Logo O POVO+
Com quantas letras se faz uma mulher?
DOM

Com quantas letras se faz uma mulher?

Edição Impressa
Tipo Notícia Por
8 de março, Dia Internacional da Mulher (Foto: Camila de Almeida)
Foto: Camila de Almeida 8 de março, Dia Internacional da Mulher

[ Múltiplos femininos ] Neste dia 8 de março trocamos as rosas por palavras. Não que as rosas não falem. É que as palavras é que têm o poder de dar sentido aos múltiplos femininos. Elas – as palavras –, férteis em seus significados e sentidos, fecundam a linguagem e esta, por sua vez, gera Mulher, uma obra complexa. Mulher, obra aberta que transcende gênero e alcança desejos, identificação, almas.

A ideia deste especial Fragmentos de um vocabulário feminino é oferecer sentidos particulares para termos que circundam o universo feminino. Longe das certezas incertas das ciências – incluindo a filologia –, o convite é o do exercício do prazer em buscar a diversidade desses significados.

Um quê de mistério e surpresa acompanha o desenrolar do passeio de A a Z. Cada palavra ou verbete foi ao encontro da compreensão da vida e do mundo de uma mulher e dela recebeu sentidos que moldam uma tessitura da realidade feminina no contemporâneo. A beleza dessa mandala de sentimentos, cores, imagens está na busca desse sentido amplo que cada mulher percebe nas palavras que formam um caleidoscópio de percepções. Coisa de Mulher. Boa leitura

A·BOR·TO

[ LUTA ] Este mês, no dia 29, fará um ano que a cineasta e ativista Agnès Varda nos deixou saudosas na praia. Atravessada por coragem, em 1971, ela assina o "Manifesto das 343", uma petição em que mulheres se declararam a favor da legalização do aborto.

Infelizmente, para Agnès, para mim e para muitas das mulheres do mundo, o aborto permanece ilegal quase 50 anos depois. Somente 63 países legalizaram a interrupção da gravidez, a maioria deles apenas até a 12ª semana, considerando o "livre arbítrio". Em outros, como o Brasil e a Argentina, a situação ainda é restrita, sendo descriminalizado em casos de anencefalia, quando há riscos para mãe e por consequência de estupro.

Pelo menos uma mulher morre a cada dois dias no Brasil por causa de um aborto induzido, segundo o Ministério da Saúde. As estatísticas mostram ainda uma média de 1 milhão de casos por ano e a hospitalização de pelo menos 250 mil mulheres por causa da interrupção voluntária da gravidez. É claro que a maioria delas são pretas, pobres e de periferia, parte não chegou aos 16 anos e não teve acesso à educação básica.

A criminalização não impede a escolha da mulher. Questões como o desenvolvimento da criança, a baixa renda, a falta de acesso ao ensino básico, a precarização da moradia e da alimentação definem, influenciam a escolha, ainda que por vias clandestinas não seguras. Pontuo também o abuso sexual e violência doméstica como fatores importantes na decisão.

A ilegalidade do aborto cai sobre nosso corpo como uma pena de morte, marginaliza-nos. São inúmeros os riscos que corremos. É uma questão de saúde pública urgente.

Agnés querida, como bem disse Saramago, a globalização detesta os direitos humanos, e a democracia ainda não é completamente real, mas saibas que de cá seguimos acreditando, comunicando-nos e aprendendo para fortalecer nossa luta. (Soledad Brandão)

 

AS·SÉ·DI·O

[ SEM CULPA ] Era 29 de junho de 2015, e eu estava a caminho do colégio onde ia buscar minha irmã mais nova. No cruzamento da rua Padre Valdevino com a avenida Dom Manuel, um ciclista me perguntou como chegar à Praça Portugal. Ele fez um gesto com a cabeça e, então, percebi que a dúvida era pretexto para eu vê-lo masturbar-se. Ao meio-dia. Em uma esquina movimentada. Fechei o vidro e segurei o choro enquanto ele ia embora sorrindo.

