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Lucas Furtado, o cearense que virou "carrapato" do Planalto
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Lucas Furtado, o cearense que virou "carrapato" do Planalto

Torcedor do Ferroviário, formado na UFC e subprocurador do TCU, ele assina a maioria das representações contra atos do governo Bolsonaro
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Subprocurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), o cearense Lucas Rocha Furtado , em viagem a Portugal (Foto: Acervo Pessoal)
Foto: Acervo Pessoal Subprocurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), o cearense Lucas Rocha Furtado , em viagem a Portugal

Subprocurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), o cearense Lucas Rocha Furtado, 52, aparece nas manchetes dos principais jornais do País com frequência. É dele que parte a maioria das representações para que atos do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sejam fiscalizados e, eventualmente, freados pelos ministros do órgão.

O número de ações corre quase que na mesma proporção de cada novo movimento da gestão, o que em Brasília lhe confere o status de carrapato do Planalto. Só em 2019, publicou o jornal O Estado de S. Paulo, ele somou 67 representações, das quais 45 referentes ao governo Bolsonaro. São peças que envolvem o presidente, os ministérios e as autarquias federais, gerando muita raiva nos entusiastas do militar.

A publicidade do pacote anticrime, de autoria do ex-ministro Sergio Moro, por exemplo, foi suspensa pelo ministro Vital do Rêgo após pedido do cearense que, com base em matéria do jornal carioca O Globo, argumentou que a campanha havia custado R$ 10 milhões, sem que os valores tivessem sido expostos.

Baseado em outra ação do subprocurador, o ministro Vital do Rêgo, em 10 de julho, proibiu o Governo de abastecer financeiramente via anúncios sites praticantes de atividades ilegais, medida que se estendeu a mídias cujos conteúdos não sejam compatíveis com a natureza das publicidades.

Por ilegais, o profissional se referiu a sites que publicam resultados de "jogo do bicho" e que propagam "fake news", incluindo os portais alinhados politicamente ao discurso bolsonarista.

A simpatia de Bolsonaro pela cloroquina e pela hidroxocloroquina também foi objeto de ação dele no último dia 14. Rocha Furtado pediu aos ministros que obrigassem o militar a cessar a promoção do medicamento para o tratamento da Covid-19. Os fármacos, usados no tratamento da malária e do lúpus, por exemplo, não são comprovados cientificamente como eficazes da Covid-19.

A vastidão de iniciativas incômodas na perspectiva de Bolsonaro resulta em críticas, insinuações e, por outro lado, elogios, com os quais diz não se influenciar.

O telefonema do O POVO aguarda pouco até o momento em que do outro lado da linha se manifeste uma voz arrastada e, por isso, empenhada em se tornar compreensível. Como se necessitasse se justificar pelo Acidente Vascular Cerebral (AVC) do qual foi acometido, ele diz: "Desculpa, se você não entender alguma frase, eu posso repetir".

A fala é um rastro do que se passou em 2008, ano no qual, com 40 anos, o fortalezense atravessou um coma de aproximados quatro meses. Viveu entre as camas de quartos hospitalares e Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), auxiliado por aparelhos respiratórios durante a longa recuperação no Hospital de Brasília.

Em uma das quatro ou cinco conversas desapressadas entabuladas com O POVO por telefone ou por Whatsapp, Lucas Furtado simulou com tom assertivo o que é a resposta usada contra as provocações sobre onde estava o vigor dele para o trabalho na Era petista no Poder (2003-2016): "No hospital!"

Ele recorda ter sido dado como morto, inclusive. A extrema unção recebida, resultado do quadro clínico delicado, foi sinal de que familiares já se preparavam para o pior.

Lucas Rocha Furtado é filho de engenheiro e professora da rede Estadual de ensino, ambos aposentados e vivos. E irmão do badalado cirurgião plástico e artista visual Isaac Furtado ("ele é mais racional, eu sou mais passional", relata o médico), além da dentista Isabel e de André, o caçula.

A educação básica dele foi toda cursada no Colégio Santo Inácio, no bairro Dionísio Torres. Antes de enveredar pelo Direito, cogitou a Diplomacia como rumo profissional, mas somente cogitou.

Na data em que colou grau, em 1990, só conseguiu participar da solenidade por ter saído às pressas de um concurso na Unifor, instituição da qual viria a ter a primeira oportunidade de lecionar, entre aquele ano e o seguinte, graças ao quase atraso.

Os forrós em Paracuru preencheram os tempos de jovem, assim como a torcida pelo Ferroviário Atlético Clube. Como "não tinha emprego aí no Ceará", Rocha Furtado passou em concurso para assessor legislativo da Câmara dos Deputados. Ali ficou entre 1991 e 1994.

