A dez dias do Natal de 1994, estreava no circuito comercial brasileiro mais uma superprodução de Hollywood. Com os dois maiores astros jovens do momento à frente do elenco, completado por um astro latino em plena ascensão internacional, e orçamento na casa dos U$ 60 milhões, o filme poderia ser só mais um blockbuster da temporada de Natal, como os tantos que todos os anos chegam nesta época. Não foi o que aconteceu. Até porque o filme em questão é Entrevista com o Vampiro. Hoje, um clássico.
A adaptação do best seller de Anne Rice para o cinema teve assinatura do diretor Neil Jordan (Traídos pelo Desejo) e levou para a tela a intensa e luxuriosa relação entre os vampiros Louis de Pointe du Lac, interpretado por Brad Pitt, e Lestat de Lioncourt, ninguém menos que Tom Cruise. Antes mesmo de estrear, o filme já causara muita polêmica entre os fãs das crônicas vampirescas de Rice e até com a própria autora por causa da escalação de Cruise para o papel.
À época da escrita do livro, a autora se inspirara no holandês Rutger Hauer, de Feitiço de Áquila e A Morte pede Carona, para criar o personagem, a um só tempo sórdido e sedutor. Quando da pré-produção do filme, Daniel Day-Lewis e Tom Hanks recusaram o convite para dar vida a Lestat e o estúdio vetou o nome de Jeremy Irons.
A querela só teria se encerrado quando Rice assistiu ao filme e ficou encantada com a interpretação - surpreendente, frise-se! -, de Tom Cruise. A escritora chegou a tecer loas públicas ao astro. Não só. A maior parte da crítica especializada reverenciou sua composição do personagem.
"Hoje tenho questões com o filme, sua forma e as decisões de Neil Jordan, mas o que permanece imbatível é o impacto de Tom Cruise naquele elenco, e em retrospecto, naquele momento de sua carreira", pontua o jornalista e crítico de cinema Francisco Carbone, em entrevista ao O POVO.
"Uma escolha muito contestada pela própria Anne Rice, Cruise está esplêndido desde a primeira cena, em uma atuação corajosa e repleta de afetação. Sua química com todos do elenco é impressionante, e hoje seu nome justifica a consideração de clássico para o filme, um imenso sucesso na época. Para mim será sempre o motivo para lembrar de Entrevista com o Vampiro".
Ainda que o Lestat de Cruise tenha conquistado parte expressiva da crítica, há quem, 25 anos depois, siga considerando equivocada a escalação do ator para o papel. "Este é um erro atroz no casting", afirma o cineasta e preparador de elenco René Guerra, diretor de Os Sapatos de Aristeu e Vaca Profana. "A relação de Lestat e Louis é baseada numa relação de erotismo entre mestre e aprendiz, o que fica muito prejudicado pelo fato de ser o Cruise", argumenta.
Casal homoafetivo
O aspecto citado pelo cineasta e preparador de elenco René Guerra é uma das principais características do filme. Entrevista com o Vampiro tem sua narrativa ancorada numa trama homoerótica e faz da condição vampiresca uma metáfora para a homossexualidade. Por óbvio, esta é uma das camadas sígnicas do longa, não ocupa o primeiro plano. Ainda que tenha passado despercebido por muitas plateias mundo afora, o filme é sobre uma família homoafetiva, formada por Louis, Lestat e a pequena Claudia, tornada "filha" do casal de vampiros. Há sete anos, inclusive Anne Rice confirmou, em entrevista, que os três formavam uma célula familiar. "Sim. Louis e Lestat foram o primeiro casal de pais vampiros do mesmo sexo!", atestou.
Para além do par, ainda há um terceiro elemento, o também sedutor Armand, personagem de Antonio Banderas, que rivaliza com Lestat pelo coração do amargurado Louis (cujas angústias a respeito de sua natureza vampiresca ecoariam angústias de natureza outra, a da definição de sua orientação sexual). Ainda que subliminar, a potência do romance homoerótico do filme chamou atenção de muitos.
"Entrevista com o Vampiro foi a minha primeira transgressão", conta o cineasta Fábio Leal, diretor de O Porteiro do Dia e Reforma. "Eu devia ter dez anos quando o filme foi lançado em vídeo e minha mãe seguia estritamente a classificação indicativa dos filmes, me proibindo de ver. Mas quando vi na casa dos meus primos aquele olhar assustador e convidativo de Tom Cruise na capa da fita VHS, não pude dizer não. E não me arrependi. Com o perdão do trocadilho batido, é uma aula de tensão e tesão", arremata.
Também espectador precoce, o cineasta e pesquisador Andy Malafaia assistiu ao filme aos 11 anos de idade, assim que estreou. Leitor voraz de publicações sobre cinema e admirador de filmes de terror, o longa lhe representa um rito de passagem. "Pedi à minha mãe para ir ao cinema sozinho, pela primeira vez. Ela deixou, e ir ao cinema assistir ao filme do Neil Jordan é a minha primeira lembrança de ser independente", narra.
No entanto, a pouca idade não ajudou na compreensão do que estava nas entrelinhas. "Eu já tinha lido alguma coisa sobre o homoerotismo do filme, e ainda em um processo de descoberta, tentei identificar estes pontos, mas acabei meio frustrado porque ainda não tinha sensibilidade para as sutilezas. De qualquer forma, um marco na minha vida".
Para mostrar o quão relevante o filme é em sua trajetória pessoal, o escritor, dramaturgo e professor Roberto Muniz Dias recorre à materialização de uma lembrança de mais duas décadas atrás.
