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Dois dedos de prosa com o cineasta Leonardo Mouramateus: "O caminho continua a ser o da danação"
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Dois dedos de prosa com o cineasta Leonardo Mouramateus: "O caminho continua a ser o da danação"

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Diretor cearense Leonardo Mouramateus ganhará retrospectiva da carreira no Festival de Roterdã em 2020 (Foto: Alexi Pelekanos / divulgação)
Foto: Alexi Pelekanos / divulgação Diretor cearense Leonardo Mouramateus ganhará retrospectiva da carreira no Festival de Roterdã em 2020

Se em janeiro de 2019 a presença de vários filmes cearenses no Festival de Tiradentes marcou o começo de um ano histórico para o audiovisual do Estado, janeiro de 2020 parece que também contará com bons ventos iniciais: o cineasta cearense Leonardo Mouramateus ganhará mostra retrospectiva com seis de seus curtas na edição do ano que vem do Festival de Roterdã (Holanda), além de levar um novo trabalho no formato - A chuva acalanta a dor - à competitiva do evento. Com forte produção de curtas ao longo da década, o diretor lançou o primeiro longa neste ano: António Um Dois Três, filmado em Portugal, onde mora há alguns anos. Em entrevista ao O POVO, Leonardo divide reflexões sobre temáticas de sua obra, barreiras geográficas e a importância de se danar.

O POVO - Aos 28 anos, você ganha uma mostra retrospectiva em um festival de fora. Como isso te faz sentir?

Leonardo Mouramateus - O festival de Roterdã foi o lugar onde o António Um Dois Três estreou. É um evento carinhoso, feito por gente que ama cinema. Ver o trabalho teimoso e louco que fiz com meus amigos - intérpretes, diretores de som, produtores, fotógrafas - em conjunto nesta vitrine me dá a sensação de que teimosia e loucura não são só nossas. Mas também sinto que há outros filmes a serem feitos, e quem sabe com essa visibilidade seja mais fácil fazer os próximos.

O POVO - Olhando de hoje para os curtas que compõem a mostra, lançados entre 2012 e 2017, o que se destaca nessa produção?

Leonardo - De alguma maneira os filmes são partes de uma única grande história, ou ao menos faixas de uma mesma playlist. Acho que todos giram ao redor dos mesmos temas: a euforia pelo desconhecido, a melancolia da passagem do tempo, uma sensação grande de desgarramento, a facilidade como passamos da verdade para a mentira e vice-e-versa... Até hoje parto de uma estrutura rigorosa: cada história tem uma caligrafia específica, um único jeito de contá-la. Também sinto que fui documentando os medos e os desejos de meus amigos e das pessoas perto de mim. O envelhecer das pessoas e as mudanças das ruas está muito presente. Apesar dos filmes não serem muito documentais, eles têm a pulsação de Fortaleza.

O POVO - De que maneiras ela dialoga com o que você está fazendo e pretende fazer daqui para a frente?

Leonardo - Tudo o que descrevi anteriormente continua a valer. Tudo que ando fazendo se alimenta de tudo o que já foi feito. É mais parecido com o trabalho em dança e teatro do que aquele habitualmente feito no cinema. Ainda que A chuva acalanta a dor siga na direção oposta, hoje em dia trato as coisas com maior leveza e sentido de humor. O realismo social e a artificialidade cínica continuam a me desinteressar. Conservo o desejo de sempre encontrar no meu arredor os elementos e o modo de produção mais correto para os filmes. Fui aprendendo isso conforme filmava. Essa é outra maneira de entender o conjunto desses filmes: como um processo de aprendizagem ainda em curso.

O POVO - No anúncio do festival, afirma-se que sua obra narra "de maneira inesperada a vida das grandes cidades do Brasil". Com suas histórias mais recentes se passando em Portugal, que relações Fortaleza e Lisboa estabelecem na sua obra?

Leonardo - Acho que os filmes, cada vez mais, vão tentando derrubar essa barreira geográfica... e temporal. A chuva acalanta a dor é um filme falado em português de Portugal, com co-produção brasileira, que se passa nos subúrbios da Roma Antiga como foi descrita por um autor francês do século XIX. O filme lida diretamente com os medos do mundo de hoje. Com as perturbações mentais e a carnificina de Fortaleza, por exemplo. E isso já ali estava, no século XIX e no século I. Tentar desenhar ligações entre pontos tão distantes, tentar sobrepor tempos que não parecem convergir, é parte do trabalho que eu e Mauro (Soares, ator do longa de estreia e de A chuva acalanta a dor) sentimos prazer em fazer. É algo que se assemelha ao que acontece no António Um Dois Três, mas também no A vida são dois dias - nosso futuro longa-metragem.

O POVO - Entre resultados positivos da produção cearense e o desmonte federal, que caminhos você vê para o futuro deste cinema?

Leonardo - Uma vez, muito tempo atrás, fui censurado por uma mulher evangélica por ter chamado um bando de crianças de danadas. Ela me disse que eu fazia mal em chamá-las assim porque somente o diabo é que é danado. E no entanto é exatamente isso que digo, que o caminho continua a ser o da inquietude, o da danação. Aqui em Lisboa convivo com um bando de cearenses: Taís, Yuri, Daniel, Acauã, Aline... Continuamos a pintar, dançar e filmar. Às vezes com festa, às vezes com raiva, às vezes sem dinheiro. A situação está violenta e perturbadora, mas estamos juntos. E se a gente estiver juntos a gente vai continuar a se danar.

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