“O surf é o meu templo, minha casa, meu passatempo. Eu diria que o surf é muito mais que importante, ele é basicamente minha vida”. A declaração sobre o esporte é da instrutora Joana Meireles, 31.
A trajetória no surf começou em 2014, quando a profissional tentava pegar ondas na Praia do Futuro, em Fortaleza. Após dois anos, Joana resolveu aprimorar seu desempenho dentro do mar.
Para isso, ela começou a chamar diversas meninas que também surfavam e tinham vontade de praticar o esporte, o que deu início ao grupo Surf Ladies, hoje escola.
Os encontros para surfar se transformaram em chegadas a campeonatos e premiações, entretanto, o cenário encontrado era a falta da figura feminina e apenas o protagonismo masculino.
Com o objetivo de reverter a situação, a idealização e projeção do primeiro campeonato de surf no Ceará surgiu e aconteceu em 2019, detalha Joana.
Hoje, o Surf Ladies conta com a escola particular e a extensão do projeto social, que é voltado exclusivamente para o público feminino jovem e LGBTQIAPN+.
O POVO - Como surgiu o Surf Ladies?
Joana Meireles - O Surf Ladies surgiu de uma forma bem orgânica. Eu comecei a surfar em 2014, eu comprei uma prancha pequena e me joguei na praia mais difícil de surfar, que é a Praia do Futuro, aqui em Fortaleza.
Quando resolvi fazer algumas aulas, já eram dois anos eu tentava surfar, de tentar entrar no mar e não conseguir. Então eu fiz umas aulas, e nesse tempo eu fiz um grupo com algumas meninas que eu conhecia.
Eu coloquei todas num grupo de WhatsApp e deixei o administrador aberto para que elas conseguissem colocar as meninas que elas conheciam que surfavam também, que era para a gente abranger e ter uma companhia feminina dentro do mar.
Esse grupo foi crescendo de uma forma bem espontânea, tinham mais de 30 meninas. Com isso, nós marcamos um encontro e foi super legal. Desse encontro, surgiu a vontade de fazer um Instagram e uma integrante do grupo fez uma logomarca.
Dentro dessa comunidade, tinha algumas iniciantes, algumas mais avançadas e outras atletas. Também tinham meninas que queriam começar a ser atletas e queriam começar a entrar em campeonato.
Outras eu lembro que entraram em alguns campeonatos amadores na época e que elas se depararam com uma premiação apenas masculina, um cenário bem injusto.
Acabou que a partir dali elas foram perguntando aos organizadores porque eles não investiam mais na premiação e eles respondiam que não tinham mulher para surfar. E a questão era: será que não tem mulher para surfar ou as mulheres não querem competir porque dão tudo de si no final recebem uma premiação injusta? Nessa contraditória a gente fez um campeonato 100% feminino.
O POVO - E como foi organizar um primeiro campeonato feminino?
Joana Meireles - Em 2018, eu escrevi esse projeto de campeonato, só que era um grupo formado apenas por meninas, era como se a gente não tivesse credibilidade, então o pessoal não queria patrocinar e um campeonato é muito caro para ser feito, acabou que eu deixei esse projeto de lado.
Em 2019, aconteceu uma tragédia. Um dia a gente veio surfar na praia da Leste Oeste, tava chovendo, caiu um raio e matou uma integrante do grupo, a Luzimara Souza, que era inclusive a campeã cearense de 2018.
Naquela época, a gente dava um kit para ela representar o grupo nos campeonatos. A Luzimara estava ganhando todos os campeonatos aqui em Fortaleza, no Ceará e até fora, tanto que ela tava em primeiro lugar no circuito cearense, só que ela não era vista.
O atleta precisa ser super midiático, precisa ter patrocinador. A Luzimara era uma mulher negra, lésbica, que já tinha perdido patrocinadores por ser LGBT e a gente apoiou ela em tudo.
Quando ela morreu, foi um impacto muito grande para a gente, nós não perdemos apenas uma integrante do grupo, a gente perdeu a pessoa, que, para mim, era minha maior ídola, ela surfava ao meu lado e quando a gente pegava onda junta, eu nem dormia direito, porque aquela menina era uma super inspiração para mim.
Quando nós recebemos a notícia que ela não tinha sobrevivido, isso já no hospital, eu lembro que eu estava com o irmão dela e nós pensamos em fazer uma homenagem a ela, em juntar todas as forças e fazer com que ela não fosse esquecida, fazer com ela não tivesse ido em vão.