Muitas mulheres já vivenciaram situações assim. Segundo o levantamento feito em fevereiro de 2019 pelo Datafolha para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 22 milhões das brasileiras com 16 anos ou mais sofreram algum tipo de assédio nos 12 meses anteriores à pesquisa. Os tipos mais reportados foram cantadas ou comentários desrespeitosos na rua (32,1%) e no trabalho (11,5%). Em seguida, assédios físicos no transporte público (7,8%).

Isso acontece todos os dias, e, muitas vezes, procuramos os motivos em nós. Por que eu não estava com o vidro fechado? Por que não o ignorei, em vez de tentar ajudá-lo? Fiz algo que o incentivou a me abordar? Hoje entendo que a culpa é de quem se sente no direito de invadir nosso espaço. Naquele dia, em 2015, meu único alívio foi que minha irmã ainda não estava no carro. Pelo menos daquela vez ela foi poupada. (Gabriela Custódio)

BE·LE·ZA

[ SINGULARIDADES ] Ao longo da história as diversas sociedades criaram e modificaram ideias sobre beleza e belo. Estes conceitos tiveram suas raízes na filosofia clássica grega que imaginava o belo como bom, verdadeiro e perfeito. No passado, o belo foi também identificado como um dom divino. Na modernidade, a beleza se aproximou da arte e da estética e envolve êxtase, prazer, sedução e desejo. De modo geral, a beleza sempre foi uma qualidade exigida para as mulheres. Mas as formas da beleza feminina variaram. A beleza feminina já foi idolatrada, demonizada e, na contemporaneidade, tornou-se um produto de mercado que condiciona a vida de inúmeras mulheres que buscam preencher requisitos de beleza quase inalcançáveis. A beleza como produto resulta da imensa indústria da moda, dos cosméticos e da cirurgia plástica. Essa indústria impõe a crença que estar no padrão de beleza dominante é a condição para ser amada, ter sucesso e ser feliz. Assim, milhares de mulheres se tornam vítimas deprimidas, anoréxicas, bulímicas, insatisfeitas consigo mesmas. Mas, nos últimos anos, um novo conceito de beleza está se construindo, pela resistência de muitas mulheres, baseado na integração do interior e exterior de cada mulher que se aceita e se revela como ela é, com suas particularidades. Dessa forma, as mulheres estão se tornando belas com sua diferença e singularidade. Ou seja: "sou bela porque sou eu mesma e me amo assim". (Maria Dolores de Brito Mota)

 

Colagem verbete dia da mulher
Colagem verbete dia da mulher

CLITÓRIS

[ PRAZER ] Para começar nosso verbete, a primeira dúvida é quanto a pronuncia e escrita do mesmo. Clítoris ou clitóris? Ambas formas estão corretas, mas na oralidade a forma clitóris impõe-se.

A origem da palavra advém de "kleitorís", um substantivo grego que denomina um tipo de pedra. Logo, ele pode ser visto e interpretado como a pedra que fecha a gruta ou a chave capaz de abrir ou trancar de vez o acesso ao prazer e à fecundidade da mulher.

O clitóris é essencialmente um órgão sexual feminino que tem como única e exclusiva função ser fonte de prazer para a mulher. Diferentemente do homem, que possui um órgão sexual com múltiplas funções. O pênis realiza a micção (urinar), a ejaculação e também participa do ato sexual.

O órgão do prazer feminino é constituído por três partes principais que são os bulbos, corpo e glande. Mede em sua totalidade cerca de 6 cm. Entretanto, sua área visível corresponde somente à glande (uma pequena parte dele) que tem um tamanho menor que uma ervilha.

A glande do clitóris está localizada na união dos pequenos lábios, abaixo de uma dobra de pele que denominamos Tenda do Clitóris. Este, definitivamente, é o ponto mais sensível do órgão. A glande concentra cerca de oito mil terminações nervosas, tornando essa estrutura especialmente capaz de captar sensações sexuais prazerosas.

Assim, fica claro que o clitóris é o que podemos chamar de chave mestra do prazer feminino, afinal é dele que partem os estímulos sexuais que desencadeiam o orgasmo feminino.(Rayanne Pinheiro)

COR· PO

[ SENTIDOS ] Do latim "corpus" que significa repertório ou conjunto de uma obra atribuída a uma pessoa. Quando se trata do corpo feminino, os sentidos avançam.

