“É um projeto de vida”, relata a pedagoga e diretora social da ONG Velaumar, Izabel Lima. A fala faz referência à iniciativa da organização de acolher e ajudar a comunidade do Poço da Draga, em Fortaleza. Dentre as ações disponibilizadas para a comunidade estão: cursos de capacitação, atividades culturais, artesanato e apoio psicológico para mulheres e adolescentes.
O projeto teve início durante a pandemia de Covid-19, momento no qual Izabel fez uma postagem no Instagram com o intuito de arrecadar alimentos para auxiliar os trabalhadores informais da comunidade que ficaram impedidos de trabalhar em decorrência da pandemia.
O POVO - A partir de que momento surgiu a ideia de realizar essa atividade social?
Izabel Lima - Na comunidade, 60% dos trabalhadores vivem do mercado informal. Aí você imagina numa pandemia, onde as pessoas que vivem de vender água no sinal, nos eventos que acontecem no Centro Dragão do Mar, na Caixa Cultural, não podem trabalhar? Aí surge. Eu coloquei no Instagram pra quem pudesse ajudar naquele momento, que viessem, trouxessem alimentos, cestas básicas. E, pra falar a verdade, foi o melhor período do Poço da Draga. Não teve um dia que não tivesse um café da manhã, um lanche, um almoço, um jantar. Chegava 400, 500 quentinhas. Chegava tanto alimento, era tanta solidariedade do povo desse Estado, que eu não sei de onde saiu tanta gente. E nessa demanda dessas doações, veio o Portal, que é uma iniciativa da Igreja A Ponte junto à organizações sociais, igrejas, empresas e sociedade civil, que também fazia uns trabalhos de acolhimento ali na praia. Eles traziam o violão e começavam a cantar para amenizar a situação da vida das pessoas. Então eles vieram pra dentro da comunidade trazer doações de cestas básicas e viram os trabalhos que a gente desenvolvia. Era um trabalho de dedicação, de partilha e participação popular da comunidade. Não era aquela coisa de entregar a cesta e cozinhar, não. A comunidade é a raiz que mantém essa planta de solidariedade. 'Ah, mas só falam das coisas boas'. Não, nós temos alguns problemas que não cabe a nós, são demandas do Estado, do Município. Essa casa é uma casa que estava abandonada há mais de 15 anos, porque algumas pessoas usavam de má fé. Aí alugaram, reformaram e cederam pra nós, para que a gente pudesse desenvolver os nossos trabalhos sociais aqui. Porque tudo isso aqui acontecia dentro da minha casa. A minha mãe foi presidente da Associação dos Moradores durante dez anos e durante esse período eu estava ali ajudando. Eu não me casei, nem tive filhos. Então esse projeto aqui é a minha vida, é um projeto de vida que a gente trouxe para desenvolver.
OP - No que se refere ao projeto voltado para a saúde mental dos moradores? Como ele funciona?
Izabel - Esse projeto já vem acontecendo desde o período da pandemia, está inserido nas ações da ONG Velaumar, em parceria com a Igreja Portal. As profissionais voluntárias atendem mulheres e adolescentes duas vezes no mês, três meses de tratamento para cada paciente. As profissionais fazem essa parte da escuta, e a sala é adaptada para que ninguém escute o que a paciente está falando durante o atendimento. Elas atendem durante três meses, dão uma parada e depois me ligam 'ah, Izabel, a gente já tem um tempo livre'. E aí começamos de novo, porque nós não temos recursos. Tudo aqui acontece de maneira solidária. Tem gente que pergunta 'ah, mas como é que vocês conseguem?' Não sei, não me pergunte coisas que a Deus pertence. Está aqui e está funcionando. Nós finalizamos, na semana passada, duas semanas de curso de sobremesa. Aqui a gente trabalha muito essa parte do empreendedorismo. Nesse caso foi a Fundação Sintaf, com quem também temos parceria, que promoveu todo o curso. A nossa intenção é que a pessoa faça o curso, mas que ela possa se apropriar desse conhecimento e não só do certificado. O que a gente puder fazer para que as coisas aconteçam, a gente vai fazer.
OP - Como essa iniciativa atua na quebra do conceito de que terapia é pra gente “louca?”
Izabel - A saúde mental é fundamental, tanto na parte física, quanto na parte cognitiva mesmo. Do pensar, das relações, das emoções, no seu trabalho. Esse atendimento vem acontecendo de fevereiro até agora, o último foi em outubro. Eu tinha pessoas aqui na comunidade que, depois da pandemia, entraram no mundo fechado delas mesmo. Não vou falar que foi depressão porque eu não sou da área. Mas foram pessoas que entraram em uma negação total da vida, tanto que depois elas começaram a falar o lado positivo dos problemas, por isso aumentou a demanda. Porque as pessoas ainda são muito fechadas em falar com psicólogo. Na cabeça de muita gente, psicólogo é pra doido. E eu, Izabel, acho que deveria ter psicólogo nas escolas, nas creches, porque uma criança às vezes é criada em um ambiente familiar muito comprometido, muito fragilizado, e ela vai crescendo achando que aquilo é uma coisa natural e não é.
OP - E o que é a ONG Velaumarpra você hoje?
Izabel - É um trabalho em conjunto. A ONG Velaumar não é, por si só, uma instituição. Ela é mais que isso. E ela agrega todas as instituições que vêm para ajudar a vida humana. Eu trabalho há 25 anos no Centro Dragão do Mar. Entrei lá como educadora e hoje coordeno o Núcleo de Articulação Territorial. Hoje, a gente faz mapeamento de quem são esses moradores em situação de rua e como eles chegaram lá. Eu tive de avisar à instituição que eu ia ter um momento que eu teria de sair para resolver algumas coisas da ONG, porque isso é a minha vida. Meu trabalho é o meu meio de sustento, mas eu preciso também não ter que ficar só pensando em trabalho. A minha vida tem que ser solta. Se a gente amarrar a vida, a gente morre sem ter vivido ela. Está trabalhando em alguma coisa que não está rendendo? Não, saí daí. Eu sei que a gente precisa do dinheiro, mas eu não preciso ser escrava do dinheiro.
OP - Qual a importância de ampliar o atendimento psicológico ao público masculino?
Izabel - É uma das coisas que sempre digo, nós precisamos trabalhar os homens. Porque a gente desenvolve um trabalho desse, empodera as mulheres, elas chegam em casa com outro olhar, de valorização da pessoa humana dela, mas o homem está do mesmo jeito. Então, eu vejo que precisamos trabalhar ambos os lados. Tanto que a gente trouxe pra cá, junto com a Fundação Sintaf, uma delegada para falar sobre feminicídio, direito da Mulher, Delegacia da Mulher. Valorização da pessoa humana e o cuidado que a gente deve ter, porque a gente vê muitos programas voltados para as mulheres, dificilmente a gente vê programas voltados para os homens. Você tem que trazer essas pessoas para as responsabilidades. Se você é uma pessoa na sua sã consciência, você tem que colocar limites nas suas atitudes.
OP - A iniciativa de praticar ações comunitárias foi algo premeditado?
Izabel - A minha mãe faleceu em 2011. E e eu meus outros oito irmãos nos reunimos e decidimos que pra gente ter a nossa mãe no dia a dia, a gente vai fazer aquilo que ela mais gostava de fazer. Isso de fazer ação social nos contaminou, no bom sentido, pra gente continuar envolvido. Isso faz muito bem não é pra quem está recebendo o nosso trabalho, mas pra nós mesmos. Todos os dias a gente procura buscar um objetivo na vida, e é isso que a gente tem que propagar, para que outras pessoas possam vir.
OP - E como era realizada a dinâmica de distribuição de alimentos durante a pandemia?
Izabel - A comunidade tem 2.029 pessoas. Nós fazíamos a distribuição dependendo da demanda. Se eu conseguisse 100 cestas básicas, nós fazíamos uma lista. Pegávamos foto, documentos, a pessoa assinava e encaminhávamos para aquela instituição, ou para aquele doador, para prestar conta daquilo que a gente recebia. Muitas vezes, convidamos os colaboradores para ver a seriedade do nosso trabalho, foi por isso que chegou aonde chegou. Eram muitas pessoas ajudando, sendo solidárias. Até absorvente íntimo chegou para as nossas meninas e mulheres. Às vezes tem gente que o bairro específico não tem esse tipo de ação, mas a iniciativa começa por você.
OP - Você considera que esse local surgiu como um símbolo de esperança após a pandemia?
Izabel - A gente poderia ter morrido de fome na pandemia, não poderia? Todo mundo poderia ter se contaminado, se auto destruído? Poderia, mas está aqui, olha o que veio, o lado bom. O lado ruim todo mundo já sabe. Por que a gente tem que ficar reproduzindo o lado ruim? Vamos buscar dias melhores e os dias melhores chegaram, que é esse espaço. Os meus irmãos foram nascidos e criados dentro da favela, todos são formados. E é assim, não é porque eu nasci pobre que eu vou morrer miserável. Quando criança eu tive poliomielite, e naquela época, há 50 anos, a minha mãe poderia ter me aposentado para poder receber uma renda para a família. Mas não, ela sempre me dizia: 'Não, minha filha, quem põe limites na sua vida é você mesma. Vá lá porque o mundo é uma favela, e você não nasceu pra perder não'.