Quase 11 anos depois da promulgação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que estendeu aos trabalhadores e trabalhadoras domésticas, direitos antes restritos a outras categorias, apenas 10,8% desses profissionais estava trabalhando com carteira assinada no Ceará.
O levantamento é do Instituto do Desenvolvimento do Trabalho (IDT), com base nos dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua.
O número de informais no trabalho doméstico, no 4º trimestre de 2023, aparece como o segundo maior da série histórica iniciada em 2012 e o nível médio de rendimento desse público atingiu o mínimo do período, chegando a R$ 566 por mês.
Por outro lado, quem tem carteira assinada recebia em média, no fim do ano passado, 57,2% a mais, ou cerca de R$ 1.325. Vale lembrar que no período considerado na PNAD Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o salário mínimo vigente era de R$ 1.320.
Para o analista de mercado de trabalho do IDT, Erle Mesquita, a maioria desses profissionais trabalha como mensalista que trabalha numa única residência por três ou mais dias na semana.
“Mesmo com a simplificação de recolhimento de tributos, apenas um em cada dez tem a proteção trabalhista e social. E também, só na fase mais inicial dos efeitos da PEC das Domésticas que a gente tem algum pico, ou seja, alguma elevação maior de formalização. Depois disso, basicamente, voltou ao curso da série histórica, que mostra uma grande precarização das relações domésticas de trabalho”, observa.
Nesse sentido, vale lembrar que a PEC foi promulgada em 2 de abril de 2013, mas só teve a maioria dos seus dispositivos regulamentados na Lei Complementar 150, publicada mais de dois anos depois, no dia 1º de junho de 2015.
De fato, o maior percentual de trabalhadores e trabalhadoras domésticas com carteira assinada no Ceará foi registrada no 1º trimestre de 2016, 21,8%. Por outro lado, o menor percentual foi verificado no 4º trimestre de 2022: 10,6%. O índice mais recente do último trimestre do ano passado é, portanto, o segundo mais baixo da série histórica.
O período inicial da regulamentação da PEC das Domésticas também foi marcado pelo trimestre com a maior participação desses profissionais no conjunto da população ocupada no Ceará. Foi justamente no 3º trimestre de 2015 que esse percentual chegou ao seu máximo: 7,9%.
Por outro lado, o período pandêmico foi o de maior queda no percentual de trabalhadores e trabalhadoras domésticas no conjunto da população ocupada no Estado, quando esse índice baixou a 5,1%, no 1º trimestre de 2021, auge do impacto da variante gama do vírus da Covid no País.
“Esse realmente foi o momento mais crítico para essa ocupação. De maneira geral, a gente já percebia há algum tempo uma menor participação de trabalho doméstico na estrutura da população ocupada. Com a pandemia, quando houve medidas de isolamento social, muitas pessoas ficaram em casa. A divisão dos afazeres domésticos, naquele período, mostra que havia até uma maior participação masculina nas atividades domésticas, mas no momento em que há um arrefecimento na pandemia voltou também o trabalho doméstico”, lembra Erle Mesquita.
Apesar de mostrar certa recuperação no período pós-pandemia, contudo, o trabalho doméstico no Ceará não voltou, desde então, a registrar participação superior a 7% e estava em 6,8% no 4º trimestre do ano passado. O analista aponta também questões econômicas para explicar o menor dinamismo desse mercado.
“A gente vive num cenário ainda de inflação e de crise econômica. Isso faz também com que quem tinha uma mensalista passe a ter uma diarista e quem tinha uma diarista, às vezes, não consiga pagar por essa força de trabalho”, pontua.
Por fim, ele cita os novos hábitos familiares que ajudam a explicar essa menor participação do trabalho doméstico na economia cearense, que segue, contudo, relevante.
“Há novos padrões de família. São famílias menores, vivendo em espaços cada vez menores. São, enfim, vários fatores que acabam colaborando para a redução do percentual dessa força de trabalho no conjunto da população ocupada, mas é uma força ainda muito expressiva, aproximada da verificada pela construção civil, para gente ter um parâmetro”, conclui.
Direitos conquistados: efetivação e fiscalização são desafios
Se por um lado, os trabalhadores e trabalhadoras domésticas com carteira assinada passaram a contar com mais direitos desde a Constituição de 1988 até a regulamentação de dispositivos mais específicos da PEC das Domésticas, por outro, o alto grau de informalidade e a natureza do serviço prestado se configuram como desafios para efetivação das conquistas da categoria e para a fiscalização trabalhista.
A avaliação é do procurador do Ministério Público do Trabalho no Ceará (MPT-CE), Antonio de Oliveira Lima. Ele lista alguns dos principais direitos conquistados, mas afirma que a assinatura da carteira é o principal deles.
“Todos os direitos ficam prejudicados, se o primeiro deles não for assegurado, que é o registro do contrato de trabalho. Então, veja! Se os trabalhadores domésticos não têm carteira assinada, eles não vão ter como comprovar sequer que estão empregados”, disse.
Entre as garantias legais que o trabalhador e a trabalhadora doméstica passaram a contar nos últimos dez anos estão: o recebimento mensal de remuneração que corresponda, pelo menos, ao salário mínimo; o 13º salário; o repouso semanal remunerado; a folga nos feriados; as férias anuais remuneradas de 30 dias, com acréscimo de um terço; as licenças maternidade e paternidade; a aposentadoria; o auxílio-doença; o aviso prévio; no caso de demissão, o recebimento de férias e 13º proporcionais, entre outros.