No início da mesma década, ingressou no corpo docente da Universidade de Brasília (UnB), emprego que mantém até aqui. "Normalmente eu pego duas turmas (em um dia). Cada turma, duas vezes por semana. Então, normalmente, segunda e quarta das 8 horas ao meio-dia. Outro dia, de 10 horas ao meio-dia", ele explica.

Às manhãs, quando a agenda abre brecha, frequenta a musculação, exercício praticado regularmente antes e depois de ter deixado os cuidados médicos.

Na lista de hábitos também consta assistir ao humorístico Modern Family e à terceira temporada da ficção científica Dark, ambos transmitidos pelo serviço de streaming Netflix.

Elege "Em Busca do Tempo Perdido", de Marcel Proust (1871-1922), como o principal livro da vida. Pouco consumido no Brasil, o conjunto de sete volumes fez centenário em 2013 e estampa grande parte das principais reflexões que o autor francês elaboraria sobre si mesmo, o amor e o tempo.

Mas a literatura deixou de permear a rotina desde que teve de passar por quatro cirurgias nos olhos. "Se operar uma vez é muito, já operei quatro." Uma fatia do tempo também vai para a namorada. "Uma gaúcha que não sei como me aguenta", ele brinca.

Mesmo após o AVC, descreve o procurador de Justiça do Ceará, Leo Bossard, o amigo seguiu dormindo no primeiro andar da residência em Brasília, como que para impor desafio aos próprios músculos, também impactados após as complicações daquele 2008.

A área atualmente mais destacada da rotina, a Subprocuradoria-Geral do Ministério Público junto ao TCU, é resultado de uma trajetória de mais de 25 anos. Foi o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) que, em 1994, o nomeou procurador do MPTCU, após aprovação em concurso.

Ano seguinte, mediante novo decreto de 11 de abril, galgou a Subprocuradoria-Geral "por merecimento". Foi ainda procurador-geral de 1999 a 2013, entre governos tucanos e petistas, voltando um degrau na hierarquia desde maio de 2013.

Rocha Furtado participou da investigação que mais tarde acarretaria na Operação Vampiro (2004), um trabalho da Polícia Federal que desvelou fraudes na compra de remédios pelo Ministério da Saúde do governo de Lula (PT), à época comandado pelo então ministro Humberto Costa (PT-PE), hoje senador.

Agora, Rocha Furtado é alvo dos membros das fileiras mais enfáticas de apoio ao presidente Bolsonaro. Pelo número de representações, o pastor e deputado federal Marco Feliciano (SP) já o acusou de militância política e criação de factoides com a imprensa.

Outra na linha de frente na defesa ao presidente, a deputada federal Carla Zambelli (SP) já atribuiu a Lucas uma amizade com o senador Renan Calheiros (MDB-AL). "Usam seus cães", minimizou o cearense, irônico.

Um emedebista com ascendência na instância nacional da legenda descartou a tese de Zambelli em conversa reservada com O POVO.

Em busca de averiguar a existência de elos entre os dois, a reportagem acionou o gabinete de Calheiros, solicitando entrevista ou envio de nota sobre a acusação da parlamentar. A mesma investida foi feita por WhatsApp. Em retorno, a assessoria respondeu que ele não iria se manifestar sobre o tema.

Sobre o ritmo de produção de representações, Rocha Furtado atribui à "competente e estressada" assessoria. "Se tarda, falha", repete como lema, numa paráfrase da máxima bíblica de que Deus tarda, mas não falha. Também figura como fator determinante a relação de leitor que tem com os jornais e com os próprios jornalistas.

Disse ele à reportagem em 1º de julho: "Deve ficar de olho no Twitter da Mônica Bergamo (jornalista da Folha de S. Paulo) para ver o que ela vai dizer da Lava Jato."

Minutos depois a jornalista publicou em sua coluna o pedido de investigação contra a força-tarefa do Paraná protocolado por ele.

Com base em publicação da revista Consultor Jurídico, ele solicitou abertura de apuração sobre supostas compras de sistemas de intercepção, e o sumiço de dois deles, além de fraude na distribuição de processos da operação. "Apesar dos elogios à Operação Lava Jato, ninguém em uma democracia pode ficar acima da lei", sustentou na peça.

Ele pauta a imprensa e se deixa pautar por ela. As peças sempre, ou quase sempre, fazem referência a matérias de jornais. "O que eu faço é simplesmente atuar com uma ponte entre o trabalho da imprensa e o poder público. O que eu faço? Encaminho ao Tribunal para fiscalizar. (...) Digo 'olha, isso é com base nessa matéria A, do jornal B, do jornal C. Então, culpa do jornal A, B ou C."

 

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