O cenário é inédito: 1,3 bilhão de crianças e adolescentes sem aulas no mundo inteiro, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Diante da situação, não é raro ver pais e mães às voltas com o sofrimento dos rebentos durante o distanciamento social que restringe até mesmo um simples abraço.
"É muito provável que as crianças carreguem esse estigma de não poder ter contato com as pessoas, por causa do medo da contaminação. O não poder beijar os avós, por exemplo, pelo risco de poder causar até a morte deles. Como essa situação pode ainda se arrastar por meses, o assunto precisa ser melhor estudado. Algo similar aconteceu na gripe de 1918, e alguns efeitos psicológicos ficaram como herança para os daquela geração", afirma o neurocientista Miguel Nicolelis em entrevista ao O POVO.
Para a pediatra Carolina Parente, coordenadora do serviço de pediatria do Hospital São Camilo Cura D'ars, os resultados da quarentena já podem ser percebidos no dia a dia do atendimento médico. "Esses efeitos são sentidos mais intensamente pelas crianças de dois anos, por causa da quebra de rotina familiar. Além disso, as crianças estão sendo privadas do contato social com outras pessoas e das atividades de lazer. Já as crianças maiorzinhas, por volta de cinco anos, estão ficando mais ansiosas e com certo nível de estresse, pois elas entendem um pouco mais a restrição social que a quarentena impõe e o medo de adoecer que os adultos acabam deixando transparecer para elas. E há ainda o crescimento no uso de equipamentos eletrônicos, já associado a aumento de estresse nas crianças, associada à falta de rotina e atividades ao ar livre", aponta.
"Para os pais, aconselho que eles não se culpem se não conseguem evitar isso. É uma fase difícil para todos e temos que extrair o melhor dela sem carregar esse peso. Daqui a uns meses, recuperamos as atividades sociais e ao ar livre com as crianças. É importante que os pais estejam com a saúde mental saudável para refletirem isso nos seus filhos. Alguns pais se cobram para que os filhos sempre estejam ocupados com atividades educativas, mas é bom também lembrar que o ócio e o brincar sozinho também fazem parte da evolução da criança", destaca.
Segundo a médica, ainda é preciso responder as perguntas das crianças sobre o momento atual e sobre o novo coronavírus, mas sem falar exaustivamente sobre o assunto. "Os pais devem conversar positivamente com as crianças e mostrar o lado positivo de estarem juntos. Em épocas de trabalho normal, os pais não conseguiriam acompanhar muitos desses detalhes", completa.
Manter uma rotina por escrito ajuda a criança a compreender as mudanças. O incentivo a brincadeiras e jogos que envolvam todos os membros da família também pode servir como ferramenta para o bem-estar dos pequenos, principalmente se o jogo envolve o aprendizado de algum conhecimento, como o nome das cores, letras, palavras em outros idiomas e habilidades manuais. "Para as crianças com necessidades especiais, como autismo, por exemplo, penso que cabe a mesma avaliação. Tenho um sobrinho autista e temos levado da mesma forma com que temos lidado com as outras crianças", afirma.
Hora de relaxar nas cobranças
Passado um pouco mais de um mês desde o início do isolamento, Arthur, de oito anos, dá a sua impressão sobre estar em casa o tempo todo com a mãe: "A gente está aprendendo a se cuidar um pouco mais. Ficar junto junto até que é legal", diz. Ainda que ache bom essa proximidade e até filosofe sobre os benefícios dela, pesa em seu pequenino coração a saudade dos avós, tios e primos que moram na zona rural de Mauriti (distante 499 km de Fortaleza). Em um desses dias de solidão, chorou e cobrou da mãe um irmão para lhe fazer companhia.
Damiana Gonçalves reflete sobre a proximidade com o filho entre uma pausa e outra das atividades profissionais que continua exercendo juntamente às novas tarefas domésticas. "Estou me dando conta de como ele cresce rápido e do quanto ele é afetuoso. Infelizmente, também percebi que alguns medos surgiram nesse período, como o medo de me perder e o de eu ficar doente. Apesar dele estar levando a situação da melhor forma possível, acontece de ficar fragilizado. Aí coloco a minha família para falar com ele, por chamada de vídeo, pra ele perceber que não está sozinho", afirma.
A advogada passou a cobrar menos tempo de estudo e deixar que Arthur faça mais o que gosta, como ver filmes, jogar videogame e jogos de tabuleiro. As brincadeiras dos dois são à noite e antes de dormir há leitura de histórias infantis e orações. "O isolamento está sendo difícil para nós dois, mas todos os dias eu vejo mais ainda o grande valor que um professor tem. Está realmente sendo muito difícil cumprir o papel de mãe e educadora", reflete.
"É normal a gente, como pais ou mães, se sentir um pouco perdido neste momento pelo qual estamos passando. Mas é preciso pegar leve consigo mesmo, não é hora de perfeccionismo e de querer fazer tudo. É momento de flexibilidade e de buscar ser bom apenas o bastante", explica o psicólogo Edmar Freire.
