Raimundo Fagner é, sobretudo, um inquieto: poucos dias antes de completar sete décadas do "pulsar das veias", encerrou-se ao número 55 da rua Jaguaribe, na Aldeota. No endereço da Ararena Produção Artística e Editoração, reuniu-se aos parceiros de estrada e iniciou a gravação de seu mais novo álbum — ainda sem título, mas repleto do desejo contínuo de renovação. "Motivado", como prefere definir. Entrevistar Fagner é um desafio. Não pela aspereza que costumam atribuir-lhe, muito pelo contrário. Fagner é ávido, assertivo, curto, não se poupa do contar. Lamenta a briga com o conterrâneo Belchior, derrete-se como todo avô ao falar dos netos, orgulha-se do filho. Mas dedica seu tempo ao trabalho, paixão e ofício confundem-se na música. Entre uma canção e outra, atendeu-nos. Ao telefone, a voz rascante que eu ouvia na infância ecoando insistentemente nas caixas de som de meu pai justificou a dificuldade: "Passo os dias no estúdio, estou gravando". Como quem faz contar o tempo outra vez, reinicia os primeiros dias de carreira, há 40 anos. O fôlego de Fagner é único — e nessa entrega intempestiva à música brasileira mora a grandiosidade do artista.
O POVO - Nestes 40 anos de carreira, o senhor acompanhou diversos movimentos da música brasileira — entre crescimentos e declínios. A que motivos credita sua trajetória de sucesso e longevidade?
Fagner - Primeiro, estou aqui começando meu novo disco (enquanto concedia entrevista ao O POVO), gravando a primeira música em parceria com o Caio Silvio — a gente nunca tinha composto nada juntos, então continuo renovando os parceiros. Credito aos meus parceiros, ao longo da carreira, a qualidade da minha música, onde ela atingiu... São muito diversos: eu sempre trabalhei em projetos coletivos, sempre fui muito instigado, curioso em conhecer pessoas, isso está na minha discografia. É evidente a participação dessas pessoas, a qualidade dos músicos que eu sempre busquei para gravar ou tocar comigo, os maestros, as fichas técnicas dos meus discos dizem tudo. Eu sempre procurei trabalhar ao lado dos profissionais mais competentes da área, eu acho que isso é uma sustentação importante do meu trabalho e eles vêm dando essa longevidade — ter todo esse leque de pessoas comigo há muitos anos, no Rio, São Paulo, fora do Brasil... A minha biografia diz muito disso, dessa inquietude de trabalhar com os melhores profissionais. É uma base sustentação muito forte, não só musical, como também poética. Tem também um envolvimento do público de A a Z com a minha música, das coisas mais sofisticadas às mais populares, e acho que essa é a razão de eu estar há tantos anos pela estrada e motivado.
O POVO - Desses múltiplos parceiros, quais trocas o senhor destaca?
Fagner - Meu parceiro mais constante foi o Fausto Nilo. Também tive bons momentos com Zeca Baleiro, uma parceria que está se renovando agora. Estou em um trabalho novo com Renato Teixeira, Moacyr Luz e com Clodo (Ferreira). Tem muita gente... São dezenas de autores, não dá para comparar. A gente sempre primou pela qualidade e todos eles têm seu momento específico na minha carreira.
O POVO - Na biografia Raimundo Fagner - Quem me levará sou eu (2019), de Regina Echeverria, algumas de suas desavenças com outros artistas são descritas. A briga com Belchior, por exemplo, é conhecida. O senhor se incomoda com essa fama de temperamental? O público deve saber dos bastidores?
Fagner - O público deve saber tudo que aconteceu, não tem problema, é transparente. É uma coisa de temperamento - meu e das pessoas que a gente se envolveu -, mas tudo isso foi também realizado com muita arte. Essa desavença com Belchior é conhecida há muitos anos e que eu lamento porque foi a pessoa que me possibilitou entrar na carreira: eu estava em Brasília, era praticamente menor, e ele foi uma espécie de tutor do meu trabalho. A gente tinha todo esse laço e eu lamento a gente não ter continuado essa parceria, porque era uma parceria muito feliz. O Belchior sempre foi um dos meus grandes parceiros… O que aconteceu está descrito. Não tem problema essa fama, eu só preciso me acalmar mais (risos).