De menina à mulher, o corpo é mistério, surpresa, prazer, danação, glória.

O corpo é essencialmente político.

A casa de si é espaço íntimo que sangra, abriga e alimenta. Mas também é social.

Fonte de inspiração constante na arte - em todas as suas linguagens.

Quem não sabe que o arquiteto Oscar Niemayer rabiscava suas obras tendo em mente saliências, côncavos e convexos que bordam uma mulher?

O que dizer do cineasta David Lynch que põe mulheres ao avesso como se procurasse um tesouro perdido!

O corpo que inspira é o mesmo que assombra e amedronta.

A história é pródiga em sinalizar que o corpo da mulher incorpora todas as tensões de uma sociedade em constante mutação.

Nos regimes totalitários, o corpo feminino se transforma em propriedade do Estado.

É necessário escondê-lo, negá-lo, silenciá-lo.

Mesmo nas democracias o corpo ainda causa espanto. É preciso domá-lo. Uma mulher não daria conta de si, dizem legislações, tradições, religiões.

Corpo, palavra de origem latina, significa um conjunto de desejos, anseios, dúvidas cujo principal sentido é a leveza da consciência de si. (Regina Ribeiro)

DE·SE·JO

[ Entranhas] É nome que se dá para o reboliço de dentro da gente. Desejar é quando se quer com muita vontade; tanta, tanta que nascem borboletas no estômago e o sangue borbulha feito larva. Desejo pode ter objeto e, se tem, o querer vira faísca nos olhos. Desejo é o quente que dá quando se abraça. É a vida em brasa quando se beija. Desejo é pensar no futuro com força. Não desejar é anestesia.

O instante que precede o movimento, a mudança, a ida, é justinho quando acontece o desejo. Desejar é o meio do caminho entre o que se é agora e o que se quer ser no já já. Desejar é manter a fogueira da vida acesa; é alumiar os caminhos da existência. Desejo é respirar sem medo o ar cheio de chispas de uma lareira atiçada.

Desejo é substantivo masculino, mas a substância dele é feminina. É das entranhas de mulheres que surgiu o desejo de ser mais do que nos mandaram ser. É das vísceras das mulheres que nascem os rebentos dos desejos. Desejo é força propulsora. Foram elas, com seus quereres, que forjaram o caminho que percorremos hoje. É porque desejo é o que vem antes da coragem. E só com coragem a gente luta para que os sonhos de mudar o mundo permaneçam vivos. (Domitila Andrade)

 

Foto para o DOM do dia 08 de março, em homenagem as mulheres. (Foto Priscila Smiths)
Foto para o DOM do dia 08 de março, em homenagem as mulheres. (Foto Priscila Smiths)

E·DU·CA·ÇÃO

[ Partilhar ] Tem um conto da cultura universal que versa sobre uma criança que vê o mar pela primeira vez. E, vendo-o tão imenso, pede ajuda ao familiar: "Me ensina a olhar!?". Educação, para mim, é isso: ajudar a ampliar horizontes, contribuir para que as pessoas consigam enxergar a imensidão de possibilidades que está para além do que os olhos podem ver. Olhando outros limiares e ajudando a construir outros mundos, onde viver é mais possível. O invisível tornado visível. Na escuridão poder ser luz, na competição poder ser solidariedade, no individualismo poder semear amor ao próximo e ser próximo. Educar requer amor, não pelo conhecimento, mas pelas pessoas, pela humanidade que nos habita. E não é unilateral. Educação vem de todos os lados. É preciso entender que se aprende mais quem está em posição privilegiada. Como mãe, pensamos que somos nós que estamos para ensinar os filhos, no entanto, estão eles aqui para ensinar também. Como professoras, necessitamos ter essa clareza de que ensinamos mais, possibilitando mais aprendizagem, se nos permitimos estar no lugar de aprendizes. (Fábia Napoleão)

 

