O fim das reuniões do Grupo dos 20 (G20), que reúne as maiores economias do mundo, nesta semana, no Rio de Janeiro, alcançou um consenso na declaração final após dois anos. O movimento foi considerado uma conquista da diplomacia brasileira, mas deixou de lado a abordagem direta de temas polêmicos, como os conflitos entre Rússia e Ucrânia e Israel e Palestina.
Dentre os principais tópicos levantados no documento – assinado por todos os países –, estão a taxação dos super-ricos, a aliança global contra a fome e a pobreza, os compromissos com o meio ambiente e a transição energética, a reforma da governança global, a inteligência artificial (IA), relações de gênero, saneamento, conflitos mundiais, entre outros.
O evento também culminou em acordos, como a captação de R$ 1,2 bilhão pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) junto à Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD); além do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ter se comprometido a fornecer US$ 25 bilhões para o combate à fome, por exemplo.
A secretária das Relações Internacionais do Ceará, Roseane Medeiros, afirmou que o fato de o Brasil ter conseguido que todos os países assinassem a declaração de forma unânime foi positivo. O desafio, agora, é pensar na implantação das políticas debatidas, pois isso ainda não está claro.
O cientista político e presidente do Instituto Monitor da Democracia, Márcio Coimbra, ressaltou, neste cenário, que o G20 é um fórum de discussões e não tem poder de impor decisões aos países. O objetivo do Brasil frente à presidência foi integrar o lado econômico com as questões sociais.
No caso da taxação dos super-ricos, por exemplo, a proposta enviada pelo Brasil ao G20, em junho deste ano, foi feita com base no estudo do economista francês Gabriel Zucman, professor de economia na Escola de Economia de Paris e Universidade da Califórnia, que defende uma tributação mínima de 2% sobre indivíduos que possuem mais de US$ 1 bilhão de riqueza e que ainda não são taxados nesta alíquota.
Na prática, de acordo com a pesquisa, a medida afetaria cerca de 3 mil pessoas em todo o mundo e poderia implicar em uma arrecadação entre US$ 200 e US$ 250 bilhões anualmente.
Mas este é um tema que pode não se concretizar na prática, de acordo com o economista e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), Renan Pieri. Isso porque, se for implementado por um País sem uma coordenação global, pode ocorrer uma fuga de capital, o que levaria a um efeito contrário ao desejado.
Questionado se as discussões sobre a reforma tributária sobre o patrimônio no Brasil poderiam ser influenciadas pelo G20, Renan vê que o País ainda está longe dessa implementação efetiva. “O governo anterior tentou mexer em questões como a tributação de dividendos e não conseguiu. O foco do governo está em cortar gastos.”
“Esse tipo de acordo global deve ser estruturado com o objetivo não apenas de promover uma justiça tributária, mas de garantir que esses recursos sejam direcionados a causas globais, como o financiamento climático”, na visão do professor de macroeconomia e finanças da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Claudio de Moraes.
No que tange às questões climáticas, o Brasil tem um grande potencial. A preocupação em torno do tema tem se tornado global, não havendo mais espaço para o negacionismo, segundo Claudio. “Não há como negar os efeitos que estamos vendo em todo o mundo, e isso vai gerar uma aceleração nas mudanças de políticas, mesmo que os líderes tentem resistir.”
Já o economista e doutor em relações internacionais, Igor Lucena, critica a falta de posicionamento claro nos conflitos em vigor pelo mundo, o que torna ainda mais difícil o combate à fome, por exemplo. “Ao falar em combater a fome, mas não tratar abertamente sobre esses conflitos, há uma desconexão entre o problema e sua causa.”
Outro aspecto importante relaciona-se ao uso de inteligência artificial. Até há uma pressão mundial para estabelecer regulações mais claras, especialmente no campo das big techs, mas a postura de grandes potências como os Estados Unidos pode influenciar o cenário global. A regulação esbarra em interesses políticos, segundo Igor.
O acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia discutido no G20, todavia, ficou sem desfecho. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a BusinessEurope chegaram a assinar uma carta conjunta com um pedido de fechamento de acordo, mas o cenário é incerto e repleto de protestos. O documento está sendo debatido há mais de 20 anos e tem expectativa de aumentar em quase cinco vezes a integração do Brasil ao mercado global.
(Com Agências Estado e Brasil)
Trump, Milei e Conflitos: Como ficam as incertezas globais pós-G20?
O impacto das discussões globais do G20 vai depender do que acontecer no cenário internacional, em meio a incertezas relacionadas ao republicano Donald Trump frente à presidência dos Estados Unidos em 2025, às decisões do presidente argentino Javier Milei, à instabilidade política na Alemanha e aos conflitos em vigor hoje no mundo.
Além disso, uma possível guerra comercial entre China e Estados Unidos pode alterar a dinâmica do comércio internacional e afetar o Brasil, já que os norte-americanos podem, inclusive, impor mais barreiras a produtos vindos de fora, segundo o economista e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), Renan Pieri.
Os próprios países, que assinaram unanimemente a declaração final do G20, veem "a angústia do imenso sofrimento humano e o impacto adverso de guerras e conflitos ao redor do mundo", citando a Guerra na Ucrânia e na Faixa de Gaza no texto, mas não mencionando os nomes de Israel e Rússia - potências envolvidas nos embates.
O cenário é de grandes dificuldades em termos bilaterais, e isso pode afetar a liderança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), segundo o professor de macroeconomia e finanças da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Claudio de Moraes.
O cientista político e presidente do Instituto Monitor da Democracia, Márcio Coimbra, ressaltou também que o grande problema do Brasil em relação aos acordos bilaterais é que o País tem, historicamente, pautado suas relações internacionais a partir da linha ideológica do governo em exercício, independentemente de ser de direita ou de esquerda.
O Brasil, por outro lado, tem uma oportunidade de se posicionar como uma liderança na América do Sul, principalmente quando se observa a relação com a Europa, conforme Claudio. Mas há atenção na questão ambiental. "O País precisa apresentar de forma clara seu potencial, não apenas em relação à Amazônia, mas também a outras regiões."
Um exemplo disso é a própria transição energética. Esta e outras questões ambientais podem ter que ser trabalhadas com pragmatismo. O economista e doutor em relações internacionais, Igor Lucena, levanta a dúvida: "Se os Estados Unidos continuarem focando em energia fóssil, como isso impactará o Brasil? Será que os países em desenvolvimento terão autonomia para priorizar energias limpas ou a pressão por combustíveis fósseis continuará sendo forte?"
No caso do Ceará, a secretária das Relações Internacionais, Roseane Medeiros, diz que é preciso entender a geopolítica e buscar maneiras de tirar o melhor proveito das transformações.
Fortaleza no G20: Perspectivas para o futuro econômico do Ceará
Tanto a cidade de Fortaleza quanto o estado do Ceará têm algumas políticas alinhadas às discutidas pelo G20 no Brasil em 2024, com destaque para as pautas de transição energética, devido ao potencial climático favorável e aos investimentos em energia limpa na região.
A Capital foi uma das cidades-sede do G20 neste ano no País, tendo reuniões técnicas e ministeriais nos meses de junho, julho e outubro via grupos de trabalhos de emprego, educação, arquitetura financeira internacional e parceria global para inclusão financeira.
A secretária das Relações Internacionais do Ceará, Roseane Medeiros, ressalta que o Estado tem um papel estratégico neste cenário global, pois possui abundantes fontes de energia renovável, além da infraestrutura do Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Além disso, o Ceará é reconhecido por sua governança, com políticas públicas que se mantêm com mudanças de governo, o que é elogiado por visitantes de outras regiões do Brasil e por representantes de bancos multilaterais e países estrangeiros, segundo Roseane.
Um conjunto crucial para atrair capital de fora e fortalecer, inclusive, o desenvolvimento da cadeia do hidrogênio verde (H2V) - uma das grandes apostas do Ceará -, tendo em vista que tais projetos demandam altos investimentos, que não conseguem ser supridos somente pelo Estado ou pelo setor privado.
