Existe um cheiro que me faz voltar a exata cena de um abraço que meu pai me dava. Ele não era alto, eu tampouco, mas ele me abraçava com um braço só, e eu encostava o ouvido em seu peito. Aconchegada, sentia o perfume da barba, que se misturava com o sal da pele. Se fecho os olhos e respiro fundo, consigo sentir fagulhas desse aroma e é como se eu estivesse protegida de novo. Tenho muitas memórias que me levam ao meu pai: a cor de sonho dos olhos, o sabor apurado da comida, o amarelado das páginas de livros velhos. Mas quase nada é tão forte quanto esse cheiro. A não ser a casa cheia de melodia. É que música é feito perfume.
Painho, seu Francisco de Fátima, era múltiplo: em saberes e em gostos. Acho que por isso, cada pessoa lá de casa encontra ele em uma música diferente, ou em discografias completas. Sinto um nó se formar no peito com quase toda canção que Chico Buarque canta, minhas três irmãs e mainha não podem ouvir Toquinho, Vinicius de Moraes, Luiz Gonzaga sem se conectarem diretamente com ele. Passei a última semana ouvindo canções, enchendo a casa de música como ele fazia e tentando escolher uma só.
Foi quando Chico sussurrou Todo Sentimento pelos fones de ouvido e eu entendi. "Depois de te perder, te encontro com certeza, talvez num tempo da delicadeza" se prendeu ao meu coração como uma esperança e eu consegui sentir papai me abraçar, o mesmo abraço de um braço só, o mesmo cheiro. Música é mesmo feito perfume.
Joana, Camilo, Haroldo e Alexandre. Quatro filhos de famílias de quatro irmãos, assim como a minha, que seguiram os caminhos abertos pelos pais: Ednardo, Eudoro, Haroldo e Sérgio. Que músicas os fazem sentir a presença desses homens que construíram parte da ideia do sentimento que vocês entendem como felicidade? Foi essa a indagação que fiz a cada um deles. Os depoimentos das páginas a seguir foram compostos a partir das entrevistas. Em todos, uma certeza: pai também tem nome de amor.
O PROJETO
"Meu pai em uma canção" é um projeto transmídia que reúne textos, vídeos, internet e uma promoção que convidava o leitor do O POVO a enviar uma lista de quatro canções. As 16 canções dos quatro sorteados tocarão neste domingo, 11, na Nova Brasil. Os quatros depoimentos publicados nesta edição foram compostos a partir de entrevistas, que também renderam uma websérie, disponível no O POVO Online e no YouTube.
A luta por liberdade
PAPAI CHEGOU numa caminhonete C10 e a gente fez uma festa. Foi um alívio imenso. Era junho de 1974, ele era diretor industrial de uma grande empresa no Cariri, mamãe estava grávida da minha irmã caçula e, um mês antes, no domingo de Dia das Mães, papai sumiu. Foi chamado para prestar depoimento e desapareceu. Soubemos depois que ele estava preso em Recife, sendo torturado. Eu tinha seis anos, mas lembro de que houve momentos em que a gente achou que papai não retornaria mais. Alguns amigos nunca regressaram. Estavam presos no mesmo local, e desapareceram, morreram...
Durante aquele mês, minha mãe interpretou o desaparecimento como sequestro e mobilizou amigos - isso fez com que a ditadura militar ganhasse a antipatia de muita gente na região. A minha avó, viúva de um renomado professor de Direito e aluno da Escola Superior de Guerra, também contatou ex-colegas dele do alto comando do Exército. Foi o que trouxe meu pai de volta pra casa.
Ele nunca falou muito dos detalhes, mas nos dizia que quem era preso, assim como foi, estava lutando por liberdade, por democracia, pelo direito de poder se expressar. Ouvir a voz de Geraldo Vandré pela casa, nesse momento de ditadura, era uma constante. A música que foi símbolo de resistência, Pra não dizer que não falei das flores, foi também um retrato do meu pai, Eudoro Santana. E é um lembrete para que não esqueçamos a luta que muitos travaram.
Toda a trajetória dele é digna de admiração, mas acho que a sua batalha para que o País fosse livre é meu maior orgulho. Imagino o sofrimento de alguém que é torturado, e, ainda assim, consegue superar. Muita gente, que passou pelo que ele passou, vive traumas até hoje.
