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"O Brasil não é um país monolíngue"
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"O Brasil não é um país monolíngue"

No Brasil, são faladas mais de 150 línguas indígenas e cinco delas têm mais de 10 mil falantes, segundo dados do Censo 2010. O País é repositório de uma grande variedade de línguas e berço de pelo menos dois grandes troncos linguísticos: o macro-jê e o tupi. Este último é homônimo da língua que, embora não esteja entre as mais faladas atualmente, faz parte do processo de formação brasileira e desperta a curiosidade de muitas pessoas. Foi da curiosidade de estudantes da Universidade Federal do Ceará (UFC) que surgiu um grupo de discussão sobre tupi antigo e também um curso de férias. Em entrevista ao O POVO, a professora Suene Honorato, do Departamento de Literatura da universidade, conta sobre o curso que coordenará nas tardes das próximas quintas-feiras e discute algumas questões despertadas nos encontros que acontecem desde o início de 2019.
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A professora do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC), Suene Honorato, pesquisa sobre representação dos indígenas na literatura produzida por autores/as indígenas e não indígenas. Ela coordenará o curso de férias sobre tupi antigo.  (Foto: Arquivo pessoal/ Té Pinheiro)
Foto: Arquivo pessoal/ Té Pinheiro A professora do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC), Suene Honorato, pesquisa sobre representação dos indígenas na literatura produzida por autores/as indígenas e não indígenas. Ela coordenará o curso de férias sobre tupi antigo.

O POVO - Como surgiu a ideia de estudar tupi antigo?

Suene Honorato - A proposta surgiu de alguns estudantes durante aulas de literatura brasileira. Nas aulas eu costumo falar do livro O Selvagem, do Couto de Magalhães. É uma obra de 1875 que apresenta um curso de tupi, na época chamado nheengatu, e aí eu brincava que quem quisesse aprender tupi tinha ali um curso. Nessa brincadeira alguns estudantes se motivaram e passamos a nos encontrar desde o começo do ano para discutir o livro Método Moderno de Tupi Antigo, do tupinólogo Eduardo Navarro, e aprendermos juntos. Porém só conseguimos dedicar uma hora a esses encontros.

OP - Como se dará o encontro nas próximas quintas-feiras?

Suene - No início, nenhum de nós, nem eu nem os estudantes, já havíamos estudado ou sabíamos tupi antigo; estamos aprendendo juntos. Aos poucos encontramos algumas pessoas, um rapaz que estudou por conta própria e uma moça que tem origem indígena e aprendeu um pouco com a avó. Ao mesmo tempo, nem todo mundo conseguia ir todas as semanas e acabava desistindo. Desenvolvemos estratégias para acolher pessoas que estão em vários níveis na aprendizagem. Assim o curso está aberto a todos e a gente avançará no estudo coletivo.

OP - O que mais as pessoas podem esperar do curso?

Suene - Muita gente que tem interesse pelo curso chega, mais ou menos como o Policarpo Quaresma, com a imagem de que o tupi é a origem do que é genuinamente brasileiro. Ele faz sim parte da constituição das nossas expressões do cotidiano. Entretanto, não podemos fetichizar; existe muita violência no processo de imposição do tupi como língua geral nos aldeamentos indígenas e na forma carregada de ideologias como os jesuítas sistematizaram essa língua. Então pensamos sobre isso. Outra coisa é que, ao aprender uma língua, a gente aprende também uma visão de mundo. O tupi, por exemplo, não tem denominação de posse sobre a natureza; você não pode dizer "minha árvore" ou "meu rio". Isso mostra uma outra relação com a natureza, muito diferente da nossa. A gente também, embora estude o tupi que não é mais é falado, esse estudo nos abre para entender que o Brasil não é monolíngue. Diversas etnias que perderam suas línguas vem em um movimento de resgatá-las e inclusive algumas cidades, como São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, têm línguas indígenas como suas línguas oficiais junto ao português. A gente precisa falar desses processos de violência e de resistência.

O POVO - Aprender o tupi antigo é, claro, a principal proposta do curso, mas o que mais as pessoas podem esperar das discussões que você já desenvolve?

Suene - Muita gente que tem interesse pelo curso chega, mais ou menos como o Policarpo Quaresma, com a imagem de que o tupi é a origem do que é genuinamente brasileiro. Ele faz sim parte da constituição das nossas expressões do cotidiano. Entretanto, não podemos fetichizar; existe muita violência no processo de imposição do tupi como língua geral nos aldeamentos indígenas e na forma carregada de ideologias como os jesuítas sistematizaram essa língua. Então pensamos sobre isso. Outra coisa é que, ao aprender uma língua, a gente aprende também uma visão de mundo. O tupi, por exemplo, não tem denominação de posse sobre a natureza; você não pode dizer "minha árvore" ou "meu rio". Isso mostra uma outra relação com a natureza, muito diferente da nossa. A gente também, embora estude o tupi que não é mais é falado, esse estudo nos abre para entender que o Brasil não é um país monolíngue. Diversas etnias que perderam suas línguas vem em um movimento de resgatá-las e inclusive algumas cidades, como São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, têm línguas indígenas como suas línguas oficiais junto ao português. A gente precisa falar desses processos de violência e de resistência.

OP - Além de propor esse curso, a senhora coordena o Cine Descoberta, que divulga produções audiovisuais de cineastas indígenas ou sobre movimentos indígenas. Qual a importância dessas iniciativas no Brasil atual?

Suene - Eu acredito que tanto estudar o tupi quanto estudar as representações indígenas na literatura brasileira e no audiovisual são iniciativas importantes para, primeiro, lidar com a Lei 11.645 de 2008 que institui a obrigatoriedade da história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas e em todos os níveis de formação. Essa é uma determinação que ainda é muito pouco obedecida ainda que ela exista porque, claro, existe uma demanda concreta de quebrar estereótipos que vêm sendo construídos há 500 anos. Essa demanda é muito atual: os estereótipos colocam o indígena como parte de um passado e despossuídos de cultura, história, língua ou civilização; assim, o indígena do presente é facilmente tirado da nossa experiência e seu genocídio passa despercebido ou, até mesmo, é justificado. A gente precisa entender que o indígena é parte do presente e nesse contexto de fechamento de visões é ainda mais necessário.

 

SERVIÇO

Curso livre de férias sobre Tupi Antigo

Data: todas as quintas-feiras, a partir do dia 19/12

Horário: das 14h às 17h30min

Local: Sala 1 do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará (UFC)

Mais informações: suenehonorato@letras.ufc.br

Gratuito e aberto ao público. Sem inscrição. Não oferece certificado

 

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