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A dor que se transforma em luta
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A dor que se transforma em luta

Companheira de Marielle Franco durante 14 anos, a viúva da parlamentar prossegue na luta por resposta sobre quem matou a vereadora
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Vamos pular essa pergunta?", sugere Mônica Benício. O pedido vem por quase dois minutos de lágrimas silenciosas após a última questão da entrevista com a viúva de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada na noite do dia 14 de março de 2018. "O que Marielle representa para ti?". Monica apenas baixou a cabeça e chorou como quem acostumou-se a lutar por justiça pela morte da companheira de vida, mas ainda não consegue elaborar a ausência do "amor da minha vida", como ela descreve mais de uma vez ao longo da entrevista.

 

Arquiteta e defensora dos direitos humanos, Monica Benício esteve em Fortaleza para receber o prêmio Frei Tito na Assembleia Legislativa do Ceará, conferido a Marielle Franco em memória à luta da parlamentar por direitos humanos.

 

O POVO: O ano de 2018 está se encerrando. Como você está?

Mônica Benício: 2018 o ano que nunca terminou. Cada dia desse ano parece que demora um mês para passar. Difícil hein, essa pergunta é difícil. Eu evito responder porque geralmente eu começo a chorar quando respondo. Porque é fácil a gente ficar falando de pauta política, de investigação. Quando perguntam como a gente está, a gente tem que fazer um exercício de reflexão, aí é sempre mais difícil. É luta, todos os dias. Não tem mais rotina, não tem casa nesse momento, não tem uma série de coisas e a questão da ausência, enfim.

 

OP: Em agosto, uma nova promotora assumiu a investigação do assassinato de Marielle Franco e trocou toda a equipe. Em novembro, a Polícia Federal começou a apurar possíveis interferências na investigação do assassinato.

Mônica Benício - Investigação da investigação.

 

OP: Como você enxerga a maneira como estão sendo realizadas as investigações, após nove meses sem muitas respostas?

Mônica Benício - Sem muitas não, nesse momento sem nenhuma resposta. Enxergar essas investigações hoje é sempre uma preocupação. A gente já passou dos nove meses e a Marielle foi executada em um contexto de intervenção federal de caráter militar. O interventor havia se pronunciado que até o final da intervenção, ou seja, até o final desse ano, essa resposta seria dada ao Brasil e, recentemente, já fez uma outra declaração que provavelmente essa resposta não virá ainda esse ano e que está mais comprometido com o resultado do que com o prazo. Se pronunciou também o chefe de Segurança falando a respeito da investigação dizendo que isso tinha a ver com um caso de milícia, que era por uma atuação da Mariele na zona oeste (do Rio de Janeiro) a respeito de terras, de grilagens. Uma coisa que é absurda, porque a Marielle não tinha atuação na zona oeste. A Marielle teve votos em todas as zonas eleitorais, mas ela não (tinha), enquanto mandato, atuação na zona oeste. A Marielle era uma especialista em segurança, foi coordenadora da Comissão de Direitos Humanos, esteve com o deputado estadual Marcelo Freixo durante todo o processo que ele presidiu a CPI das Milícias. Marielle conhece, conhecia os perigos que são a milícia, a ameaça que isso representa no Rio de Janeiro. Ela jamais teria negligenciado a própria segurança, o que faz com que a colocação do representante de segurança seja, inclusive, leviana, porque ele não apresenta provas ao dizer isso e fica uma coisa meio substancial. Mas é muito preocupante, porque tudo que a gente tem das investigações a gente sabe através da mídia, como vazamento de informação. As autoridades competentes não se colocam para dizer se é verdade ou se é mentira. Ultimamente, a gente tem visto uma série de notícias que saem com a manchete de que foram presas pessoas envolvidas no assassinato da Marielle, aí quando você termina de ler a matéria não é nada disso. Na verdade, a pessoa está relacionada a um outro homicídio ou a um outro inquérito e pode vir a ter, talvez, quem sabe relação com o assassinato da Marielle. As investigações correm sob sigilo e a gente olhando para a história do Brasil, é óbvio que um crime como esse tenha sim que acontecer sob sigilo, consigo compreender isso perfeitamente. Agora, sigilo é diferente de silêncio. O que a gente tem hoje das autoridades competentes envolvidas na investigação é um silêncio que chega a ser desrespeitoso, não só com a família mas com toda a sociedade que quer saber quem matou Marielle Franco.

