A vigésima edição do Big Brother Brasil (BBB) completará a quarta semana e já acumulou casos de assédio, intimação da Polícia Civil e "estratégias" para manchar a imagem de competidoras a partir de traições. Todos protagonizados por homens contra mulheres.
Não é muita novidade para o programa, que em 2017 transmitiu em rede nacional cenas de violência psicológica, física e verbal entre Marcos Härter e a então namorada, Emilly Araújo. Na época, um inquérito foi instaurado pela Divisão de Polícia de Atendimento à Mulher do Rio de Janeiro (Deam/RJ) para investigar o caso.
O que mais impressiona, no entanto, é a firmeza dos homens acusados de que são inocentes. De que nunca fariam algo do tipo, e que as próprias mulheres afetadas "não se sentiram" abusadas e nem "viram" como abuso as ações, como afirmou o eliminado (por 80,72% de votos) Petrix Barbosa na manhã da última quarta, 5, no programa Mais Você.
Outros, no desespero de conquistar a simpatia do público, afirmam que não são machistas, afinal até doariam o valor do prêmio para ajudar mulheres com câncer de mama, por exemplo. Essa é a justificativa do brother Lucas Gallina: "Aí eu vou ser machista? Como é que eu vou ser machista se eu quero ajudar mulheres?"
Mas por quê analisar seriamente acontecimentos dentro de um jogo? O fato é que o BBB é um experimento social. Apesar do contra gosto generalizado em admitir que é possível absorver alguma lição do programa, é intrínseco do formato reality show expor alguns hábitos da sociedade brasileira - afinal, está no nome.
Para a socióloga Socorro Osterne, o BBB é um microcosmo do País. "O que acontece ali, acontece na sociedade. Aquilo não é surreal", explica. Ela aponta a seleção mais ou menos diversa dos participantes como auxiliador de fenômenos sociais, entre eles o machismo.
Membro do Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH) da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Socorro ainda diz que a produção do programa constrói cenários para facilitar os casos. "Quanto mais houver sensação (sensacionalismo), maior a audiência", analisa. Por isso, as festas seriam regadas a bebidas alcoólicas e o BBB enviaria caixas de cerveja após dias parados.
Importante ressaltar a parceria das mulheres do BBB20, empenhadas em discutir o machismo e outros preconceitos na casa. A sister Manu Gavassi tem representado a "equipe das meninas" ao pedir que as competidoras se confiem mais entre si e mantenham-se unidas. Marcela e Gizelly também são destaque, tendo divulgado o plano de traição dos brothers.
Já a professora de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC) Monalisa Soares entende que é difícil compreender o programa como um microcosmo da sociedade, já que as pessoas são escolhidas a dedo pela produção. "É uma história com personagens reais, mas ainda tem controle de edição. Quando se escolhe aqueles participantes, algumas questões gerais já se sabe que vão ser discutidas, como é o caso desse debate sobre machismo", analisa.
Ao mesmo tempo, ela entende que o BBB é incapaz de prever o comportamento dos participantes, o que dificulta identificar a intencionalidade do programa de gerar cenas com assédio. Para a especialista do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia, a produção tem sido pressionada pelo público, principalmente o das redes sociais, mesmo querendo abafar os casos de assédio.
"Você tem essa turma das redes, que é uma turma mais jovem, que acompanha 24 horas. É um público engajado com todo um debate mais contemporâneo sobre questões identitárias e de desigualdade da sociedade brasileira", diz. De acordo com Monalisa, o BBB consegue provocar debates sobre diversos temas, ainda que sem querer. "É um programa de interação humana, e por meio dela esses debates podem acontecer", conclui.
O verdadeiro jogo
A equipe de produção do Big Brother Brasil tomou uma decisão estratégica ao reunir as personalidades que compõem o elenco da vigésima edição. A fórmula é explosiva: confinar na mesma casa o que há de mais expressivo do machismo brasileiro com um grupo de mulheres extremamente fortes e bem resolvidas com seu protagonismo.
Foi graças a essa combinação de ambivalências que um reality show já cansado, entediante pela repetição ao longo de vinte anos, conseguiu voltar à boca do povo, engajando um espectro de opiniões bastante diversificado e acirrando a polarização que está no âmago dos debates públicos sobre a condição feminina. O que está em jogo no BBB20 é, portanto, o machismo versus feminismo.
A postura das moças confinadas tem sido bastante coerente e passou, em primeiro lugar, pelo questionamento das práticas misóginas e abusivas banalizadas na forma do comportamento cotidiano. Os envolvidos teimaram em não entender, pediram compreensão com as "meninices" masculinas: só há brincadeira onde a feminista vê violência. Diante de um cenário de resistência dos homens da casa, o movimento das moças ganhou em complexidade, dando origem a uma rede de solidariedade grupal que foi capaz de defenestrar da casa, com um índice de rejeição recorde, um dos rapazes mais tóxicos do grupo.
O enredo é conduzido novelescamente pela direção do programa, que colabora para criar um ambiente de tensão permanente. A reação da audiência ao programa tem sido um termômetro bom para nos deixar otimistas: ao que tudo indica, ao menos no espaço do entretenimento de massa, os machistas não passarão.
Juliana Diniz, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP)
Big Brother é espaço de reflexão?
A televisão é, historicamente, um dos meios de comunicação mais competentes na tarefa de representar debates sociais. Novelas e reality shows são entretenimentos consumidos por uma grande parcela da população e, em razão disso, possuem força motriz para alavancar polêmicas, permear debates, promover reflexões sociais e impulsionar mudanças de comportamento.
A mais recente edição do Big Brother Brasil tem tomado espaço significativo nas redes sociais trazendo questões sobre temas espinhosos a partir de situações ocorridas no programa envolvendo machismo, solidariedade entre mulheres e assédio. Está em curso um debate que se propõe denso e que transpõe os limites do programa. Mulheres dentro e fora do Big Brother têm refletido e conversado sobre como as informações de fácil acesso na internet e a popularização das pautas do Movimento Feminista têm proporcionado um olhar mais apurado, e consequentemente mais combativo, aos machismos cotidianos aos quais estamos submetidas.
As situações ocorridas no programa, antes tão banais e naturalizadas a ponto de nos impor silêncio, agora são complexificadas e contestadas. Os episódios têm sido material para que se repensem as posturas que tomamos em nossos círculos sociais e possamos construir uma realidade diferente.
O caráter massivo dos programas de entretenimento na TV, apesar de ser uma característica que se coloca como pejorativa, também precisa ser visto como aliado para que questões de relevância social tenham maior capilaridade, abram espaço para debates e mudanças de comportamento e gerem transformações nas estruturas sociais.
Marina Solon, jornalista e mestranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC)