A rotina dos cearenses mudou consideravelmente nestes dez dias após o anúncio do decreto estadual que interrompeu o serviço de transportes intermunicipais e estabeleceu o fechamento de comércios, templos e outros locais que permitam a aglomeração de pessoas. Tais medidas foram necessárias para preservar a saúde de cearenses e impedir a propagação do novo coronavírus no estado, que está na segunda colocação no número de casos confirmados no País.
No entanto, apesar do esvaziamento das ruas, muitos têm seguido com suas rotinas porque trabalham em serviços essenciais, como os prestados por hospitais, mercados, farmácias, transporte público municipal e coleta de lixo, dentre outros. Esses homens e mulheres deixam a segurança de suas casas e as próprias famílias para desempenhar suas importantes funções e dar à população isolada um pouco mais de conforto, alento e saúde.
"No momento, o que eu mais queria era estar perto da minha família, mas, para eu conseguir ter eles por mais tempo comigo, tenho que me afastar até tudo isso passar", diz Carla, a enfermeira. "A gente faz a coleta de lixo do pessoal na rua, eles agradecem e pedem pra não parar nesse momento", lembra Evanderson, o gari, ao relatar como as pessoas reagem ao vê-lo prestar o serviço nas ruas. "Tem gente realmente precisando, e tem que tentar manter a calma", ressalta Iran, o médico, ao deixar os filhos pequenos em casa e sair para mais um plantão.
Enquanto tudo não passa, como espera Leonardo, o entregador de água, eles seguem trabalhando para manter um pouco de ordem em meio ao caos.
Médico: motivação para salvar vidas
O clima de trabalho está mais "pesado" nas emergências hospitalares. Em dois dos hospitais em que trabalha, o médico clínico e intensivista Iran Barros, 43, tem contato com pacientes confirmados ou suspeitos de Covid-19 e tem visto colegas médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem sendo afastados por adoecerem. O receio é constante, assim como o cuidado. "Nós ficamos apreensivos, com medo de pegar (a doença) e ficar grave, mas não tem outra maneira, tem que trabalhar. As emergências estão precisando que estejamos presentes e não tem outra maneira", conta. No hospital, utiliza os equipamentos necessários e toma banho antes de sair. Quando chega em casa, deixa os sapatos do lado de fora e volta para o chuveiro antes de, enfim, ficar com a família. Em meio a tudo isso, reconhece que a motivação é até maior. "Por enquanto, não estou gripado, mas (para) nós, que trabalhamos em emergência e em UTI, acho que é só uma questão de tempo para pegar essa doença." Em meio a tudo isso, reconhece que a motivação é até maior. "Tem gente realmente precisando, e tem que tentar manter a calma."
Gari: cotidiano solitário e intenso
Em 2018, Francisco Evanderson Rocha Sampaio, de 27 anos, começou a trabalhar como gari nos bairros Serrinha e Vicente Pinzon. Porque o serviço é essencial, está impossibilitado de ficar em casa e atender o decreto de isolamento social, uma das principais medidas de combate à pandemia do novo coronavírus.
Logo cedo, deixa a esposa em casa, no bairro Sapiranga, e parte para um cotidiano a cada dia mais solitário, apesar de intenso. "O pessoal está bastante em casa, então o lixo deu uma aumentada" afirma. No carro, sempre, dois funcionários e o motorista, todos equipados com máscaras e luvas. "Na rua as pessoas agradecem, pedem pra não parar nesse momento" conta.
Ao fim do expediente, médicos e enfermeiros reforçam a entrada da empresa para palestras e atendimentos médicos. Evanderson não pensa em parar, pois caso contrário "Fortaleza vira uma rampa", mas lembra -em tempos de vazio — o apego distante das vozes agradecidas.
