Colecionador de imagens e vozes dos remanescentes e testemunhas de uma ainda controversa história ligada ao nordeste brasileiro, o cangaço é uma das muitas paixões de Aderbal Nogueira, documentarista e pesquisador cearense. A aproximação com o tema, recorda, remonta aos " tempos de menino", marcados pela imaginação nutrida pelos filmes de bangue-bangue e pelos curiosos casos narrados pelo seu avô, João Nogueira, que trabalhou na primeira ferrovia do Ceará durante os anos 1920 e 1930 e que sempre lhe contava histórias sobre o pernambucano Virgulino Ferreira, o Lampião.
Instigado pela história do banditismo no sertão, Aderbal soube, nos anos 1984, da existência de diversos cangaceiros sobreviventes do massacre ao bando de Lampião em Angicos (Sergipe), no ano de 1938. Com pouco mais de 20 anos, o documentarista se "embrenhou" pelo sertão obstinado a conhecer de perto uma história "de suor e sangue" que se apresentava a ele ainda com tantas lacunas e detalhes desconhecidos. Seu primeiro destino foi Buíque, em Pernambuco, cidade distante 284 km da capital, Recife. No pequeno município, ele buscava conhecer Manoel Dantas Loiola, último integrante do bando de Lampião, conhecido pela alcunha de Candeeiro.
"Peguei a lista telefônica e saí ligando pra todo mundo que tinha o sobrenome Dantas Loiola em Pernambuco, até que uma moça finalmente atendeu e disse que conhecia a filha de Manoel. Foi uma dificuldade muito grande na época conseguir esses primeiros contatos", conta. Quando chegou na vila onde o ex-cangaceiro vivia, Aderbal imaginava não ser bem recebido por Candeeiro. "Parei o meu carro um pouco distante dele e fiquei sem coragem de ir até lá, depois de um tempo ele veio e perguntou: "Foi você que veio lá do Ceará pra me conhecer? Pois seja muito bem-vindo a minha casa", descreve o encontro.
O contato inicial com algumas das figuras remanescentes do bando de Lampião motivou Aderbal a dedicar os últimos anos de sua vida a desbravar e aprofundar o estudo sobre cangaço. Para reunir os fragmentos dessa história de banditismo sertão a dentro, Aderbal já conta mais de trinta anos de pesquisa e viagens.
"Um dia eu vinha dirigindo por uma estrada na Bahia, e comigo vinha Sila (Ilda Ribeiro), ex-cangaceira, a gente ia gravar um documentário. Era por volta das 17h, o sol ia descendo, ao redor muito mato seco. Quando eu olho para o lado, vi que Sila tava chorando", narra. "Perguntei o que tava acontecendo. Ela disse: Aderbal, quando chega uma hora dessa, que eu to aqui no sertão, me lembro da época que era cangaceira. Nessa hora, eu olhava pro céu e não sabia se amanhã de manhã tava viva, se ia comer no outro dia, se alguma outra vez ia ver uma pessoa da minha família", conta o pesquisador, emocionado.
Ouvir histórias marcadas pela dor como a de Sila, como descreve Aderbal, mudaram muito sua forma de encarar a vida. "Hoje eu não dou tanto valor às datas (de aniversário, casamento, etc), porque eu me lembro da história deles (os cangaceiros). De que, quando eles estavam no meio do mato, não sabiam que dia era, nem que hora era, nada. Isso mudou radicalmente minha maneira de pensar as coisas", desabafa.
Como resultado das muitas andanças que fez - e ainda faz - Aderbal já gravou pelo menos seis documentários (um deles Angicos, 80 anos depois, de 2018) com depoimentos de remanescentes do cangaço, reunindo um amplo acervo de entrevistas gravadas em vídeo cuja dimensão ainda é desconhecida até mesmo para o documentarista. Periodicamente, ele publica alguns vídeos em seu canal no YouTube (Aderbal Nogueira - Cangaço), perto dos 40 mil inscritos. "Lembro que às vezes eu chegava pra filmar nas cidadezinhas e o pessoal até se assustava com os equipamentos", recorda. Com muitas histórias que ainda não foram contadas, Aderbal se dedica, atualmente, a escrever um livro a partir de suas memórias como documentarista dos remanescentes do Cangaço. "São depoimentos com valor histórico sem tamanho, e, quando paro pra pensar, eu não entendo como essas pessoas que conheci criaram uma empatia tão grande comigo, ao ponto de me contar coisas que aconteceram na vida do cangaço e que não tinham coragem de dizer nem mesmo para os seus familiares", relata. Ele também costuma receber diversos pesquisadores interessados no tema. "Ainda há muito o que estudar, essa história ainda tem muito a ser descoberta", avalia.
Link para o canal de Aderbal Nogueira: https://www.youtube.com/channel/UCG8-uR9AwvjAzQddbT3t3fg
Durval Rosa, o último coiteiro de Lampião
Aderbal teve a oportunidade de entrevistar Durval Rosa, falecido em 2003, homem que delatou o bando e levou a volante (polícia) até a Grota de Angicos, em Sergipe, local onde Lampião foi morto junto com outros integrantes do bando, em 1938. "Ele disse assim: sabe por que que eu vou falar com você? Por que todo mundo já morreu, e ninguém vai mais me fazer mal, ninguém vai mais se vingar, então vou falar com você", descreve Aderbal. "Na minha opinião, é a pessoa mais importante para descrever minuciosamente o que aconteceu naquele dia do combate em Angicos", conta.
O filho do primeiro inimigo de Lampião
Em 2002, Aderbal realizou uma entrevista inédita com João Saturnino, filho do primeiro inimigo de Lampião, José Saturnino. No depoimento, João conta como o amigo de infância de Virgulino Ferreira se tornou o principal desafeto do cangaceiro após uma sequência de brigas que se iniciaram ainda na adolescência dos dois. "Foi por causa de José Saturnino que Lampião se tornou cangaceiro. Um sobrinho dele, meu amigo, me levou lá na casa dele, em Pernambuco, para conversar com ele. Foi um dos depoimentos mais difíceis de se gravar", conta o pesquisador. A entrevista está publicada em seu canal no YouTube.