Então a gente juntou o projeto que eu tinha em 2018, as pessoas que tinham apoio a ela e a gente conseguiu fazer essa primeira etapa no nome dela, que foi a etapa do Luzimara em maio de 2019.
Nesse campeonato foram mais de 100 mulheres inscritas. O resultado das inscrições mostrava que a resposta tinha sido dada: não era que não tinha mulher para competir, é que o incentivo para a mulherada não existia, no momento que a gente fez um campeonato com premiação, todas as mulheres queriam. Todo esse campeonato mudou muito a questão de como ver a categoria feminina no surf aqui no Ceará.
O POVO - Vocês receberam algum apoio dos órgãos públicos à época do campeonato?
Joana Meireles - A gente recebeu da Secretaria da Juventude do de Fortaleza, eles que cederam o palco para premiação e as camisas, já que eles não podiam dar em dinheiro. O dinheiro que a gente conseguiu para pagar o corpo técnico e outras questões, nós conseguimos pelas inscrições, então foi muito apertado.
Todo o restante de premiação, nós recebíamos de parcerias. A gente ia nas lojas, batia na porta e mostrava o projeto. A galera abraçou mesmo e dava tantos kits para premiação, tanto é que conseguimos uma premiação bem legal.
O POVO - Qual a importância de realizar um campeonato feminino?
Joana Meireles - Quando a gente faz o campeonato, a gente mostra às pessoas, às empresas e a todo mundo que o surf feminino dá retorno. Quando a gente prova que existem mulheres que querem surfar, que o mar não é só para homem, que não é um esporte só masculino, a gente começa a quebrar esse paradigma, de que a mulher tanto pode surfar, como entrar em todas as áreas do surf em si, como fotógrafa de surf, instrutora de surf, por exemplo.
Dificilmente você encontra uma mulher ensinando a surfar, porque é difícil e é um meio machista. Quando uma mulher escuta seja de um marido, namorado ou qualquer homem escroto dizendo que o surf não é para ela e ela se depara com uma outra mulher ensinando a outras mulheres, é uma realidade bem diferente.
Essa representatividade não só apenas na parte do ensino, mas também na área das atletas do campeonato feminino, de ter uma árbitra mulher na bancada extremamente masculina, é uma forma de tentar ocupar esses espaços, que hoje é dominado por 99% dos homens.
Eu digo 99% porque, por exemplo, aqui no Ceará, eu sou a única mulher árbitra, então eu realmente tento inserir as mulheres dentro do surf e quando eu não posso botar outras mulheres, eu mesma me insiro.
Eu sou mulher e não é porque eu sou mulher que eu não vou julgar um homem numa bateria. Eu julgo tão bem quanto todos os homens que estão aqui ao meu lado. Eu surfo tão bem quanto todos esses homens que estão aqui ao meu lado.
A gente tenta quebrar essas frases escutadas diariamente, por exemplo, se tem uma mulher surfando, mandando manobras, chega para essa mulher e fala 'ah, tu surfa que nem homem'. Um exemplo desse tá muito encruado no meio do surf, então a gente tenta justamente quebrar isso.
O POVO - Hoje são quantos alunos no Surf Ladies?
Joana Meireles - No projeto social, a gente tem 20 alunos. Na escola particular há mais de 40 alunos.
O POVO - E como funciona o projeto social?
Joana Meireles - O projeto social é vinculado à Prefeitura de Fortaleza, do Juventude na Onda, que é um edital que a gente entrou pela Secretaria da Juventude de Fortaleza em 2022.
A gente recebe tanto material quanto uma verba mensal de monitor e instrutor para poder dar aula para até 15 alunos durante o mês, então nós temos esse projeto que é essa turma que é uma turma que a gente recebe durante a semana de segunda a sexta, das 8h às 12h da manhã.
O POVO - Quais os planos para o Surf Ladies?
Joana Meireles - É sempre conseguir fortalecer o surf, o surf feminino, o surf LGBTQIA+, em poder fazer viagens, em poder expandir a nossa escola, abranger mais alunos do projeto social, mais alunos do particular e ter uma equipe mais completa.
Os planos continuam nesse intuito de crescer, então a gente vem trabalhando muito para isso em fazer um espaço confortável, uma escola legal e tá sempre fortalecendo a questão da mulher no esporte, como na fotografia, nos campeonatos.