Enfermeira: solidariedade que fortalece
A rotina de trabalho não é mais a mesma. Tampouco os sentimentos que acompanham a enfermeira Carla Antunes, 28, desde a saída para trabalhar no hospital, todas as manhãs, até a volta para casa. É a angústia na chegada de cada novo paciente, é o medo de voltar para casa e acabar contaminando, sem saber, a família, é a força que precisa ter para confortar aqueles que sentem nela um ponto de apoio. Carla mora com os pais e a avó, todos do grupo de maior risco. Casa de dois andares já está dividida. Saber que ela mesma representa um grande risco de transmissão amedronta e gera uma sensação completamente nova. O perigo, agora, está com ela. "No momento, o que eu mais queria era estar perto da minha família, mas, para eu conseguir ter eles por mais tempo comigo, tenho que me afastar até tudo isso passar", desabafa. Por outro lado, estar envolvida numa onda de solidariedade vem dando força à profissional. Os aplausos das janelas são formas de abraços. A tempestade mostra, com mais clareza, seu propósito de vida: cuidar da vida do outro.
Entregador: Água para quem tem sede
Todos os dias, ele sai para o trabalho após tomar o café fervido em uma lata, no fogo improvisado montado entre tijolos de construção. Francisco Leonardo dos Santos Nascimento, 47, não tem fogão nem botijão de gás. Morando em uma pequena casa com a esposa, duas filhas e um neto, o entregador de água carrega nas costas mais do que os 20 quilos do vasilhame cheio. A responsabilidade de ser o único a prover a família o motiva a fazer o trabalho da melhor forma possível, ainda que os tempos pareçam estranhos demais e as gorjetas, cada vez mais escassas. Dá bom dia, boa tarde, boa noite, pede licença e diz obrigado ao entrar na casa de pessoas em quarentena. Ele diz que alguns se afastam com medo. Outros, sem poder estender a mão, oferecem o que podem - de máscaras cirúrgicas a um sorriso de agradecimento por ainda haver como matar a sede sem ter que enfrentar as ruas. "Isso tudo vai passar, tudo passa", acredita, esperançoso da vida. Depois que a epidemia for embora, Leonardo quer realizar um sonho: ter um emprego de carteira assinada.
Responsável pelo ir e vir
Sumiço da clientela de um dos empregos, parcela do carro atrasada e carga horária reduzida. A pandemia do coronavírus afetou a rotina de Pedro Henrique Soares, 34 anos. Apesar das recomendações de isolamento social, o rapaz não pode deixar de ir às ruas de Fortaleza. Motorista de ônibus urbano, ele roda a cidade levando passageiros e fica exposto à aglomeração de pessoas, principalmente, nos horários de pico. "A gente fica apreensivo, com medo realmente. Trabalhamos sem proteção. Eu tenho álcool em gel, minha esposa sempre manda eu levar. Quando estou dirigindo, tento não lembrar dessa situação", conta Pedro. O motorista mora com a esposa e a filha de três anos em Caucaia, Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). Depois de horas de exposição, Pedro tenta evitar o contato inicial com os familiares no retorno à casa. "Minha esposa fica receosa. Eu passo direto para o banheiro. Só depois de me higienizar, abraço minha esposa e filha", explica ele, que deixou de visitar a mãe e a sogra, ambas idosas, faixa etária considerada grupo de risco à doença.
Caixa de farmácia: dias de tensão
Operadora de caixa em uma farmácia, em Caucaia, na Grande Fortaleza, Andréa Mendes, 37, tem vivido dias preocupantes enquanto mantém a rotina de trabalho. A preocupação com os familiares é o que mais a aflige.
6h30min. Ela já está com os pés na estrada. Caminha por 30 minutos.
7h. Andréa coloca a máscara e começa o trabalho. Tenta manter a distância ao falar, questiona sobre formas de pagamento e troco, recebe nas mãos dinheiro e cartões de créditos repassados pelos clientes. Passa incansavelmente o álcool em gel que está sempre por perto e, quando o fluxo de consumidores está menor, se levanta para lavar as mãos.
17h. O cuidado de evitar o contato humano aumenta para não levar a doença para a família.
17h30. "Chego em casa e entro correndo no banho, separo a roupa que usei para lavar logo e não contaminar ninguém e mantenho a distância deles. São dias tensos".