"É muito importante entender que o mundo mudou. Estamos em uma outra dinâmica. Não dá para esperar que a gente que trabalha em home office vá ter uma produtividade altíssima com os filhos em casa. É um momento que precisamos estar presentes afetivamente com os nossos filhos. Por isso, precisamos estar bem, próximos, e dando uma base segura a eles", acrescenta o escritor Thiago Queiroz, criador do site Paizinho Vírgula, especializado em conteúdo sobre criação dos filhos. (Flávia Oliveira)
Como lidar com os pequenos durante o período de isolamento social
Tente explicar a pandemia causada pelo novo coronavírus. "Depende muito das decisões e dos valores de cada família. A melhor forma é falar de uma maneira adaptada à idade da criança. Com meu filho de 7 anos e 5 anos consegui conversar. Falamos que o vírus é um bichinho pequeno, mas que ele se alastra muito rápido, passa de uma pessoa para a outra, deixa as pessoas muito doentes, mas faz muito mal e pode até matar as pessoas", explica Thiago Queiroz.
Leia um livro ou conte uma história para eles que possa acalmá-las antes de se deitarem. Também peça que eles usem o banheiro antes de dormir.
Manter uma rotina de cuidados com as atividades domésticas também é importante. "As crianças podem participar, de acordo com a idade e responsabilidade que possam assumir. Sentir-se útil e contribuir com o grupo social é fortalecedor de vínculos e da autoestima", destaca Alessandra Xavier.
Tenha paciência não só com as crianças, mas também com os idosos. Cuide da alimentação deles, oriente sobre a higienização e converse com eles, oferecendo espaços para falarem sobre como se sentem.
Para tentar diminuir a saudade do amiguinho da escola, os pais podem incentivar que os filhos utilizem ferramentas de videoconferência e mensagens de áudio.
Resgatar histórias da infância dos pais, cantigas de roda antigas, montar quebra-cabeças e jogar juntos. "Muitos pais têm se conectado mais com os filhos durante o isolamento apenas por falarem mais de si", afirma Silvia Cruz.
Reconhecer a vontade da criança e acolher a tristeza e frustração por ela não poder passear na rua, pois elas ainda não têm condição cognitiva, emocional e cerebral para lidar com esses sentimentos.
Os pais podem incentivar brincadeiras que despertem a imaginação na criança e responder: 'Poxa filho, você queria muito passear, né? Mas onde você queria ir? O que você queria fazer?' E quando você pergunta e entra nesse mundo da imaginação com a criança: 'Ah eu queria passear no parquinho!', aí você pode dizer: 'Poxa o parquinho, que tem aqueles bancos daquele jeito, que tem aquele balanço que você consegue ir bem alto. Seria tão legal a gente ir lá, eu também queria ir!'. E aí você está junto da criança, mostrando que você se importa com aquilo que ela está falando, que você está entendendo o que ela está dizendo e isso tudo ajuda a criança a se acalmar também", orienta Thiago.
Fontes: professora Alexandra Xavier (Uece) / professora Silvia Cruz (UFC) / Thiago Queiroz (criador do site Paizinho, professora Vírgula!)
O desafio de ensinar
A designer Nathália Alencar, 36, e a social media Jéssica Freire, 29, estão conciliando o trabalho em casa aos cuidados com a pequena Marina, de cinco anos. "Ela tem muita energia e, como moramos em apartamento, fica um pouco difícil gastar, porque se ela quiser correr, vai ter que ser apenas da sala para a cozinha. Às vezes ela reclama que sente falta dos amigos, da escola e dos primos, mas na maior parte das vezes, não consegue se expressar de outra forma que não virando a casa de pernas para o ar. Tentamos não reclamar muito porque entendemos que ela precisa extravasar, ainda que isso envolva tacar tinta na parede toda", brinca Nathália.
Marina está assistindo as aulas da escola pelo YouTube e sendo acompanhada remotamente por aplicativo de celular. Por estar no início da alfabetização, as mães se preocupam com os efeitos do isolamento. "Sinto muito dó dela, mas estamos buscando alternativas como fazer contação de histórias, chamadas de vídeo com a família, imitar coreografias junto e assistir os canais preferidos dela."
Para Silvia Cruz, professora na área de educação infantil na Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Ceará (UFC), o ideal seria mesmo não tentar. "Apesar do Conselho Nacional de Educação ter emitido um parecer permitindo o ensino remoto de crianças por meio dos familiares, acredito não ser bom que as famílias assumam esse trabalho que é pedagógico e deve ser da escola", afirma.
"A família tem outro tipo de trabalho a fazer com a criança, como ensinar coisas do cotidiano - e me refiro aqui exclusivamente às crianças da educação infantil. Uma iniciativa interessante que vejo é a de pais que estão preferindo ensinar aos filhos como costurar, cozinhar e contar histórias. Estão usando o tempo com as crianças em casa de forma mais prazerosa para todos e ainda passando novos conhecimentos aos filhos. Lembrando que essa opção não está acessível a grande parte das famílias brasileiras, as quais enfrentam nesse momento o desemprego, moradias precárias e poucos recursos", pontua. (Flávia Oliveira)