EM·PRE·EN·DE·DO·RIS·MO

[ Avanço ] Beatrizes, Letícias, Fabíolas, Bárbaras e Helenas. Não importa o nome. Elas acordam cedo e levantam com o mesmo pensamento que martelava a cabeça quando deitaram para dormir: as alegrias e problemas de ter seu negócio. Algumas têm filhos, podem ser mães solteiras, fazem academia ou não, mas todas se arrumam impecavelmente para ir à luta. As oportunidades foram diferentes. Mas em comum têm as obrigações do dia a dia e a busca por se especializar. Chegam a ter nível de escolaridade 16% superior aos homens. Por outro lado, continuam ganhando 22% menos. A vida, portanto, lhes ensinou a serem duronas e ao mesmo tempo a abraçarem a dor do outro. São lados distintos, mas que se complementam nessas mulheres. E no caminho até chegar, quem sabe, ao topo dos negócios, pesos parecidos, quiçá iguais. Dificuldade maior para conseguir financiamentos é apenas um exemplo, mesmo que a taxa de inadimplência dessas guerreiras esteja abaixo dos homens. Mesmo assim elas persistem contra as asperezas que a trilha do empreendedorismo pode dar, e, quando uma mulher empreende, ela muda ciclos de violência, toma a rédea do seu destino, e reflete na vida de muitos, pois o que conquista retorna para seu lar e impacta no avanço da sociedade. (Beatriz Cavalcante)

 

FE·MI·NIS·MO

[ Possibilidades]

Feminismo é um movimento social que engloba várias ações políticas em prol do fim da desigualdade social numa perspectiva de gênero, promovendo a conquista de direitos iguais para mulheres.

Até entrar no ensino médio, eu não conhecia essa palavra. Não tinha vivência o suficiente para saber o que se tratava. Hoje, entendo que, se eu estava naquela sala de aula para aprender, é porque mulheres feministas lutaram para isso. Se meu nome e de tantas outras repórteres aparecem nesta página de jornal, é graças a Nísia Augusta, que em 1831, utilizando-se do pseudônimo Dionísia Gonçalves, se tornou a primeira jornalista feminina do país.

Atualmente trabalhando com o dia a dia do jornalismo esportivo, faço o que amo. Acompanho esportes, analiso jogos. Ouço mulheres que narram e comentam em lugares que, antes, eram ocupados apenas por homens. Sei que estamos aqui graças a Maria Helena Nogueira Rangel, que em 1948 adentrou na redação da Gazeta Esportiva e tornou-se a primeira jornalista esportiva do País.

Graças a essas mulheres e tantas outras que vieram antes delas, tendo ou não seus nomes em livros de história, agora temos vez, voz e, cada vez mais, direitos. Graças ao feminismo eu tenho sonhos e sei que tenho possibilidade de realizá-los. (Iara Costa)

GAS·LIGHT·ING

[ DISSIMULAÇÃO ] Você está louca. Não é nada disso. Você precisa se tratar. Frases assim definem agressões categorizadas como gaslighting, manipulação em português. O termo, ainda estranho para muitos e inspirado em filme da década de 1940 com o mesmo nome, traduz realidade vivida pelas mulheres muitas vezes.

Quando alguém desqualifica suas percepções, as considerando como destemperos e fora da realidade é de gaslighting, um tipo de assédio moral, que estamos tratando.

Diferente da violência física, mas não menos danosa, a agressão psicológica pode ter consequências seríssimas, como a destruição da autoestima. O lado que sofre gaslighting chega a sentir-se culpado em uma plena inversão de papéis.

Por vezes também estive em situações de clara tentativa de manipulação do que eu julgava ter visto, vivido e sentido. Em algumas relações amorosas, parceiros me deixaram zonza com tantas atitudes, pensadas ou não, de me colocar dentro de um cenário de simples comportamento histérico ou ciumento. Na verdade, existia a construção de uma fuga da verdade ou o desejo declarado de trapacear meu discernimento.

Para mim, a saída sempre foi: fortalecer a autoconfiança e cercar-me de pessoas que me conhecem e que me amam para não me perder de mim mesma. (Adailma Mendes)

 

HÍ·MEN

Para o correto cultivo dos amores

Há que se romper o selo virginal

Eles disseram

Demarcando a nossa pele e adiando seus ardores.

