Elza Soares nasceu na fome, se criou na fome e dela nunca saiu. Se antes era uma fome física, da miséria onde chafurdava, hoje é uma fome de devorar injustiças. Em meio a discursos autoritários e atitudes violentamente segregadoras no País, Elza chega como uma força da natureza, trazendo à tona seu Planeta Fome (Deck) disco lançado na sexta-feira, 13. O que ela quer, agora, é viajar o Brasil e gritar: "EU TÔ COM FOME, EU TÔ COM FOME, POSTO DE SAÚDE, RESPEITO, FOME DE AMOR, TÔ COM FOME!", ela adianta, em conversa por telefone realizada na véspera do lançamento de seu novo trabalho.
Com o vigor das constantes renovações, Elza sempre foi uma mulher política. Aos 13 anos de idade, ela já se anunciava, afirmando a Ary Barroso - em seu programa de calouros - que vinha do Planeta Fome. E foi neste planeta onde foi obrigada a casar ainda adolescente e nele perdeu filhos, mas ganhou força. A renovação de fênix é muito presente na obra criteriosamente colecionada ao longo das décadas. Desde 2015, a carioca vive uma fase musical muito importante. Segue dialogando com minorias, reafirmando bandeiras, cantando hinos. Dando voz a quem é constantemente abafado.
O novo disco sucede Mulher do Fim do Mundo (2015) e Deus é Mulher (2018), que percorreram o País em formato de disco, de streaming, de show e de cantorias das plateias. E como lançar um disco tão político em um País definido por Elza como "doente"? "Dando remédio pra ele. Eu acho que a gente tem de cuidar dessa gripe antes que vire uma pneumonia. Nós estamos trabalhando em prol de curar esse momento tão difícil", suscita Elza. "Nunca saí desse Planeta. Não foi naquele momento só, não. Ele tá aí, expandiu, cresceu. Não mudou nada, continua. Ele está presente, como as músicas de Gonzaguinha estão presentes", comenta, adiantando o que o público vai encontrar no disco.
Entre músicas de novos compositores e uma rara autoral (O Menino), a artista resgatou duas obras de Gonzaguinha, que morreu em abril de 1991, mas tem uma obra tão atual. Comportamento geral é a primeira do compositor que figura no disco, sendo a faixa número cinco. "Deve, pois, só fazer pelo bem da nação/Tudo aquilo que for ordenado/Pra ganhar um fuscão no Juízo Final/E diploma de bem-comportado", cantou Gonzaguinha nos anos 1980 e Elza ecoa em 2019. Tão atual. "Ela foi feita hoje. Compositor forte que ele é.", diz a cantora, e lembra: "A primeira música que Gonzaguinha compôs, fui eu que gravei, uma música que se chama Gato", puxa na memória. Um pouco mais à frente no disco, aparece Pequena memória pra um tempo sem memória, também do filho de Luiz Gonzaga e também com forte tom social.
Fazendo uma ponte entre passado e presente, entra música de Rafael Mike, do Dream Team do Passinho, intitulada Não tá mais de graça. Ele anuncia: "A carne mais barata do mercado não tá mais de graça", fazendo uma ponte com a clássica obra de Seu Jorge, Marcelo Fontes do Nascimento e Ulisses Capelleti, lançada em 2002 por Elza, no disco Do cóxxix até o pescoço. A releitura de Mike é o anúncio de que nasce um novo clássico. "Eu me pergunto: onde essa porra vai parar?/Revolução, só Che Guevara de sofá", provoca a letra. "Não tá mais de graça mesmo, não, cara. Que é isso... Eu, que não valia nada, estou valendo uma tonelada", comenta Elza, incisiva.
A história de Mike, inclusive, ganhou atenção há poucos dias. No mês passado, ele descobriu que seu pai biológico, José Baptista Ribeiro (conhecido por Baptista) foi baterista de Elza Soares décadas atrás. Apenas aos 39 anos, o fundador do Dream Team do Passinho tomou conhecimento sobre seus pais biológicos. "É brincadeira. A história desse menino comigo é assustadora. O pai dele foi meu baterista, menina. Assusta a gente, essa história", exclama Elza, que cultiva uma relação próxima do compositor. Em seu perfil da rede social Instagram, Mike comentou: "Gratidão @elzasoaresoficial vc chegou de pé na porta na minha vida!!! Te amo!".
Além da música de Rafael Mike, outros nomes saltam aos olhos neste álbum. Logo na primeira faixa, intitulada Libertação, está o encontro de Virgínia Rodrigues com Elza, acompanhadas da força de Baiana System, em composição assinada por Russo Passapusso. Outros nomes estão presentes no disco como BNegão, Seu Jorge, Paulo Miklos, Pedro Luís e até Chapinha da Vela. O disco foi lançado há pouquíssimos dias, mas a certeza é de que ele vai ecoar bastante ainda. Gritemos com Elza, pois: "EU TÔ COM FOME, EU TÔ COM FOME, POSTO DE SAÚDE, RESPEITO, FOME DE AMOR, TÔ COM FOME!".
Onde ouvir
Serviços de streaming, como Spotify, Apple Music, Google Play e Deezer
Estante
Se acaso você chegasse
Em 1960, Elza chegou ao mercado fonográfico com seu primeiro disco, com música-título de Lupicinio Rodrigues e Felisberto Martins.
Do cóccix até o pescoço
Parece mais tempo, mas foi em 2002, neste CD, em que Elza rasgou seu hino A Carne, assinada por Seu Jorge.
A mulher do
fim do mundo
Trabalho que marcou novo momento na carreira da cantora, lançado em 2015. Deus é Mulher
Este parece ter sido uma bela continuação d'A Mulher do Fim do Mundo, mas com força própria.
Planeta Fome (Deck)
1. Libertação (Russo Passapusso). Participação especial de Virgínia Rodrigues
2. Menino (Elza Soares)
3. Brasis (Seu Jorge / Gabriel Moura / Jovi Joviniano)
4. Blá Blá Blá
Participação especial de BNegão
Chega
(Gabriel Contino / DJ Meme / Andre Gomes) Hip Hop / Direto
Me dê MOtivo
(Michael Sullivan / Paulo Massadas)
Rap do Bnegão
(BNegão)
Blá Blá Blá (Pedro Loureiro)
5. Comportamento Geral (Gonzaguinha)
6. Tradição (Sergio Britto/Paulo Miklos)
7. Lírio Rosa (Pedro Loureiro / Luciano Mello)
8. Não tá mais de graça
(Rafael Mike)
Participação especial de
Rafael Mike
9. País do Sonho (Chapinha da
Vela / Carlinhos Palhano)
10. Pequena memória pra um tempo sem memórias (Gonzaguinha)
11. Virei o jogo (Pedro Luís)
12. Não recomendado (Caio Prado)