O economista e doutor em relações internacionais, Igor Lucena, ressaltou, todavia, que é necessário avaliar se os projetos de H2V serão economicamente viáveis a longo prazo por causa de eventual barateamento dos combustíveis fósseis a partir do retorno de Donald Trump ao comando dos Estados Unidos em 2025.
"Minha aposta está mais forte na energia solar e eólica, que têm muito mais espaço para crescimento e uma base mais sólida no curto e médio prazo", avaliou o economista, o qual vê que "a questão das energias renováveis no Ceará, como solar e eólica, é muito promissora."
E a presença do Brasil nas discussões sobre a descarbonização tem sido positiva, ajudando a construir uma imagem de ator ativo e preocupado com as questões climáticas, na visão do economista e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), Renan Pieri.
"Embora as políticas concretas ainda sejam limitadas, o simples fato de o Brasil se posicionar nesse debate já ajuda a melhorar sua imagem no comércio internacional, especialmente após a dificuldade que o País enfrentou devido ao desmatamento", detalhou Renan.
Já Roseane destacou outros pontos locais de convergência com o G20 na política de combate à fome e de redução da pobreza, a exemplo do programa Ceará Sem Fome, bem como nas discussões de gênero, com metade do secretariado estadual composto por mulheres.
"O Brasil trouxe temas muito alinhados com as prioridades do nosso governador (Elmano de Freitas), graças a esse alinhamento entre o governo federal e o governo estadual", acrescentou Roseane, vendo o G20 também como uma oportunidade de mostrar o Ceará para o mundo.
"No passado, a visão predominante era a de um Ceará marcado pela seca e pelas dificuldades do Nordeste. Hoje, já nos enxergam como um destino turístico acolhedor e com muitos atrativos. Mas precisamos ir além: mostrar ao Brasil e ao mundo as oportunidades que temos."
Principais compromissos firmados pelo G20 sob a presidência do Brasil
Desigualdade e Fome:
Lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, com adesão de 82 países, visando erradicar a fome até 2030. O G20 reafirmou seu papel em combater a desigualdade dentro e entre países.
Sustentabilidade e Meio Ambiente:
Reafirmação de compromissos com o Acordo de Paris, metas de neutralidade de carbono até meados do século e fortalecimento do financiamento climático para nações em desenvolvimento. A transição energética foi destacada, com metas de triplicar a capacidade de energia renovável e duplicar a eficiência energética até 2030.
Reforma da Governança Global:
Compromisso com reformas nas instituições multilaterais, incluindo o Conselho de Segurança da ONU, para torná-las mais representativas, inclusivas e eficazes, refletindo as realidades do século XXI.
Financiamento Global:
Proposta de taxação progressiva de grandes fortunas como fonte de financiamento para ações climáticas e sociais, respeitando a soberania tributária de cada país.
Direitos Humanos e Conflitos:
Condenação a ataques contra civis e reafirmação da solução de dois Estados para o conflito entre Israel e Palestina. O grupo expressou preocupação com crises humanitárias e a escalada de violência no Oriente Médio.
Água e Saneamento:
Pela primeira vez, mobilização de recursos para saneamento básico e acesso universal à água potável foi incluída como prioridade.
Relações de Gênero:
Reconhecimento da contribuição das mulheres para a economia, chamado à igualdade nos sistemas de cuidado e combate à violência de gênero e misoginia.
Trabalho e Direitos:
Compromisso com a proteção dos trabalhadores, incluindo o combate ao trabalho infantil, trabalho forçado e escravidão moderna.
Inteligência Artificial:
Criação de uma força-tarefa para governança ética e segura da IA, reconhecendo seu potencial econômico e riscos éticos. Um documento com princípios para IA no mundo do trabalho foi encomendado.
Cooperação Internacional:
Reforço dos mecanismos de cooperação internacional, incluindo modalidades norte-sul, sul-sul e trilateral, para promover o desenvolvimento agrícola sustentável e apoiar ações globais contra mudanças climáticas.
Fonte: Planalto/Governo Federal