Não sabiam, no entanto

Que este dia chegaria:

Dos amores próprios e convidados

Para fazer anunciar

Que o tal selo nem sempre existia

E que apesar de em muitas mulheres

Ser do corpo anfitrião

Às vezes é só uma marca

Noutras faz parte da ocasião

E se é de haver um momento

Para falar desse hímen em nós

Que seja em razão dos festejos

da carne inteira, livre e alada

E do peito inflamado de olhar o espelho

e se reconhecer dentro do corpo amado. (Kah Dantas)

I·GUAL·DA·DE

[ Representatividade ] Quando criamos o "proposições" já sabíamos que o desafio era grande. Sabíamos, sobretudo, que falar do Parlamento era arriscado. É um dos ambientes mais ocupados por homens no país.

Mas tínhamos algo em mente: exercer os nossos direitos, fiscalizar o erário e tornar público nos colocava em um ambiente privilegiado ao que poucas mulheres se expõe. E foi sob esse ambiente masculino, que passamos a reconhecer a igualdade de gênero não só como um direito, mas como uma necessidade. Pouco no Parlamento é sobre nós, poucas de nós estão lá. Falar sobre esse Parlamento é então mais necessário do que parece!

Resolvemos fazer a nossa parte nesse processo e todos os dias, fiscalizando o Parlamento, lembramos quantas Marias e Joanas estão em jornada tripla pelo País sem ninguém para contar a elas o que o deputado que elas votaram está fazendo.

O mundo não anda com ideias unas, mas depende de várias mãos, inclusive das nossas. Não podem nos excluir desse processo. A igualdade que nós queremos ainda não foi conquistada e nem é debatida com a urgência que precisa. Mas enquanto não causamos naturalidade nesses termos, tentamos causar incômodo. Quem sabe assim, um dia, legislam em nossa causa. (Mariana Oliveira e Marcella Viana)

 

LI·BER·DA·DE

[ LUTA ] Tenho passado pela vida adulta de uma maneira que pode ser encaixada na definição de muitos para "mulher livre". Nos últimos anos, tive a oportunidade de trabalhar de forma bem remunerada, sozinha viajei, parei em bares, restaurantes e cinemas, usei as roupas que eu quis, tive mais de uma relação, estudei mais de um assunto... Se me sinto livre? Não.

Quando individualizo a libertação e a desassocio da política, arrisco me conformar apenas com a beleza e esquecer que não há liberdade real se não coletiva e desacompanhada de dor. Não posso. Não podemos.

Os trabalhos e os estudos foram acompanhados de solidão. As viagens, os bares e os restaurantes foram acompanhados de medo e julgamentos. As roupas foram acompanhadas de assédio. As relações foram acompanhadas de desigualdades de gênero... Se me sinto livre? Não.

Se possível, às definições de liberdade do dicionário incluiria o título de um dos livros da Angela Davis: "a liberdade é uma luta constante".

Que a nossa liberdade não seja definida e limitada pelo patriarcado, pelo racismo ou pelo capitalismo. Que seja uma luta constante para que mulheres como Marielle Franco possam atuar politicamente sem a chance de virarem vítimas de um Estado racista e feminicida. Que o número de Ericas Malunguinho seja maior que o de mulheres trans mortas no Brasil. Que a pele e o cabelo de Bárbaras Quirino não sejam capazes de encarcerar. Que mães como a Janaína Soares não se percam e nem percam seus filhos e suas filhas para a necropolítica. Que Ágathas Félix sejam de fato livres para serem o que quiserem. Que a liberdade seja luta. Constante. Coletiva. E finalmente real." (Lare Teixeira)

 

