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Filme de Glauber Filho trata de religiosidade e gênero em uma comédia
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Filme de Glauber Filho trata de religiosidade e gênero em uma comédia

Bate Coração usa a comédia como elemento de desconstrução para contar a história do machão que recebe transplante de coração de uma mulher trans
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Glauber Filho, diretor de Bate Coração (2019). (Foto: Aurelio Alves)
Foto: Aurelio Alves Glauber Filho, diretor de Bate Coração (2019).

"Porque o que se leva dessa vida, coração/ É o amor que a gente tem pra dar". Nos versos da canção de Antônio Barros, que intitula o longa "Bate Coração" (2019), a sinopse da nova obra do realizador cearense Glauber Filho se enuncia: depois de sofrer um ataque cardíaco, Sandro (André Bankoff) precisa de um transplante de coração e recebe o órgão da cabeleireira trans Isadora (Aramis Trindade), morta por atropelamento. A partir daí, a vida dos personagens se une em uma trama repleta de desconstruções e reencontros singulares. Em cartaz nos cinemas desde quinta-feira, 7, o filme do diretor de "As Mães de Chico Xavier" (2011) e "Bezerra de Menezes - O Diário de um Espírito" (2008) destaca o poder da comédia na luta pela diversidade.

O POVO - "Bate Coração" reúne diversos temas, da espiritualidade ao debate sobre gênero. Essa escolha foi relacionada ao público?

Glauber Filho - Na construção, nós buscamos algumas referências como o filme "O Deus da Carnificina" (2012) e o (cineasta espanhol) Pedro Almodóvar. A gente quis pensar em uma comédia na qual pudessem estar alinhavados, dentro dessa estética, um universo espiritualista — que transita no que seria um realismo fantástico — e a construção de uma verossimilhança cotidiana. Se a gente pensar no cotidiano, em um dia, a gente discute várias coisas. Não foi pensando objetivamente ou estrategicamente no público: o desenho dos personagens que nós tínhamos apontava para várias questões.

OP - A comédia é um gênero que permite o diálogo entre esses temas?

Glauber - Tem várias camadas de comédia como ataque, deboche, ironia... A gente foi para uma comédia de cotidiano, uma comédia desse realismo fantástico que possui uma outra camada. A comédia tem uma capacidade de desarmar, ela traz uma surpresa, um deslocamento — às vezes, as discussões sobre determinados temas têm um pré-planejamento, mas a comédia desconstrói, ela tem a capacidade da pantomima, ela tem a capacidade de fazer uma representação do que você é. Você se identifica e acaba rindo de si mesmo. Se você tem um preconceito e se esse preconceito aparece de uma forma onde você se desarma, ele pode ser analisado de outra forma. Dentro da construção dramatúrgica, a gente pensou 'com isso aqui provavelmente haverá um riso', mas depois a gente faz uma reflexão: 'por que você riu disso?'.

OP - Quais os desafios de abordar religiosidade e diversidade de gênero?

Glauber - O primeiro desafio é a compreensão em relação à religião: o que nós estamos falando de religião, de religiosidade e de outra questão que se difere, a espiritualidade. A espiritualidade está dentro de uma transcendência humana. Dentro das camadas religiosas, vamos encontrar as mais conservadoras e as mais liberais... Sinceramente, eu não vejo problema em estar trabalhando uma questão de gênero e ao mesmo tempo uma questão religiosa. A pergunta é: que religião você está falando? O mundo é diverso, as religiosidades são diversas. O filme deixa uma abertura no final e é bem mais interessante do que fechar com uma solução moral. É muito mais uma reflexão.

OP - Como não cair em estereótipos e realizar uma obra livre de preconceitos?

Glauber - Não é um caminho fácil, até porque existe o lugar de fala de quem passa por uma vivência, uma experiência. A primeira compreensão que a gente tinha, na construção do roteiro, é que toda fala desse lugar de fala é legítimo. A arte permite que a gente transite em diversos lugares de fala: não para substituir, mas para compreender, pesquisar, fazer levantamentos de que preconceitos e estereótipos poderiam ser vencidos. Na comédia, por muito tempo, o riso acontecia simplesmente porque o sujeito era afeminado. Criava esse estereótipo e isso reduzia a figura humana. A gente correu para o outro lado, o riso vai ser provocado pela ação em si do personagem, pela criticidade do personagem em relação ao mundo. Foi aí que a gente trouxe a integridade a e a humanidade das personagens trans. A ideia foi desconstruir uma narrativa estereotipada.

OP - Um ator cis interpreta a protagonista trans e atrizes trans também integram o elenco. O que essa escolha reflete?

Glauber - Acredito e defendo isso, que para fazer determinadas personagens como travestis e mulheres trans deveria ser uma atriz trans. Eu jamais criticaria isso. Entretanto, é legítimo o lugar da arte e do cinema de falar de vários mundos. Um ator — seja ele cis, trans ou travesti — pode fazer qualquer tipo de papel, mesmo que isso não o represente em sua experiência, porque esse é o desafio do ator, esse é o desafio da arte. No "Bate" temos atores cis e trans. No final há uma grande festa, onde se comemora o lugar da felicidade e da integridade de tudo, dentro dessa construção da verossimilhança onde se resgata a humanidade, onde uma sociedade sadia é diversa. Essa é uma festa do coração, da doação.

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