"Duas frases foram coladas na minha agenda/diário em 1995. Uma dizia assim: 'Há um sonho e um fascínio de carregar consigo a eternidade'. A outra estava no encarte de uma revista especializada em cinema: 'Beba de mim e viva eternamente'. Ambas as frases são do filme Entrevista com o Vampiro, em que havia certo decadentismo e glamour na homossexualidade daqueles vampiros ultra históricos, que sugavam a vida, mas a viviam eternamente", relata Muniz. "Esse filme marcou muito o início da minha vida sexual".
"Não me entusiasmei muito com esse filme em particular"
Como muito em torno do Entrevista com o Vampiro, também este aspecto é polêmico. Convidado pelo O POVO a falar sobre o filme, o escritor João Silvério Trevisan não encontrou o que elogiar. "Fiquei pensando no seu convite, e até corri atrás de notas minhas sobre o filme. Não encontrei nada. Devo admitir que, apesar de amar o cinema de Neil Jordan, na época não me entusiasmei muito com esse filme em particular", analisa.
"Certamente me chateou um pouco a escolha de astros hollywoodianos para cumprir uma função oportunista de criar sensação. O homoerotismo servia apenas de canal para implementar tal sensacionalismo. Também me desagradou a escolha imagética, com aquelas cores e volumes grandiloquentes, criando um clima um tanto over, um tanto artificial. Mas não sei se acharia isso hoje".
Professor e pesquisador, e também leitor do best seller, Henrique Codato faz coro à crítica do autor do clássico Devassos no Paraíso. "Para mim, o mais frustrante foi, justamente, o fato de o filme transformar essa relação tão ambígua e conturbada entre os dois personagens (Louis e Lestat), apagando sua conotação homoerótica em nome da garantia de seu sucesso entre o grande público heteronormativo", reprova.
Já o cineasta Lufe Steffen, diretor de São Paulo em Hi-Fi, chama atenção para um sentimento dúbio que ele identifica na comunidade LGBT atual em relação ao filme, que se tornou referência há um quarto de século. "Não sei se a comunidade LGBT de hoje cultua esse filme, talvez ele tenha envelhecido mal... De modo geral, a década de 1990 ainda não foi devidamente revisitada. O que em certos casos, é até melhor", brinca. "Mas curiosamente, hoje, ao olharmos pela perspectiva homoerótica, vale dizer que todos esses astros são muito associados à cultura gay. Brad Pitt, Antonio Banderas e o próprio Tom Cruise, mesmo à sua revelia. Sem falar no River Phoenix (escalado para fazer o jornalista que entrevista Louis, mas morto antes das filmagens começarem) e o Christian Slater (ator que substituiu Phoenix)".
Claudia em destaque
Além do triângulo (de amor, ódio e desejo) estabelecido entre Lestat, Louis e Armand, um dos personagens de maior impacto de Entrevista com Vampiro é Claudia, a criança de seis anos tornada vampira. Interpretada por Kirsten Dunst, em sua primeira atuação no cinema, a personagem foi inspirada em Michelle, filha de Anne Rice morta com a mesma idade, vítima de leucemia. O livro que deu origem ao filme foi escrito durante o luto de sua morte.
Assim como Michelle na vida real, a Claudia da ficção é uma menina que nunca cresceria, e, ao compreender que não terá um corpo de mulher para ser desejável toma uma decisão que muda os rumos da história.
"É a personagem que mais me emociona no filme", afirma o cineasta René Guerra. "A primeira atuação de Kirsten Durst é arrebatadora. E Anne relata que escreveu o livro em apenas uma semana, após a morte de sua filha. É foda ela elaborar o luto com essa personagem que não cresce".
O fato de ainda despertar polêmicas, acender discussões e levantar interesses, como quando de seu lançamento, mesmo 25 anos depois, é um sinal inequívoco que Entrevista com o Vampiro conseguiu permanecer. Mais que isso, inscreveu seu nome com relevância na indústria cultural, para além da cinematográfica.
"Entrevista com o Vampiro, o filme, ainda funciona tanto, mantendo sua potência, mesmo decorridos 25 anos, pela forma como o Neil Jordan conseguiu capturar a melancolia do livro, especialmente quanto às angústias da imortalidade, e transportá-las para o cinema a partir de uma lógica em que desejo e morte se entremeiam", analisa o crítico de cinema Marcelo Müller.
"O elenco está excelente, mas Jordan é o grande responsável pela excelência do filme, inclusive por dar um tempero próprio a determinadas passagens que no livro da Anne Rice são demasiadamente arrastadas e pouco instigantes. Ele trouxe ao cinema um vampiro mais reflexivo e fadado ao sofrimento eterno, mas sem abdicar da luxúria e dos elementos homoeróticos que se encarregam da tensão (inclusive a sexual) entre Louis e Lestat", completa.
Para além das qualidades estéticas do filme, seu colega Bruno Carmelo atenta para outra característica que diferencia historicamente o filme dirigido por Neil Jordan. "Entrevista com o Vampiro marcou o último período em que a indústria ainda sustentava uma ideia clássica de star system, quando as pessoas corriam aos cinemas para ver o último filme do Brad Pitt, o novo do Tom Cruise. Contar com estes 'galãs' implicava retorno de bilheteria garantido, o que culminaria no sucesso estrondoso de Titanic apenas três anos mais tarde. No cinema contemporâneo, este funcionamento se esgotou".
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