Acho que vivenciar toda a luta dele me influenciou a entrar na vida pública. Ele sempre dizia que a gente tinha de passar pela vida dando uma contribuição para melhorar e mudar o mundo. A política foi um dos caminhos que ele encontrou de fazer isso. Ele é minha referência não só de homem público, mas também de amor, de respeito.
E, para além daquele mês angustiante de ausência, papai sempre foi presente. Ainda no período de ditadura, ele fazia as reuniões nas comunidades, e, pra reunir as pessoas, eu o ajudava a montar um projetor de super-8 pra passar filmes. Quando dava a hora de fazer a lição de casa, ele, muito bom em matemática, me ajudava. Outra coisa que a gente fazia muito era jogar futebol. Dia de sábado, a gente acordava cedinho e subia a Serra do Araripe. Ele dirigia, e eu recolhia pequi pelo caminho, que era para agradar mamãe. Aos domingos, a gente já grande, ia todo mundo de volta pra casa. O almoço, como até hoje, é ele que faz questão de cozinhar. Papai também foi e ainda é meu conselheiro.
Ele tem alguns ensinamentos que foram moldando as nossas vidas. Papai sempre diz que o que a gente tem de mais importante é o nosso nome, é nossa maior riqueza. Ele fala também que o poder é passageiro e que é preciso ter essa compreensão, de que a gente está aqui cumprindo uma missão que tem de ser exercida com muita honra, muita responsabilidade, toda a energia necessária, mas que ela passa. Saber disso nos blinda de sermos modificados pelo poder. A terceira lição é que a gente precisa sofrer um pouquinho para aprender a viver. E é preciso viver!
Procuro conversar sempre com ele. Papai é muito carinhoso, mas também muito sincero, então, se ele não concorda com algo, ele vai me dizer. Sempre digo que, a contar pela crença que ele ainda tem num mundo melhor, pela contribuição que ele permanece dando, e pelos sonhos que ainda cultiva, aos 82 anos, papai é um jovem.
PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES
A música como amálgama
É das minhas primeiras memórias de cores muito nítidas, de um afeto forte: eu tinha quatro anos, era meu derradeiro ano de filha única, e me vi, como outras muitas vezes, entremeada no ninho de fios dos microfones, dos instrumentos. A Massafeira fazia seu primeiro evento, que dali virou disco, e eu mirava como encantamento meu pai cantando no palco. Tenho certeza que ali comecei a forjar meu caráter artístico e a minha ligação com papai. Temos, ele e eu, um entendimento tão profundo, de só olhar, de apenas estar junto, que é até difícil pôr em palavras. Tenho para mim que são almas que se unem mesmo.
Peço licença para, aqui, chamá-lo de pai, papai, porque é isso que ele é, e sempre vai ser. Mas ele é também, além de pai meu e de meus três irmãos, o Ednardo. Sim, o cantor cujos versos e a voz adentraram as vidas de tanta gente, como também o faz, em ainda maior intensidade, com a minha. Lembro-me de, adolescente, naquela idade em que a dor de amor machuca e o que mais se quer é ouvir a canção que lhe traduz, escutar Flora. Era meu pai quem me guiava. Mas antes disso, bem antes disso, a voz dele é meu norte.
Quando ele diz "A manga rosa, Maria Rosa/ Rosa Maria Joana..." é sobre mim, sobre minha mãe, sobre minha avó. É sobre eternizar a gente em uma canção e isso me enche de orgulho. Papai fez essa música em 1975, eu nascia primogênita, como ele também foi. Sempre carreguei essa melodia comigo, desde as minhas mais remotas memórias, essa música já estava presente no meu imaginário. E outras tantas, e músicas de ninar, e as canções que celebravam o rebentar dos meus irmãos.
Recordo ele compondo em casa canções que depois eram repetidas por multidões. Para gente, música é feito amálgama, uma coisa que une, mesmo que nem todos os filhos tenham seguido carreiras artísticas. Em nossa casa, sempre houve a música aproximando, nos ensinando, nos guiando, nos permitindo sonhar. Como papai, como sua voz que permanece inalterada, mesmo com os passar dos anos.
