O prêmio máximo da mostra Un Certain Regard, segunda mais importante do célebre Festival de Cannes, foi neste ano, de maneira inédita, entregue a um filme brasileiro. A alegria e orgulho nacionais após a conquista reverberam com força no Ceará, terra de nascimento de Karim Aïnouz, diretor responsável pelo premiado A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. O cinema nacional ainda foi destacado na competitiva principal de Cannes com o Prêmio do Júri entregue ao pernambucano Bacurau, de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho - que, vale ressaltar, conta com cearenses e radicados no elenco, como Silvero Pereira, Fabíola Liper, Rodger Rogério e Uirá dos Reis.
A Vida Invisível de Eurídice Gusmão se passa no Rio de Janeiro dos anos 1950 e é protagonizado por duas jovens irmãs, Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), que vivem as consequências do conservadorismo familiar e social do período. Guida, apaixonada por um marinheiro grego, foge de casa rumo a um ideal de romance enquanto Eurídice se divide entre o desejo de estudar piano e a obrigação da vida matrimonial. A partir daí, as trajetórias das irmãs são forçadamente separadas por forças objetivas e subjetivas do patriarcado. Em participação especial, a atriz Fernanda Montenegro faz a ligação direta entre a década de 1950 e a atualidade ao retratar a Eurídice de 2019.
Essa não é, porém, a primeira vez que Karim lança olhar para temas e personagens à margem. Madame Satã (2002), O Céu de Suely (2006) e Praia do Futuro (2014) são alguns dos exemplos na obra do cearense que contam histórias escondidas nos "entres" da hegemonia. Praia do Futuro, inclusive, foi alvo de reações conservadoras à época do lançamento comercial, com direito a boatos de que salas de cinema estariam carimbando "avisos" aos espectadores sobre as cenas de sexo entre dois homens que compõem a obra.
Mesmo morando há anos na Alemanha, Karim mantém agenda frequente em Fortaleza para cumprir a tutoria do Laboratório de Audiovisual do Porto Iracema, onde acompanha processos de escrita de roteiros selecionados. Foi no Cena 15, local em que ocorrem as tutorias, que o cineasta recebeu a equipe do O POVO na última quinta, 20, para conversar sobre o significado da vitória em Cannes, o conservadorismo no País e a celebração da cultura brasileira como forma de curar o delicado momento sócio-político nacional.
O POVO - Queria iniciar num nível pessoal: desde a vitória em Cannes, que é inédita para o cinema brasileiro, o que você vem sentindo?
Karim Aïnouz - Hoje faz um mês da exibição. Foi impressionante, eu nunca tinha vivido aquilo. Foi muito bonita, no sentido de que o filme tocou muita gente, teve muito tempo de aplauso. Foi uma recepção muito calorosa. O prêmio, na verdade, aconteceu para mim ali. Acho que ainda estou vivendo isso. Foi uma recompensa não só pelo filme em si, mas pelo trabalho que eu venho fazendo. Eu comecei a fazer cinema em 1989, então tem 30 anos. (A premiação) foi na mesma sala onde eu passei meu primeiro filme, Madame Satã (longa de 2002 de Karim que foi selecionado para a mostra Un Certain Regard da edição daquele ano do Festival de Cannes), foi no mesmo dia da semana que o filme passou. Eu fico: 'pô, que bom, tá valendo a pena continuar fazendo isso'. Eu sei que é um prêmio inédito para o cinema brasileiro, é a primeira vez que a gente ganha ele na história do Festival de Cannes. Nesse momento especificamente no Brasil - onde existe um certo desejo de se vilanizar quem faz cultura, cinema, todo um movimento de descontinuidade em relação às políticas do audiovisual -, acho que esse prêmio foi recebido com muita alegria no mundo e no País e essa alegria me contamina muito. É sempre uma aflição grande depois que a gente termina de fazer um filme. 'Será que a gente vai conseguir fazer outro?'. Nesse sentido, essa premiação me dá uma sensação de que, sim, outros filmes vão ser feitos e talvez não sejam tão difíceis de
serem realizados.
