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[FOTO1] Leve e intimista, a bossa nova murmurou ao pé do ouvido da poesia modernista: "tira meus versos do lugar, faz graça de meus sons". Envolvida pela provocação, a poesia encontrou a bossa e nela se deleitou. Símbolo de uma geração nascida nos anos 1950, Tom Jobim foi um dos compositores que incorporaram o modernismo, dando novo significado à própria obra. Usando letras para falar de notas musicais ou sons para formar palavras, sua voz desnudou o cotidiano em suas miudezas - formando um cancioneiro tão apaixonado pela língua quanto descompromissado com o rigor da gramática.
Nas letras, nas artes visuais e na música, a Semana de Arte Moderna de 1922, ocorrida em São Paulo, deixou certa atmosfera de renovação pela arte no País. A poesia, por exemplo, rompeu com a métrica e desfez sua preocupação com a formalidade: palavras transformam-se em imagens, às vezes pouco lógicas, em um estilo que se abre à multiplicidade de sentidos. "Talvez a Bossa Nova, nos anos seguintes, tenha buscado esses elementos, mas o fez sem grandes polêmicas", considera a etnomusicóloga Maria Juliana, do curso de Música da Universidade Federal do Ceará (UFC). "A verdade é que a bossa não queria ser movimento. Não nos moldes industriais e selvagens da Semana de 1922", explica.
Para Elvis Matos, a estética impressionista - que abriu precedentes para o Modernismo - deixou marcas muito significativas no cancioneiro desse estilo musical. "As influências de Chopin e Debussy dilataram o terreno tonal da bossa nova, e as canções são reflexo disso", considera. Professor de Música da UFC, Elvis acredita, no entanto, que a mudança no caminho harmônico e melódico da bossa não encontra os mesmos correspondentes no plano verbal. "Há uma certa ingenuidade poética nas letras, algumas delas são até meio 'ensolaradas', numa tradução quase contemplativa da realidade", pontua.
Figura emblemática da Semana de 22, o maestro Heitor Villa-Lobos deixou marcas profundas na obra de Jobim, que também era leitor assíduo de Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, ambos escritores modernistas. Experimentando essa literatura, Tom enxergou, na música, uma estética que une, a um só tempo, palavra e melodia. "Ele era obcecado pelas letras e por dicionários. Tinha cinco de rimas e três de português-tupi", lembra Cacá Machado, músico e autor do livro Tom Jobim, lançado pela Publifolha. Para ele, toda a obra jobiniana reflete esse procedimento estético dos autores modernos: "seja na abundância de imagens, na musicalidade dos encaixes de versos ou na associação de palavras".
"Não teve um dia em que ele não esteve junto do dicionário", brinca Daniel Jobim, neto do músico, em entrevista ao O POVO por telefone, lembrando também que enquanto estava compondo, o manejo das palavras era parte importante do processo criativo do maestro. Nos livros, Tom também encontrava referências para suas obras. A música Passarim, por exemplo, traz no título um termo utilizado por Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. "Ele estava sempre em torno desses livros, mas também amava decorar versos, repeti-los, brincar com eles. Os poemas de Fernando Pessoa, T. S. Elliot e Drummond eram seus prediletos", elenca Daniel, citando diferentes gerações do modernismo.
Por isso é que, para Cacá Machado, a novidade linguística da bossa de Tom é o equilíbrio entre musicalidade e poética. "Ele tira a poesia de seu lugar parnasiano (corrente literária anterior ao modernismo), dessa ideia de rima muito solidificada. Ele cria relações por meio de metáforas, brincadeiras com a linguagem, omissão de palavras. Vai, pelo contrário, percorrendo caminhos não tão óbvios, muito mais sugestivos", explica.
Tom Jobim dizia que compreende a música como "o silêncio que existe entre as notas". "Às vezes esse 'silêncio' é até muito sutil, como na canção Samba de uma Nota Só, que tem estruturas propositalmente simples, já que o foco é a relação letra/melodia", pontua Cacá. Ele acrescenta que diferentes vozes populares encontram-se com o erudito para formar uma autêntica "dicção" jobiniana - a paixão pelo Rio, o encanto pela fauna, a voz que canta o mar e que também exalta o interior do Brasil. É na interação entre palavras, harmonia e voz que, como reitera o pesquisador, Tom Jobim expressa sua intimidade com a literatura moderna. "Nele, harmonia e letra se encontram para formar um todo musical poético e ao mesmo tempo singular". Fotografia
Fotografia quebra expectativas em torno de uma conquista amorosa, assim como Lígia. Ao comentar que o olhar da mulher parece "acompanhar a cor do mar", Tom descreve as mudanças de luz causadas pela transição do dia para a noite. Para isso, ele enuncia sucessivos quadros estáticos que lembram, como bem diz o seu título, fotografias. Águas de Março
Os primeiros acordes de Águas de março saíram enquanto Tom trabalhava na canção Matita Perê. Abandonando a narrativa tradicional, a letra sobrepõe imagens e palavras para construir um percurso verbal que busca "captar as experiências fragmentadas do dia a dia", como diz Santuza Naves em livro Brasil em uníssono.
Lígia
Feita para Lygia Moraes, esposa de Fernando Sabino, cronista do modernismo e amigo de To. É uma canção que, em sintonia com a literatura moderna, tem tom irônico que lembra, por exemplo Oswald de Andrade. Assim como o autor, ele escolhe suprimir o "derramamento" sentimental para dar lugar a uma visão mais realista das relações.
Corcovado
Com linguagem simples, a narração sentimental dá lugar para a presença contínua da paisagem e da sensação de instante. Esse lugar de narrador que descreve quadros do cotidiano também aparece no poema Inverno, de Mário de Andrade, pioneiro da poesia moderna brasileira com o livro Paulicéia Desvairada (1922).
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