porque era um sobrevivente do holocausto. Ele, com a família, foge da Iugoslávia, passa pela Itália de (Benito) Mussolini e vem viver no Brasil. Então ele tinha visto o que talvez tenha sido o maior horror que a humanidade conseguiu produzir. Não tinha nada para esconder, era funcionário público contratado pelo governo. Para assumir a posição na TV Cultura, foi investigado pelo serviço de inteligência para ter o nome dele aprovado. Eu não acho que meu pai, quando se apresenta, os agentes do DOI-Codi já tinham plano de assassiná-lo. Mas eles vêm com uma tortura muito forte. Forçam meu pai escrever uma confissão fantasiosa e, no final, meu pai pega o bilhete, tem um momento de profunda indignação, e rasga o bilhete. Os caras vêm com uma força descomunal e resulta na morte dele.
O POVO: O que a preocupação em encobrir esse crime e criar uma narrativa demonstra?
Ivo Herzog: Eles não puderam desaparecer com meu pai. Meu pai não foi preso. Ele se apresentou voluntariamente. Quando ele vai se apresentar, ele vai com colega da redação para ter certeza de que não iria desaparecer. A morte do pai, uma pessoa que tinha um passado de ficha limpa, sem luta armada, uma pessoa pública, era absolutamente injustificável. Não foi só no caso do meu pai. Rubens Paiva também. Dizem que foi sequestrado. Mas precisam entender que o governo nunca admitiu o que estava fazendo.
O POVO: Que papel esse atraso no reconhecimento do assassinato do seu pai tem nos discursos da extrema direita hoje no País?
Ivo Herzog: É uma questão de uma política contínua de impunidade. Não acho que o caso do meu pai fortaleça. Ao contrário, ameaça eles. Por isso não dizem qual é a verdade do que aconteceu.
O POVO: Logo depois que saiu a sentença da Corte, o deputado e pré-candidato Jair Bolsonaro disse que suicídios acontecem. Ele tem recebido apoio de parte da comunidade judaica, inclusive em São Paulo. Como o senhor enxerga o apoio dessa parcela dos judeus a uma pessoa que acredita que um membro comunidade tenha cometido suicídio?
Ivo Herzog: Vou tirar a questão religiosa, que para mim é irrelevante. Eu acho abominável qualquer pessoa apoiar esse sujeito. Ele nem consegue fazer coligações, apesar de ser primeiro nas pesquisas, nenhum partido quer se aproximar dele. Esse é o entendimento. Ele não é um cara idiota. Tem certa instrução. Ele sabe o que aconteceu com meu pai. Ele adota um discurso populista para um parcela da população, em várias temáticas. É uma cultura de extrema violência e intolerância porque tem pessoas com simpatia por esse discurso. O que é lamentável. Costumo falar sempre que o que nos diferencia dos outros animais é conversar, dialogar. Criar pensamentos, refletir e trocar ideias. Os outros animais, para conquistar espaço, vão pra porrada. Quando a gente faz isso se coloca no nível dos outros animais. Esse cara faz isso. Não vou entrar no mérito de comunidade judaica. É ainda mais grave para eles pelo que eles passaram? Pode ser. Mas a gente tem que lembrar que o (líder judaico) Henry Sobel fez a primeira denúncia do assassinato do meu pai. Uma vez que na cultura judaica se uma pessoa se suicida, ela tem de ser enterrada junto aos muros no cemitério judaico. Ele enterra meu pai no meio denunciando que ele não havia se suicidado. Uma boa parte da comunidade da época caiu em cima dele, de maneira muito forte.
O POVO: Qual o motivo de senhor achar que apenas alguns trechos dos documentos da CIA foram revelados e por que fazer isso agora?
Ivo Herzog: A CIA tem um processo de abertura de documentos. Na época em que são concebidos recebem uma classificação de diferentes níveis que aponta a quantidade de anos que têm que ficar em sigilo. Não sei os diferentes níveis, mas tem uma data. Bateu o sino e está desclassificado. Mas tem que ter alguém que olhe o arquivo. Eu tenho informações porque a gente vem trabalhando com isso, temos uma equipe trabalhando nos Estados Unidos e outra na Inglaterra que têm dezenas, se não centenas de caixas de documento daquele período que dizem respeito ao Brasil à disposição para serem pesquisados. A gente está montando um projeto para levantar recursos para pesquisadores olharem esses documentos, tirar o que tem de interesse, fazer cópia e trazer para análise.
O POVO: As informações da CIA foram uma surpresa para a família Herzog?
Ivo Herzog: Eu cresci ouvindo falar em “porões da ditadura”. E o que a gente aprendeu é que não existiam os porões da ditadura. O que existiam eram os palácios da ditadura porque os processos começavam no Palácio do Planalto. Não era um pequeno grupo radical dentro do governo que estava agindo sem o conhecimento de toda a linha de comando. Na verdade, toda a linha de comando tinha consciência do que estava acontecendo e estava dando o aval para que aquelas coisas acontecessem. Geisel não era tão moderado quanto se supunha.
Formação
Ivo é engenheiro formado pelo Escola Politécnica da USP, com experiência no setor público e privado. Ele é um dos fundadores do Instituto Vladimir Herzog.