O POVO - Ele deve ser lançado no segundo semestre, correto? Quais as expectativas para
essa estreia?
Karim - Fortaleza vai ser o primeiro lugar em que a gente vai lançar no Brasil, entre agosto e setembro. É uma coisa que eu fiz questão. Depois, a gente tem o lançamento nacional em 31 de outubro. A expectativa de qualquer filme é que ele seja visto pelo maior número de pessoas possível, mas isso também não é automático. Qual é o trabalho que vai ser feito para que esse filme alcance um público que seja o maior possível? Acho que a expectativa é no trabalho de comunicar o filme e acho que o prêmio já ajudou muito.
O POVO - O filme vem sendo vendido como um "melodrama tropical". Como veio seu interesse por esse gênero, inclusive na sua obra anterior?
Karim - Eu sempre gostei muito, é uma vontade que eu tinha. As novelas da década de 1970, por exemplo. Hoje elas ainda são pautadas por esse gênero, mas acho que existia uma sofisticação maior na década de 1970, principalmente nas da Janete Clair (1925-1983), Dias Gomes (1922-1999). Tinha uma coisa que eu achava muito fascinante e que tenho memórias muito fortes. Eram feitas com atores muito impressionantes, que vinham do teatro. O melodrama é um gênero muito produtivo, muito bonito num momento que você tem algum tipo de crise social. É a história de um personagem que está lutando para colocar a cabeça fora d'água e o mundo o está empurrando para debaixo dela. Ele é produtivo para falar de personagens marginais, que são preteridos pela sociedade. Me interessava muito, num momento onde você tem um País completamente dividido. Ele é um gênero que chega para o espectador pelo coração, pela emoção, é muito familiar ao público brasileiro - de novo, a teledramaturgia, a própria rádio-novela, era muito pautada no melodrama. Para mim, era um pouco (pensar) como é que eu me aproprio desses códigos, uma linguagem que o público conhece muito bem, e como atualizo isso, porque é um gênero que tem séculos? 'Melodrama tropical' foi uma coisa que eu pensei logo antes do filme ficar pronto. Ele é de fato um melodrama e, quando eu falo 'tropical', significa que se passa nos trópicos com todas as especificidades que tem nos trópicos não só no sentido geográfico, mas também cultural. Quando a gente fala de cinema brasileiro, parece que é um gênero, né? É um 'filme brasileiro'. Na verdade, a gente tem um cinema feito no Brasil que pode ter gêneros diferentes. Você tem, por exemplo, Tropa de Elite e Cidade de Deus, que são de ação, e tem filmes que me inspiraram, que são A Hora da Estrela e Central do Brasil, melodramas. Como é que eu lanço mão de um gênero e o torno brasileiro? Quais os elementos que tornam esse gênero nosso? O 'tropical' vem muito daí.
O POVO - Muitas novelas e Central do Brasil, citados por você, têm participação da Fernanda Montenegro, que está no seu filme. Como foi a escolha dela e do elenco?