O POVO - Quais são as maiores conquistas dessas quatro décadas dedicadas à música?
Fagner - O público que eu consegui ao longo dos anos, os projetos que aconteceram, as viagens…
O POVO - E nos 70 anos de vida? Em 2009, aos 57 anos, o senhor descobriu ser pai do advogado Bruno e ter dois netos. Como essa relação se constrói?
Fagner - Muita alegria, muito orgulho conviver com o Bruno. É um menino extraordinário! A vida ficou muito mais colorida. Ele é um espetáculo, é um menino querido, é muito competente - acho que puxou alguma coisa da família, a gente tem uma tradição de advogados, minhas irmãs. Também é só alegria ser avô. São todos muito carinhosos, muito especiais... A Clara (neta mais velha) é uma doçura, uma menina muito delicada. O Arthur (neto mais novo) é bem musical, canta, gosta de música, está estudando bateria.
O POVO - Recentemente, o cantor Milton Nascimento teceu críticas à massificação da música contemporânea brasileira. Como o senhor avalia o atual cenário da área?
Fagner - Acho que cada tempo tem a sua história. Estão construindo uma história e a gente construiu a nossa, temos que respeitar o que está acontecendo porque os tempos mudam. Não vai se querer que se faça (música) como a gente fazia. Dentro do que se faz hoje tem muito talento, as pessoas que fazem aquilo que para o momento é muito bom.
O POVO - O que o senhor está escutando ultimamente?
Fagner - Ah, eu escuto ainda os velhos discos: Stevie Wonder, Paul McCartney, John Lennon, música erudita... Meu tempo é muito curto para escutar rádio, eu sou bem ocupado e fico muito com meus parceiros, convivo bastante com eles no dia a dia - Zé Ramalho, Renato Teixeira, Moacyr Luz… Estamos nos comunicando, falando, pensando música. Eu continuo na minha agitação poética-musical.
O POVO - O senhor também é conhecido pelas declarações sobre futebol e política — principalmente sobre a presidência do País. Qual é a importância do seu engajamento enquanto artista?
Fagner - Eu acho que hoje em dia é uma roubada, melhor ficar quieto. Eu sou inquieto, muitas vezes eu falo, mas melhor seria ficar calado porque o Brasil muda muito, todo dia o País está em extrema mudança. Muitas vezes, a gente está falando uma coisa e está acontecendo outra. Tenho muitas amizades em todos os lados… Eu acho mesmo que a gente deve pensar no País, mas também deve pensar em fazer música para todo mundo - independente de política, de apoiar alguém... O artista tem que pensar no público de uma maneira geral. Muitas vezes eu não faço isso, teria que me policiar mais.
O POVO - Quem são os parceiros do seu novo álbum? Já tem previsão de lançamento?
Fagner - Renato, Clodo, Moacyr, Caio… Este atual CD estou fazendo. Estou com um projeto de um disco de seresta, em homenagem ao meu irmão Fares Lopes, que foi um grande seresteiro. Esse projeto já tem muito tempo e eu estou concluindo com o produtor José Milton pela Biscoito Fino. Devemos gravar muito em breve, ainda neste ano.
O POVO - Como o público tem celebrado seu aniversário?
Fagner - É muito homenagem, estou me sentindo super privilegiado. Eu tenho recebido mensagem de todo o Brasil. É muito emocionante, é uma ficha que não cai, é um carinho que não dá pra dimensionar, falar por palavras. Foi uma carreira construída que tocou muita gente. Eu só tenho a agradecer a todos que estão envolvidos nesse sentimento. Essas pessoas constantemente renovam esse carinho e se manifestam de uma maneira muito positiva, muito carinhosa. Agradeço o sentimento, isso me renova.