Mans·plain·ing

[ Silenciamentos ] Mansplaining é um neologismo de língua inglesa ainda sem tradução literal para o português. O termo une as palavras "homem" e "explicar" como forma de denominar uma situação onde um homem esclarece alguma informação a uma mulher, muitas vezes em tom paternalista, como se duvidasse da capacidade intelectual dela em compreender determinado assunto. Não raro nesses casos a mulher domina o tema e ainda assim é colocada em posição de aprendiz. Situações de mansplaining pressupõem um despreparo da mulher enquanto presumem que o homem é naturalmente detentor do conhecimento. Desta forma, mulheres são tidas como figuras de descrédito e desimportância. O mansplaining funciona ainda como um mecanismo para que mulheres duvidem de si mesmas, das bagagens intelectuais que carregam e dessa forma limitem suas possibilidades de fala. A historiadora Rebecca Solnit, autora do livro Os Homens Explicam Tudo Para Mim, esclarece que o mansplaining deriva de uma sociedade centrada na figura do homem, que desenvolve ambientes onde homens dominam espaços de fala de forma a promover uma atitude de autoconfiança, enquanto as mulheres são corriqueiramente silenciadas, fazendo com que sejam levadas a crer que suas falas são inúteis e indesejáveis. (Marina Solon)

Me·no·pau·sa

[ DESACELERAR ] Somos programadas e bombardeadas para sermos jovens e bonitas eternamente. Quando somos mais novas, a força nos move, e quase não temos tempo de nos sintonizar com a natureza, respirar, observar os ciclos da vida e os processos que ocorrem em nós e no nosso corpo. Foi assim que a menopausa chegou para mim: inadvertidamente, como um susto para uma pessoa que sempre se sentiu e se viu como jovem. No entanto, a passagem do tempo e mudança das fases, felizmente, veio carregada de presentes inesperados. A menopausa traz um tempo de mais luz, onde a gente não precisa provar muita coisa para os outros. Pede desaceleramento, cuidado de si, contemplação. É perfeita para saborear os frutos, feitos e afetos que plantamos no caminho. Se o corpo já não é tão perfeito, a gente aprende a usá-lo muito melhor, com mais segurança, sabedora de nossos desejos e encantos. Tempo de selecionar mais, amar melhor e mais suavemente.

Hoje acho lindo ver mulheres maduras, em paz com seu corpo e o ciclo do tempo. E devo dizer que estou amando essa fase da minha vida. Não importa tanto se o corpo perde o viço, o que importa é entrar num acordo com o tempo… e que o espírito ganhe brilhos definidos e espalhe benefícios, como diz Caetano, em sua Oração ao Tempo. (Rachel Gadelha)

 

MENS·TRU·A·ÇÃO

[ FARTURA ] Dicionarizada, a palavra me aparece apresentada em sinônimos tão desconhecidos quanto hilários quanto bonitos. Diz o Michaelis que podemos a chamar de pingadeira, rabeca, veículo (?), escorrência e até de chico pode ser nomeada. Não gosto de nenhum desses sinônimos e este último é um verbete que pra mim só faz sentido quando acarinhava meu cachorro ou sou acarinhada pelos artistas que amo - seja buarque, césar ou science.

E que indelicadeza da minha parte se eu a fosse alcunhar de "incômodo" - mais um apelido autorizado por Michaelis. Prefiro até "volta da lua", mas sou daquelas poucas ou talvez muitas que estufam o peito para falar a palavra menstruação. Por mil motivos, incluindo o privilégio de ela não me trazer nenhum sofrimento físico. E quando trouxe, num passado relativamente distante, era tolerável e curto, e só pra avisar que estava chegando.

O vermelho forte que sai de mim me aparece poderoso e me faz sentir tão viva quanto a fartura dessa cor. Dá-me sustos quando se esquece de mim. Faz-me mais intensa e ávida de mais todas as sortes de desejos, inclusive o de viver. Ele ativa a lembrança e a certeza de que nós, mulheres, podemos nos reproduzir - e apenas se assim quisermos. E que bonito que meu sangue é. (Raquel Chaves)

 