Karim - As duas atrizes que fazem as irmãs são jovens que eu escolhi fazendo teste de elenco. Quem faz o papel da Guida é a Julia Stockler. A Carol Duarte, que faz a Eurídice. Para mim, é sempre importante também que um filme jogue luz em novos talentos. A escolha pela Fernanda se dá na hora que eu decidi que o filme tinha que terminar no agora. 80% dele se passa entre 1950 e 1958 e para mim era muito importante pensar quem são, hoje, essas mulheres que passaram por isso naquele momento. Elas estão vivas, têm entre 80 e 90 anos, a gente as encontra no supermercado, às vezes são nossas avós, nossas tias-avós, das quais a gente sabe muito pouco. No momento em que a gente pensou quem poderia fazer o papel, a Fernanda me pareceu a pessoa mais adequada não só pelo talento dela, mas (por ser) um pouco essa mulher também. Tinha muitas semelhanças da própria Fernanda, uma mulher que tem brilho próprio e que representa o Brasil de maneira muito potente. A última coisa que eu diria da Fernanda é que a gente vive hoje no País não só um desmonte da cultura, mas um desmonte da inteligência. É muito impressionante o presidente que temos eleito, os debates que a gente está vendo hoje. Às vezes eu fico pensando: quem é representante do Brasil? O que é o Brasil? Se a gente fosse pensar em alguém emblemático do que é esse País, ela também é isso. Era muito importante celebrar uma mulher que tem a idade que ela tem, a inteligência que ela tem, a história que ela tem. Para mim, tinha uma coisa muito importante que era terminar o filme com a imagem dela.
O POVO - No seu discurso na vitória em Cannes você falou sobre a situação do País, a perseguição à cultura, à diversidade, e a Fernanda também é vocal sobre isso. Que tipo de ação ou posicionamento você defende que a arte, os artistas, devem ter nesse momento?
Karim - O que a gente pode fazer nesse momento é fazer o que a gente sabe fazer. Acho que não é um discurso que a gente tem que colocar na rua. O cinema vai para um lugar que é muito anterior ao discurso, que é o lugar da emoção, mesmo. A melhor coisa que a gente pode estar, de alguma maneira, é celebrando e é muito importante que a gente pense: o Brasil é Fernanda Montenegro, o Brasil é Elza Soares, o Brasil é Linn da Quebrada. Tem uma série de coisas que estão acontecendo no Brasil hoje que são muito impressionantes e eu acho que, mais do que fazer um ataque frontal à maneira com que os artistas estão sendo colocados, é importante que a gente faça um ataque com o que a gente tem, que é o cinema, a música, a interpretação, o teatro. Me vejo hoje num lugar que prefiro falar através do que eu faço.
O POVO - Na época do Praia do Futuro (último filme lançado por Karim no Brasil, com Wagner Moura e Jesuíta Barbosa), há cinco anos, houve toda a polêmica em relação às cenas de sexo entre dois homens. Como você olha para essa controvérsia de hoje, tendo em conta a escalada do conservadorismo que ocorreu nesse tempo?
Karim - O que aconteceu, na verdade, foi uma discriminação gigante ao filme na hora que ele foi lançado. A gente ainda conseguiu fazer perto de 200 mil espectadores, o que é gigante para o filme. O Brasil mudou, o mundo mudou, e a escalada do conservadorismo é uma escalada do patriarcado. O machismo ficou de alguma maneira vulnerabilizado com as pautas feministas muito frontais contra ele. Acho que tem um certo desespero do machismo de continuar numa posição de poder. Eu fico pensando o que teria acontecido se o Praia tivesse sido lançado hoje. Ele provavelmente teria sido queimado em praça pública. Mas, ao mesmo tempo, eu continuaria querendo fazer o mesmo filme hoje. O maior antídoto para qualquer tipo de comportamento intolerante é celebrar a diversidade como algo alegre, que tem que ser vivido, que é absolutamente definidor de quem nós somos. Se há alguma coisa que define o Brasil, é a diversidade. Não só no sentido de orientação sexual, quanto de gênero, étnico, é um país continental, culturalmente também.
O POVO - Você falando disso agora, e eu penso em relação à recepção ao seu novo filme, que é um filme com mulheres protagonistas, de feminismo…
Karim - Eu não sou mulher, então não seria correto falar que é um filme feminista, mas acho que é um filme anti-machista. O filme fala muito de até onde as convenções de uma sociedade patriarcal têm que ser respeitadas e até onde elas começam a ser tóxicas. Ele é um filme antes de mais nada sobre sororidade, mas também solidariedade, cumplicidade. O quão mais cúmplice formos, mais fácil vai ser a gente resistir a
forças antagônicas.
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