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Frei Betto: "Somos discípulos de um prisioneiro político"
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Frei Betto: "Somos discípulos de um prisioneiro político"

Aos 77 anos, frei Betto afirma que sempre foi difícil fazer sermões que incluam críticas aos governos autoritários e genocidas. Porém, se os pregadores "se calarem, as pedras clamarão", lembra o dominicano
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Frei Betto comenta as agressões de apoiadores de Bolsonaro ao padre Lino (Foto: Edimar Soares, em 1º/5/2014)
Foto: Edimar Soares, em 1º/5/2014 Frei Betto comenta as agressões de apoiadores de Bolsonaro ao padre Lino

A intolerância de católicos, seguidores do presidente Jair Bolsonaro, contra o padre Lino Allegri na paróquia da Paz, em Fortaleza, suscitou o debate sobre o papel do sacerdote e a homilia crítica durante as pregações. Para frei Betto, 77 anos, dominicano preso durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), a palavra de um padre “incomoda quem usa o nome de Deus para encobrir injustiças”.

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Para frei Betto, autor de clássicos a exemplo de o “Batismo de Sangue”, ninguém acusa de “fazer política” o padre ou pastor que prega contra o aborto e se cala diante da polícia que sumariamente assassina um suposto bandido. Ou quando um governante reduz o preço das armas e promove o aumento frequente do gás de cozinha.

Confira a seguir a conversa com o religioso mineiro que inclui a política em sua prática sacerdotal.

O POVO – O discurso e a prática de um sacerdote, pastor ou orientador espiritual precisam ser proféticas em momentos como o que atravessamos no Brasil?

Frei Betto - É uma exigência da Bíblia - Palavra de Deus - que a nossa pregação seja sempre profética. E isso invariavelmente incomoda aqueles que usam o nome de Deus para encobrir suas injustiças. Será que os religiosos cínicos da época do autor do Eclesiástico gostaram desta citação? “Oferecer um sacrifício com o que pertencia aos pobres é o mesmo que matar o filho em presença do pai” (Eclesiástico 34,23). O que terão pensado os ricos contemporâneos de Isaías quando ele proclamou: “O jejum que eu quero é este: acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e desfazer qualquer jugo; repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu, e não se fechar à sua própria gente”. (58, 6-7).

 

"Jesus não morreu de hepatite na cama. Foi preso, torturado, julgado por dois poderes políticos e assassinado cruelmente na cruz"

 

OP - Há como separar a homilia do cotidiano e da política?

Frei Betto - A política não é tudo, mas em tudo que fazemos há política. Quando me calo diante das injustiças ou protesto, faço política, por omissão ou participação. Ninguém acusa de “fazer política” o padre ou pastor que prega contra o aborto e se cala diante da polícia que sumariamente assassina um suposto bandido ou quando o governante reduz o preço das armas e promove o aumento frequente do gás de cozinha... É bom lembrar que todos nós, cristãos, somos discípulos de um prisioneiro político. Jesus não morreu de hepatite na cama. Foi preso, torturado, julgado por dois poderes políticos e assassinado cruelmente na cruz. Porque ousou criticar o Império Romano e as autoridades religiosas cumpliciadas com ele, e que usavam o nome de Deus para legitimar a opressão dos pobres.

OP - A omissão de um padre ou pastor diante de um cenário de mais de 530 mil mortos por covid, atraso na vacinação, fake news, é entendida como pecado?

Frei Betto - Objetivamente sim, porque se trata de um genocídio e esta mortandade tem responsáveis. Mas só Deus pode julgar a consciência e as atitudes das pessoas. O Evangelho é claro: a vida é o principal dom de Deus e todos que favorecem a morte - principalmente a morte de milhões - contrariam a vontade divina.

 

"Muitos que votaram nele (Bolsonaro) se arrependem. Mas todo tirano consegue fazer uma parcela da população abdicar de sua consciência crítica e integrar sua base de apoio"

 

OP - Os apoiadores de Bolsonaro não podem se opor a posições contrárias ao que o presidente dissemina entre seus seguidores?

Frei Betto - Podem, e hoje muitos que votaram nele se arrependem, inclusive publicamente. Mas todo tirano consegue fazer uma parcela da população abdicar de sua consciência crítica e integrar sua base de apoio. Pessoas que agem movidas pela emoção, não pela razão. Por isso são tão raivosas. Isso ocorreu nos governos autoritários e genocidas de Hitler, Mussolini e Stalin.

OP - Hoje, está difícil fazer homilias mais críticas?

Frei Betto - Hoje e sempre! Pergunte a dom Aloisio Lorscheider quando cardeal-arcebispo de Fortaleza; a dom Helder Câmara, quando arcebispo do Recife; a dom Paulo Evaristo Arns, quando publicou, junto com o reverendo Jaime Wright, o livro “Brasil, Nunca Mais” (Vozes), denunciando os crimes da ditadura militar; a dom Pedro Casaldáliga, quando denunciou os crimes dos latifundiários da Amazônia ao invadirem áreas indígenas e se apropriarem de terras de pequenos agricultores. Como disse Jesus (Lucas 19, 40) a respeito de seus autênticos discípulos: “Se eles se calarem, as pedras clamarão”. 

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