Sou fã número um da voz dele. Acho que ele, não apenas é um dos compositores que mais cantou as belezas do Ceará, mas é também um dos que tem a voz mais forte, mais potente. Agora que estou começando também a enveredar pelo lado da música, vejo como é difícil os agudos que ele atinge. "Está Escrito" que primeiro se deve viver. Eu sou atriz há 30 anos, sou mãe da Sophia, e tive de me armar de amor e coragem para decidir cantar. E, mais ainda, para cantar a arte de Ednardo. Ele deu a benção e, todas as vezes que me apresento, me emociono muitíssimo. Tanto que A manga rosa ainda não entrou no repertório. Para mim, só faria sentido de cantar se fosse com ele. Ainda não calhou de acontecer, mas já dividimos o palco, cantamos Terral, Beira-mar.
Hoje, além de Dia dos Pais, é também aniversário da minha mãe e do meu irmão Gabriel. A gente não liga muito para datas comemorativas, não tem que ter um dia específico para dizer que ama. Acho mais genuíno quando se derrama amor em pequenas doses ao longo de todos os dias. Ele é meu pai todos os dias. Mas, comigo em Fortaleza e ele no Rio de Janeiro, claro, que vamos nos falar. E só de escutar o "alô" dele, isso já vai me acalantar, porque é uma voz que não vai para o ouvido, é uma voz que vai direto para o meu coração.
A MANGA ROSA
Dois pais em um só
Ele chegou da terapia pensativo, me puxou de canto e me pediu desculpas. Eu tinha 23 anos, a gente já estava aqui em Fortaleza, vindos do Rio de Janeiro por recomendação médica, para que ele desacelerasse e cuidasse da saúde, e papai me pediu perdão por não ter me colocado no colo e por nunca ter ido ao estádio de futebol comigo. Tratei de reparar esse lapso da nossa história. No espaço de um ano, peguei seu Sérgio Dias e o levei para um jogo no Presidente Vargas. Ele vascaíno e eu flamenguista, assistimos a algum jogo do Ceará. Lembro vagamente da partida em si, e acho que foi empate, mas consigo ouvir a risada de papai se misturando com a minha quando compramos cachorros-quentes. Qual não foi nossa surpresa, acostumados com o modo carioca de preparar, quando nos deparamos com a carne moída.
É um episódio simples esse que conto para demarcar o que foi parte da nossa relação de cumplicidade. Digo parte, porque entendo que tive dois pais em uma pessoa só. Cearense no Rio de Janeiro, meu pai foi um grande empresário do setor têxtil. Eram tempos de vacas gordas e papai, apreciador de música, montou quase um estúdio em casa, fazia churrascos aos fins de semana, vivia a boemia latente da capital carioca. Conhecia músicos, sabia da fonte as histórias das canções.
Nesse momento, ele era pra mim o pai rígido, provedor da família, meu empregador na firma - construiu ali meu caráter, era meu exemplo de integridade, me deu educação, me mostrou a vida, me ensinou o valor do trabalho, do respeito.
Quando os negócios ruíram, seguindo o mau momento da economia do País, a saúde do papai também sentiu a derrocada. Ele tinha sido umas das primeiras pessoas a ter celular no Rio de Janeiro, tinha seis carros na garagem, uma casa de praia para passar as férias em Fortaleza e, em pouco mais de três anos, ele não tinha como colocar comida dentro de casa. É aí que surge meu segundo pai. Resignado, tendo de se reinventar, se desfazer da sua visão de mundo, meu pai, acho, abriu espaço na vida para um carinho desmedido pelos filhos.
Com a saúde fragilizada pelo infarto e o AVC que o acometeram, papai se transformou em meu filho. Ele segurava em minha mão e eu o ajudava a caminhar. Acho que os papéis se inverteram e a vida me proporcionou outra forma de ter um grande pai. Generoso, muito disposto a falar das suas experiências, papai sempre guardava um ensinamento entre suas histórias.
Uns seis meses antes de ele falecer - o que aconteceu em dezembro de 2015 - ele estava prestes a fazer 76 anos e fomos, ele e eu, para um jantar na casa de um amigo. Coincidência ou não, esse amigo colocou um DVD do Benito di Paula e papai nos entreteu a noite toda, nos contando da amizade com Benito.