 

OP: Então, a prisão que foi feita na sexta-feira e hoje (terça-feira) também teria tido uma prisão?

Mônica Benício - Não tem relação com o homicídio da Marielle.

 

OP: Não é uma resposta?

Mônica Benício - Não, de forma nenhuma. Infelizmente.

 

OP: A visibilidade internacional tem ajudado a fazer pressão para obter alguma resposta?

Mônica Benício - A pressão internacional é fundamental para a gente manter esse andamento do caso e essa pressão para que a investigação ocorra, porque o Brasil é um país com uma memória muito frágil, que tem, em crimes como esse, que tudo indica que tem participação de agentes do estado, uma figura política muito poderosa por trás disso, tão poderosa que consegue planejar uma barbárie dessa com a plena certeza de impunidade, a gente precisa sobretudo da ajuda internacional para constranger o governo brasileiro para que se posicione e diga que está investigando e que apresente a resposta efetiva, porque o assassinato da Marielle transbordou as fronteiras do Brasil. O mundo quer saber o que foi que aconteceu. Eu tenho tido apoio e uma solidariedade internacional impressionante. Os acolhimentos que eu tenho tido (na) Europa e América Latina têm sido algo que motiva a continuar na luta, porque é uma rede de solidariedade que se comoveu muito com a história da Marielle.As minhas colocações são no intuito de falar sobre a barbárie que aconteceu com a Marielle, mas também para dizer que é inadmissível que assassinatos como esse aconteçam com ela ou com qualquer outra pessoa e que gente precisa modificar essa sociedade para que não (se) tenha mais casos tão bárbaros como o da Marielle, porque enquanto a pessoa que articulou isso estiver livre, não responder pelo que fez, uma sociedade inteira está sob ameaça, porque pode acontecer com outras. Não só com outras figuras políticas.

 

OP: Como é que foi esse processo de assumir essa militância?

Mônica Benício - Na verdade, eu nem vi isso acontecer. Eu fiquei os primeiros meses reclusa. Eu detesto falar em público, morro de vergonha, e quando eu fiz a primeira fala pública foi no Congresso em uma homenagem. Eu nem lembro direito. Eu tenho flashs dos três primeiros meses da minha vida depois do 14 de março. Eu não estava com acesso a redes sociais, internet, não via televisão nem lia nada. Quando eu acordo um pouco desse transe, eu já tinha me tornado figura pública sem saber que isso estava acontecendo. Eu tinha uma profunda dor e uma profunda indignação, então eu fui fazendo as coisas em um movimento muito automático, eu não vi acontecer. Aos poucos, as coisas foram se acomodando de outra forma e quando as pessoas começaram a falar 'você me inspira' (ou) 'você me dá esperança', outra chave foi virando. Uma chave que me colocava com mais responsabilidade para olhar o que de fato eu estava fazendo, porque até então eu estava querendo justiça porque eu perdi o amor da minha vida. E o Estado não estava respondendo e tudo aquilo era absurdo, eu não conseguia acreditar que aquilo tinha acontecido? Eu fui vivendo uma coisa num fluxo muito contínuo. Depois, eu comecei a ter pessoas ao meu redor dizendo que eu estava representando outras pessoas, aí eu comecei a olhar isso com um pouco mais de responsabilidade. Inclusive, a respeito da minha própria segurança, que no começo eu negligenciei muito. Eu falei 'ah, na noite do 14 de março já me tiraram tudo que eu tinha, então eu não tenho motivo para ter medo' e eu entrei numa espécie de operação kamikaze, tipo dane-se. Outras pessoas ao redor vieram falando 'olha, a sua vida hoje não pertence mas só a você'. Eu fiquei meio em choque com aquilo e achei absurdo, que desaforo, como a minha vida não pertence mais só a mim? Mas depois eu fui vendo essa construção com mais responsabilidade. Eu comecei a receber convites, inclusive internacionais, para montar mesas representando o Brasil enquanto defensora de direitos humanos, enquanto ativista LGBT. E aí eu fui entendendo que eu não estava mais falando só enquanto a viúva da Marielle, mas enquanto defensora dos direitos humanos que defendia as mesmas pautas que Marielle. Dar continuidade a isso é manter a Marielle viva, manter a memória dela preservada. Para mim que não fiz o luto, me enganei nesse processo de luto, é também uma forma de continuar estando com ela.