NE·GRAS

[ LUTAS ] As mulheres que me tiram da solidão têm cor. Há um abismo social que vai se estampando e ganhando dimensão no cenário conforme espaços de privilégio vão sendo acessados. Na universidade pública, nos locais de trabalho, nos restaurantes, nos aeroportos... Basta olhar ao redor para se perceber como corpo negro sozinho. Mas as mulheres que me tiram da solidão nesses lugares, elas têm cor. Há um olhar cúmplice quando nos cruzamos. Nada é dito, mas eu sei o que sentem quando me veem porque eu também sinto. Representatividade é possibilidade. Na convenção dos Direitos da Mulher em Akron, Ohio, em maio de 1851, Sojourner Truth, ex-escravizada, entrou no auditório com passos firmes e fez a pergunta que ecoa quase 170 anos depois: "Eu não sou uma mulher?". Desde sempre, as questões das mulheres pretas foram distintas das lutas de mulheres brancas, mas é a luta negra que emancipa todas nós. O fardo da escravidão é uma conta que nunca chegou perto de ser paga. Na história, enquanto mulheres brancas lutavam pelo voto, mulheres pretas queriam cidadania; enquanto mulheres brancas reivindicavam o direito ao trabalho, mulheres pretas já cumpriam horas exaustivas de labuta. A verdade é que mulheres pretas sempre lutaram, antes de tudo, pela vida. E o fato de eu, como jornalista, formada, poder preencher essas páginas é resultado da luta de muitas outras que vieram antes de mim. De Sojourner, que desbancou o argumento machista da fragilidade feminina; da minha avó, que sempre me encheu de auto-estima; das mulheres que me veem nos espaços e congregam comigo pelo sonho de um mundo cada vez mais justo para as meninas pretas que virão. Elas saberão o quanto lutamos. Elas saberão que não haverá solidão. (Eduarda Talicy)

PO·LÍ·TI·CA

[ Alziras ] Alzira Soriano de Souza, 32 anos, viúva e mãe de quatro filhas, em 1929, assumiu a prefeitura de Lajes, no Rio Grande do Norte. Foi a primeira mulher na América Latina a ousar governar uma cidade, antes mesmo da conquista do direito ao voto pelo eleitorado pelo feminino no Brasil. Desde então, novas Alziras têm se aventurado numa selva ainda com supremacia masculina. Essa é uma luta de gerações que desbravam o caminho pela igualdade de direitos entre os gêneros. Mesmo com uma política de cotas eleitorais (graças à designação de uma porcentagem de 30% de candidatas femininas dentro dos partidos), o estudo Perfil das Prefeitas no Brasil (2017-2020), realizado entre maio e julho de 2018, mostra que as mulheres governam somente 12% das 5.570 cidades brasileiras. Os números mostram como é necessário o surgimento de novas Alziras para um debate mais equilibrado na política, com a representação de todos os gêneros. Portanto, quando se fala da participação feminina em cargos eletivos, fala-se em fortalecimento da democracia, diante das evoluções e retrocessos sociais; vai além da luta pelas causas femininas: trata-se da garantia de voz a uma população que é maioria (51% dos eleitores), mas não tem a representação devida. (Neila Fontenele)

Queer

[Ressignificado ] A palavra queer surgiu no século XVI significando "estranho", e foi usada por muito tempo para descrever pejorativamente pessoas divergentes da normatividade cisgênero/heterossexual. Somente a partir da década de 1980, com o fortalecimento da pauta LGBT, o termo passou a ser ressignificado pela própria comunidade. Nos anos 1990 o desenvolvimento da teoria queer trouxe o embasamento dos estudos de gênero à sociologia. Com essa evolução conceitual se concebeu muito do que se discute hoje no movimento LGBT, especialmente questões relativas a pessoas trans e não-binárias. A própria confusão sobre se o termo queer define pessoas LGBT como um todo ou somente pessoas que não se identificam no padrão binário de gênero é parte importante da própria noção sobre o que é ser queer. Ainda que movimentos conservadores que se dizem feministas tentem argumentar o oposto, a vivência queer e a feminilidade podem se unir tanto como identidades de uma mesma pessoa quanto como formas aliadas de não se submeter à lógica do machismo. Oito de março é, portanto, também dia para as pessoas queer se posicionarem contra a opressão do patriarcado, que atinge a todas nós. E lá estaremos, além de qualquer preconceito. (Bemfica de Oliva)

 