Há contudo, conforme o procurador do MPT-CE, diferença entre a jurisprudência que rege a relação mensalista e a relação diarista do trabalho doméstico. “A jurisprudência passou a entender que esse empregado (doméstico) teria direito à assinatura da carteira se trabalhasse pelo menos três dias por semana para o mesmo empregador. Para quem trabalha todo dia para empregadores diferentes ou até duas vezes na semana para apenas um empregador, o entendimento jurídico é o de que não há necessidade de assinar carteira de trabalho”, explica.
Antonio Lima enfatiza que a fiscalização do cumprimento dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras domésticas no Brasil é comprometida por conta da falta de estrutura dos órgãos responsáveis e do princípio da inviolabilidade do domicílio, onde o serviço é prestado.
“Mesmo que os auditores fiscais tivessem acesso às residências, tal como têm acesso às empresas, ainda assim, seria difícil a fiscalização pela existência de milhões de domicílios e poucos auditores, concentrados nas capitais”, constata.
Redução de informalidade passa por incentivo a empregador, diz ONG
A redução da informalidade no trabalho doméstico passa também pelo incentivo ao empregador, conforme avaliação de Mário Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal (IDL).
A organização não-governamental (ONG), criada em 2004, esteve na linha de frente das articulações para a aprovação da PEC das Domésticas, no início da década passada.
Antes disso, porém, Avelino destaca campanhas focadas na diminuição dos custos para o empregador que assinasse a carteira de um trabalhador ou trabalhadora doméstica.
“Em 2005, nós começamos uma campanha chamada ‘Legalize sua doméstica e pague menos Imposto de Renda’. Nós entendíamos que o empregador,pagando menos, traria mais formalidade e rodamos o Brasil com essa campanha, que em 2006 foi vitoriosa porque o presidente Lula assinou uma medida provisória, nesse sentido. Daí, até o ano base de 2018, o empregador doméstico que fizesse a declaração pelo modelo completo pôde restituir o INSS recolhido”, exemplifica.
Posteriormente, a entidade também se mobilizou pela dedução do INSS, que incluiria também os empregadores optantes pelo modelo simplificado de declaração, que passou de 12% para 8%.
Em 2020, o governo do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) acabou com o benefício. Hoje, a ONG deve retomar uma mobilização para que a Câmara coloque em votação projeto aprovado pelo Senado em 2019.
Sobre a mobilização específica para aprovar a PEC das Domésticas, Avelino lembra que chegou a ser detido na Câmara dos Deputados. “Nós passamos três anos acompanhando fazendo lobby pela aprovação da PEC no Congresso porque havia uma ala conservadora demais que não aceitava que uma doméstica tivesse os mesmos direitos que os outros trabalhadores”, rememora.
“O único direito que falta para o empregado doméstico é o abono salarial, barrado porque o Poder Executivo não quer e aqui eu falo independentemente de ser governo de esquerda ou de direito”, critica o ativista pelo direito dos trabalhadores e trabalhadoras domésticas.
“Agora, eu também tenho que reconhecer que o empregador doméstico como um gerador de trabalho e renda e, como tal, ele tem que ser olhado de forma positiva e ter estímulos também”, defendeu o presidente do IDL.
Trabalho doméstico formal beneficia dois lados da relação
A trabalhadora doméstica Selma Moreira está prestes a completar 18 anos de carteira assinada. A data é simbólica: 2 de abril, a mesma em que foi promulgada a PEC das Domésticas.
Contudo, o direito à formalização que ela obteve em 2006 só foi estendido às demais colegas de profissão sete anos depois.
“Eu tenho 58 anos e desde o meu primeiro emprego, onde eu passei 11 anos, trabalho como doméstico . Aí vou fazer 18 anos com a Dona Jany (a atual empregadora) no dia 2 de abril. Eu tenho quatro filhos, treze netos e três bisnetas. Sou de Majorlândia, lá em Aracati, mas moro no Bom Jardim. Eu trabalhava num local que não estava dando muito certo. Aí veio uma amiga minha que avisou que a Dona Jany estava precisando. Eu fui lá e deu tudo certo”, conta.
Selma afirma que “o bom de ter carteira é ter mais direitos, como o de se aposentar. Faltam três anos e sete meses para eu me aposentar”. Ela observa, no grupo de amigas que compartilham a mesma profissão, que há tanto trabalhadoras com carteira assinada como sem carteira assinada. “Também tem muita gente trabalhando como diarista e quem é diarista não tem carteira assinada. A maioria hoje trabalha como diarista”, avalia.
Sua empregadora, a professora Jany Mary Almeida, de 56 anos, ressalta a importância de assinar a carteira das profissionais que prestam serviço doméstico em sua residência, no Meireles. “Todas as pessoas que trabalharam aqui em casa foram de carteira assinada. Já utilizo esses serviços há 24 anos, que é a idade do meu filho mais velho. Em primeiro lugar, acho que isso é ter respeito ao trabalhador”, pontua.
Além dos direitos obrigatórios por lei, a educadora oferece à sua empregada doméstica plano de saúde. “Ela tem todas as garantias: horário de trabalho, folga, férias, tudo o que é de direito de todo trabalhador e nós ainda temos incluímos o plano de saúde particular. A gente já fazia tudo isso mesmo antes de estar homologada a lei”, disse.