 

OP: Você falou da acolhida internacional, mas como é ver essa movimentação aqui? Como é ver a Marielle espalhada pelo Brasil?

Mônica Benício - Do campo pessoal, é meio esquisito. No início, sobretudo, era muito difícil, porque foram muitas imagens replicadas. É estranho ver a quantidade de imagens, às vezes existe um certo descolamento, inclusive, do que era a vereadora e do que era a minha companheira. Hoje isso começa a ficar um pouco mais fácil de ver, mas no início era muito difícil. Agora, entendendo isso dentro do contexto social é maravilhoso, porque é dizer que a vida dela não foi ceifada em vão. Obviamente que qualquer um que conhece, até os que não conhecem e se sensibilizaram um pouco com a história, trocaria a repercussão e todo o movimento positivo que vem sendo feito ao redor dessa barbárie, trocaríamos para ter ela aqui. Diante desse drama que foi, pelo menos entender que é uma resposta bonita de alguma forma.

 

OP: A bancada do Psol aumentou, quatro assessoras da Marielle foram eleitas. Eu lembro que durante as comemorações, no dia das eleições quando saíram os resultados, falava-se muito que a Marielle floresceu, que a Marielle virou semente. Como você vê os próximos anos?

Mônica Benício - Na verdade, foram três assessoras dela e a Talíria Petrone para (deputada) federal, que era amiga pessoal e vereadora de Niterói. Eu acho que essa foi uma conquista muito importante, foi ressignificar a noite do 14 de março, de uma noite de barbárie e de dor (para) uma leitura que a gente pode entender enquanto esperança, de modificação. Principalmente pelas mulheres pretas, que é esse corpo mais vulnerável na sociedade brasileira, elas tinham tudo para dar um passo atrás e sentir medo e falar 'se eles fizeram isso com a Marielle, que era parlamentar imagina (com a gente)'. E não. Elas foram para cima, colocaram o corpo a disposição da luta, fizeram uma campanha belíssima e foram eleitas. A gente mostrou enquanto sociedade nas urnas que a gente não aceita a noite do 14 de março, que a gente não aceita a tentativa de intimidação. Eu acho que a Marielle se torna esse símbolo de esperança, de que a gente pode sim lutar e que deve seguir lutando. Olhar o futuro, obviamente, nesse contexto político que a gente tem, com um presidente eleito sendo fascista, no Rio de Janeiro o governador também é, o deputado estadual mais votado foi o que quebrou a placa em homenagem a Marielle. O cenário de barbárie e a tentativa de pôr medo através dos discursos de violência e de ódio é muito grande, mas eu não vejo motivo nenhum para recuar e acho que, se a gente pode ver alguma coisa positiva nisso tudo, é entender que a imagem da Marielle ressignificou uma luta e deu mais esperança, inspirou mais a gente a resistir e seguir lutando.

 

OP: Você segue lutando pela Marielle?

Mônica Benício - Não só pela Marielle, mas para que não aconteça mais nada parecido com ninguém, para que ninguém tenha que sentir a dor que eu senti e porque a gente precisa construir um modelo de sociedade mais justa e igualitária e reformar essa política velha que, definitivamente, não nos representa mais.

 

Assassinato

A vereadora Marille Franco foi morta a tiros, juntamente com o motorista Anderson Pedro Gomes, no dia 14 de março passado.

 

Lapa

No dia do assassinato, a vereadora do Psol havia participado de um evento chamado “Jovens Negras Movendo as Estruturas”, na Lapa.

 

Autor?

Embora a Polícia tenha feito algumas prisões ligadas ao caso, o assassinato de Marielle e de Anderson ainda não foi esclarecido.

 

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