RES·PEI·TO

[ Obrigação ] Se dê ao respeito. Não consigo calcular quantas gerações de mulheres cresceram ouvindo essa afirmação. Sempre dita com cuidado, com o afeto de mãe e a proteção de pai. Ainda assim, perpetuou sobre as mulheres a condição de que é dela a responsabilidade de ser ou não respeitada. Como se o respeito que toda mulher tem direito estivesse condicionado apenas às atitudes dela e não em todos os outros. Se dê ao respeito obriga toda mulher a sentar de pernas fechadas, não exagerar no comprimento da minissaia, não rebolar demais, não falar palavrão e sabe-se lá mais o que uma cultura que se diz protetora, mas que é em essência repressora, julga ser respeitável ou não. É um velado aprisionamento do corpo e, principalmente, um subliminar cerceador do direito de ir e vir da mulher. Uma faísca para a explosão de culpabilização que a mulher sofre todos os dias. A culpa é da roupa justa, a culpa é de quem anda sozinha à noite, a culpa é de quem não se dá ao respeito. Essa é apenas uma das expressões que exclui e oprime as mulheres ao longo dos séculos. Talvez essa questão seja desconfortável para algumas pessoas, mas falar sobre ela é o caminho para a partir de agora ensinarmos as nossas meninas que respeitá-las é obrigação dos homens. E, aos nossos meninos, que toda mulher merece respeito. (Paula Lima)

 

SO·RO·RI·DA·DE

[ Apoio] Os pés negros, franzidos pelo tempo, se apoiavam na parede para impulsionar o balaço da rede. Foi nesse movimento que ela me contou sobre como auxiliou uma mulher a parir. Estava subindo em uma duna, quando escutou um grito. Aquele som rasgava seus ouvidos. Mudou de rumo e saiu conduzida pelo barulho. Ao se aproximar, encontrou uma moça agarrada em um coqueiro. Aquele tronco parecia ser sua única companhia. De cócoras, pernas abertas. Muito suor e choro. Ela tava parindo. Por um impulso comandado apenas pelo instinto, os braços da minha avó agarraram a desconhecida. Sua fala, firme e cirúrgica, instigava aquele corpo cansado. Outro choro: agora miúdo e agudo. A senhora transeunte segurava o bebê, ainda sem nome. Assim como essa criança, foram as mãos da minha avó que me deram boas vindas a este mundo. No primeiro nascimento, solidariedade. No parto da neta, amor. Em ambas as experiências, apoio e respeito. Poderia citar inúmeras escritoras, acadêmicas ou blogueiras que pintam com glíter, serpentinas e purpurinas o conceito de sororidade. Mas do lado de cá, penso que tudo se resume a história da Dona Ana e a empatia das suas mãos generosas. (Helena Barbosa)

Ú·TE·RO

[ Opressão ] É um touro, pensei. Não, espera. Franzi o cenho, aproximei o rosto do livro e, claro, é um elefante rosa! Passaram-se muitos anos desta aula de Biologia cuja minha única preocupação era contornar o útero com um lápis para transformá-lo em animais e ignorar a explicação sobre o sistema reprodutor. Um nome estranho que acompanhava tantos outros. Isso não mudou.

"Endométrio, tubas uterinas, ovários, vagina, vulva", listava o professor. Ao longo deste tempo, compreendi que esse órgão é ainda mais complexo que aulas e nomenclaturas para mim entediantes. É um argumento biológico de opressão contra as mulheres. O que os livros didáticos não contaram é que o meu útero não precisa ser morada materna se eu não quiser e essa possibilidade não me desfigura como mulher. O meu útero transformo no bicho que me convém e não no que a sociedade desenha.

À mulher que não se tornou mãe por escolha, que sofreu por não poder gerar seus filhos, que adotou, que decidiu ter uma penca deles e à trans que não carrega o útero no ventre, o meu respeito e admiração.

Ao meu filho Pedro, que tanto circunavegou no meu hoje inabitável útero e tem aprendido diariamente sobre respeitar as decisões e corpo da mulher, o meu amor e o desejo de que não seja tão disperso nas aulas quanto a mãe. (Bruna Damasceno)

O que você achou desse conteúdo?