Dessa noite, uma música ficou marcada em mim. Hoje, escuto Retalhos de Cetim para lembrar-me dele, ou quando acontece alguma coisa no coração, ou quando sinto que ele quer falar comigo. Aí, eu boto a música, e não é um momento triste. Muito pelo contrário, é um instante de pura alegria, porque não guardo ressentimento nenhum, não há nada que eu quisesse mudar na minha história com meu pai, não deixamos nada por falar. E se eu choro é da felicidade que foi ter podido chamar um homem extraordinário de pai.
RETALHOS DE CETIM
A felicidade do agora
A PRIMEIRA VEZ, e talvez a última, que vi meu pai chorar foi em 1987. A gente voltava de um restaurante, como acontecia sempre que ele conseguia juntar umas moedas e comemorar alguma data, e, no toca-fitas, Altemar Dutra cantava. "Velho, meu querido velho/ Agora caminha lento" ecoava, enquanto meu pai, me olhando pelo retrovisor, chorava. Eu tinha 10 anos e já entendia que os adultos choravam de emoção, mas lembro de ficar confuso, porque papai era o homem mais feliz do mundo.
Papai foi um cara que nos criou com todas as dificuldades e que nunca foi capaz de dizer que estava cansado. A gente esteve em situações judiciais, de moradia, de saúde, e de faltar comida, e isso, para um pai e para uma mãe, é muito doloroso. Mas aí é que se mostra a grandeza de um homem.
Acho que todos nós temos a aprender com ele. Ele era feliz por ter os quatro filhos exatamente como somos, com os defeitos que temos. Ele achava fantástico o comportamento da minha irmã mais velha, as minhas más criações, as contradições da minha irmã, as dificuldades do meu irmão. Ele podia achar que tudo era um fardo, mas não: ele era contente com a vida que tinha, porque ele sabia o quão magistral é viver o presente. Essa é a maior lição dele: felicidade é um sentimento que não está no futuro nem no passado. Ela só pode estar no agora. Papai era um professor da felicidade.
O Haroldo Guimarães, pai, foi um homem que fez carrinho de lata, vendia jornal velho, foi um catador de resíduos sólidos, que estudou mesmo a contragosto da mãe, que passou na última vaga do vestibular e cursou Direito já casado e com dois filhos, que foi presidente do Sindicato dos Comerciários, que enfrentou, ao seu modo, o preconceito de raça e de classe. Um homem que viveu 82 anos e morreu como viveu: feliz.
Foi esse ensinamento dele que me fez submergir. Quando ele morreu, eu sentia como se estivesse coberto de água, sem conseguir respirar. Precisei entender que você não pode condicionar a felicidade na espera de um futuro e, mais ainda, em tentar consertar um passado. E são os legados dele que nos salvam todos os dias. Os milhares de livros e LPs que ele deixou nos conectam. É pela música que mamãe tem desabrochado sua memória; são as canções enchendo a casa que fazem minha irmã, que é esquizofrênica, ter um sentido na vida e na rotina. São, de certa forma, as mãos de papai nos cuidando.
Foram as mãos dele que me prenderam o olhar quando já estavam inertes. Eu ficava olhando para aquelas mãos, porque eram as mãos que me carregaram, que me levantaram para proteger meus pés da quentura da areia quando nós íamos pra Prainha, foram as mãos que botaram dinheiro dentro de casa, que nos salvaram de morrer tantas vezes. Lembro do cheiro daquelas mãos, do meu pai e me emociono.
Tento viver sempre o agora, como ele fazia. Mas ainda me pego, em dias como hoje, refletindo sobre o que passou. E se eu pudesse voltar no tempo, daria um beijo e um abraço nele. Fiz isso já nos últimos anos dele, mas queria ter começado mais cedo, fazer isso nem que fosse na base da chibata, ele me empurrar e me esculhambar, mas eu puxar e dar um cheiro. Daria tudo que tenho hoje para que tivesse mais uma oportunidade de encontrar com ele. Mas é isso, a gente viveu como pode e a gente fez o melhor.
MEU VELHO