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Dois dedos de Prosa com Laerte
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Dois dedos de Prosa com Laerte

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A cartunista paulistana Laerte Coutinho é responsável por personagens como os Piratas do Tietê e Los Três Amigos (Foto: divulgação)
Foto: divulgação A cartunista paulistana Laerte Coutinho é responsável por personagens como os Piratas do Tietê e Los Três Amigos

Cartunista das mais conhecidas do Brasil, Laerte Coutinho já participou de uma série de longas-metragens desde que assumiu ao público, em 2012, a transgeneridade. Em "De Gravata e Unha Vermelha" (2015), de Miriam Chnaiderman, aparecia como uma das entrevistadas. Em "Lampião da Esquina" (2016), de Lívia Perez e Noel Carvalho, contava histórias relacionadas à clássica publicação LGBT do Brasil nascida no final dos anos 1970. Já em "Laerte-se" (2017), documentário de Lygia Barbosa e Eliane Brum (disponível na Netflix), a paulistana tem o protagonismo e conta a própria história. Mais recentemente, a animação "A Cidade dos Piratas" (2019), de Otto Guerra, não apenas tem a vida de Laerte como protagonista, mas também sua obra. O filme - que estreou nacionalmente na última quinta-feira, 31, e aguarda estreia em Fortaleza - começou como um projeto que adaptaria os Piratas do Tietê, personagens dos anos 1990 da cartunista, para o cinema. No meio do caminho, porém, o diretor passou por um câncer, ela se assumiu trans e o interesse pelos personagens diminuiu em relação às questões pessoais e políticas do País. O longa, então, se reestruturou e terminou se baseando em cinco núcleos relacionados à vida e obra da artista: o ódio de um político conservador pela figura de um minotauro, o capitão dos Piratas encontrando novas realidades e o personagem Ivan, que se veste de mulher para sair à noite. Em entrevista ao O POVO, a cartunista reflete sobre a revisão de vida e obra proposta pela animação, a ideia do ódio e como vê hoje a revolução.

O POVO - "A Cidade dos Piratas" pega muitos elementos da sua produção, uma mistura quase caótica, mas que flui numa linha narrativa. Como isso se relaciona com sua obra?

Laerte - O Otto fez uma tradução livre, mas bastante coerente com o modo como eu trabalho. Como não trabalho mais com personagem, eu trabalho com situações. Essas situações tanto podem ser uma tira só, isolada e pronto, como podem também se dar em pequenas séries de tiras de alguns dias. O Otto juntou esse material e fez um arranjo pessoal e livre de forma a conduzir o roteiro com alguma coerência. Eu acho que ficou muito bom o resultado.

O POVO - Como foi isso do filme ser uma espécie de revisão da sua vida e obra? Como chegou em você esse processo de reavaliação de produção?

Laerte - Eu tô com 68 anos, o Otto tem lá as décadas dele também. Tem uma época em que essa parte de avaliação do passado começa a ficar importante. É mais ou menos inversamente proporcional ao que o futuro representa para gente quando a gente tem 20 anos. O passado passa a ser objeto de atenção quando a gente vai ficando velho. Porque tem muito passado! (risos) Tem mais passado do que futuro, e a gente fica ali avaliando. Isso é interessante porque a gente aprende muita coisa, ou pelo menos potencialmente pode fazer isso. O que a gente fez foi isso. Ele, muito provavelmente por conta da doença, se viu nessa radicalidade dramática de encarar a possibilidade de morrer e isso traz um universo de preocupações que é inédito. Eu não cheguei a ficar doente nem nada, mas passei por processos radicais, também, de reavaliação, entendimento, autoaceitação, nesses últimos tempos - quando eu falo isso, tô falando de século XXI.

O POVO - No filme, há um personagem que é um político movido a ódio. Em entrevista ao O POVO, o Otto disse que não via esse comportamento odioso na primeira década deste século, mas que você já trazia isso nas obras, como que prevendo o que aconteceria depois. Você considera que previu, ou só estava prestando atenção?

Laerte - Quando a gente fala ódio, a gente não tá dizendo muita coisa. A gente tá falando de uma coisa mais ou menos geral. É meio como quem fala 'violência'. Sim, a violência é um problema, é indesejada. Ninguém quer levar uma tijolada na testa. Mas é isso que é a violência, uma tijolada na testa? Mas quem deu essa tijolada? Onde que estávamos? Existe um motivo ou não? Essa multiplicidade de formas de ódio e violência abrigam outros temas, que são, por exemplo, o viés político e ideológico das coisas. Não é que não houvesse ódio e violência, mas se dava provavelmente de formas diferentes. Hoje, o ódio é claramente uma ferramenta de destruição institucional, de opressão de gênero, de classe, vários tipos. São coisas que eu gosto de levar em conta porque situa um pouco melhor, de forma menos neutra, esses problemas. Nos personagens dos Los três amigos (trio de personagens criados por Laerte, Glauco e Angeli no final dos anos 1980), ainda que você considere ser uma linguagem de sátira, de ironia, era um cenário de permanente violência e a gente usava recursos que eu não usaria hoje. Não usaria porque o contexto é outro, eu sou outra e as coisas são outras, também. Mas na época usávamos e isso fez parte da nossa história criativa. Agora, tudo isso também se dava dentro de outras direções. Quando a gente usava violência nas histórias levava em consideração o que estava sendo debatido e trabalhado nelas. Eu lembro de muitas histórias que a gente fazia que faziam referências à realidade política, ao Collor, ao Fernando Henrique.

O POVO - Ideias de revolução são reiteradas no filme: há a "revolução conservadora" do político, o motim dos Piratas do Tietê, o motim metalinguístico do pessoal do estúdio de animação contra o diretor. Como você vê a revolução hoje no Brasil? Há espaço para isso?

Laerte - Eu já fui do Partido Comunista e, naquela época, anos 1970, a revolução era uma coisa mais ou menos nítida pra mim. Era a abolição das classes, a condução através da classe operária de um processo de remodelação total da sociedade. Eu não acredito mais numa revolução nesses termos, mas eu acredito numa transformação radical da sociedade em nome de garantir igualdade. Agora, como chegar a isso eu também não tenho mais um guia (risos). Eu tenho uma intuição, um sentido e um desejo de trabalhar. E, quer dizer, há uma direção que eu considero a correta, a justa, a mais desejada, e essa não passa simplesmente por melhorar condições da população. Passa, passa por aí, mas não só por isso. Nesse sentido, sim, eu penso numa transformação social mais radical. Há quem fala claramente em revolução, socialismo. Eu já tô um pouco confusa em relação aos termos a serem usados, mas apoio essa ideia de uma reelaboração total e radical.

 

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