No estigma da sociedade e ainda com subnotificações, a saúde mental no mercado de trabalho ainda não é dimensionada conforme a realidade. O último levantamento feito data do fechamento de 2024, enquanto já se passou para o segundo semestre de 2025.
Em apenas oito meses de 2024, o Ceará já acumulava 13.118 benefícios previdenciários por transtornos mentais, quase o dobro do ano anterior. Em 2023, haviam sido 7.881. O salto de 66% em tão pouco tempo, e sem terminar o ano, liga o alerta para o peso do adoecimento psicológico dos trabalhadores. Os dados são do Ministério da Previdência Social do Governo Federal.
O quadro cearense acompanha a tendência nacional: os afastamentos por questões de saúde mental cresceram de forma acelerada, com impacto direto nas contas públicas e na produtividade das empresas. De 199.338 casos no País em 2022, passou para 278.754 em 2023 e 468.481 em 2024. Um salto de 135% em dois anos. A Previdência gasta mais com auxílios e aposentadorias, enquanto as empresas enfrentam queda de desempenho por absenteísmo e licenças prolongadas.
Outro indicador desse aumento está no consumo de medicamentos. Dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) apontam crescimento nas vendas de ansiolíticos, antidepressivos e estabilizadores de humor no período pós-pandemia de até 87% nacionalmente.
O mercado farmacêutico registra alta contínua na procura por substâncias voltadas ao tratamento de ansiedade, depressão e transtornos do humor, em sintonia com os números de afastamentos e atendimentos na rede pública e privada.
Esse cenário reforça a importância da Campanha Setembro Amarelo, criada há dez anos para ampliar a conscientização sobre saúde mental e prevenção do suicídio. A campanha se consolidou como um marco nacional, mas os dados recentes mostram que o desafio vai além da sensibilização: trata-se de uma questão estrutural de saúde pública e de economia.
Na prática, os números refletem trajetórias individuais como a do assistente de atendimento ao cliente Mário Freire Neto. Ele atua no setor de turismo e lazer, do grupo Beach Park, ambiente que exige contato direto com grandes volumes de visitantes.
Durante a pandemia, ao perder uma pessoa próxima, buscou apoio psicológico oferecido pela empresa. “O luto foi o que me motivou a voltar para a terapia. O diferencial foi ter acesso a um atendimento gratuito, de 50 minutos, sigiloso e acolhedor. No início senti resistência em procurar ajuda no trabalho, mas depois da primeira sessão já me senti em um lugar seguro. Isso fez toda a diferença”, conta.
Mário avalia que o acompanhamento impacta diretamente sua rotina e a relação com os clientes. “Lidar com tanta gente exige equilíbrio. Não dá para mascarar quando o ambiente de trabalho não é saudável. Eu, como pessoa LGBT, me senti muito acolhido, inclusive em grupos de apoio. Isso nem sempre acontece na família. Aqui fez diferença. Quando estamos bem, conseguimos oferecer o melhor para os visitantes”, relata.
Ele também participou da criação do Na Onda da Diversidade, iniciativa interna que promove rodas de conversa sobre saúde mental e inclusão. “No primeiro evento falei da minha história de vida. No começo foi difícil, mas percebi que compartilhar inspira outras pessoas a buscarem apoio. Hoje sou um dos que mais incentivam os colegas a procurar terapia”, diz.
Com oito anos de casa, Mário afirma ter presenciado mudanças no comportamento dos colegas desde 2020. “O parque fechado foi um período complicado, mas a empresa manteve os colaboradores e benefícios. Hoje o acesso ao atendimento é fácil, temos médicos e psicólogos à disposição e até um fundo de amparo para medicamentos. Tudo isso fortalece a confiança e aumenta a procura pelos serviços.”
Apesar dos avanços, ele reconhece que ainda há barreiras. “Muita gente acha que terapia é só para quem é ‘doido’. Eu mesmo relutei em procurar ajuda por preconceito. Hoje não me vejo sem terapia. Quando a gente sabe que não está sozinho, fica mais fácil lidar com perdas e dificuldades.”
O relato de Mário traduz a dimensão humana por trás dos dados que movimentam o sistema previdenciário, o mercado farmacêutico e as políticas públicas. A saúde mental, cada vez mais, deixou de ser tema restrito a campanhas e se tornou um dos maiores desafios para trabalhadores, empresas e governo.
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Custo bilionário: impacto nas empresas e na economia
O avanço das licenças por transtornos mentais no trabalho deixou de ser um “tema de RH” para se tornar uma variável econômica.
A Fundação Dom Cabral (FDC) chama atenção para a dimensão desse impacto. De acordo com o professor e palestrante Vinicius Kitahara, depressão, ansiedade e solidão lideram os males desta geração e atravessam o ambiente laboral, com efeitos diretos em desempenho e resultados.
Ele lembra estimativas internacionais de até 12 bilhões de dias de trabalho perdidos ao ano, com custo global que pode chegar a US$ 1 trilhão, além de um mercado de soluções em saúde mental avaliado em cerca de US$ 448 bilhões em 2024, um indicador, ao mesmo tempo, de demanda crescente e de oportunidade para prevenção estruturada dentro das empresas.
Kitahara também destaca que ambientes com alta segurança psicológica registram redução de até 43% no absenteísmo e 72% no presenteísmo (quando a pessoa vai, mas rende menos), sinal de que clima e gestão importam tanto quanto o acesso à assistência. “Investindo em bem-estar, pessoas felizes ficam menos doentes, trocam menos de emprego, estão mais engajadas e produzem mais”, afirma.
A lógica econômica é direta: equipes sobrecarregadas e inseguras erram mais, inovam menos e rodam mais rápido, elevando custos de recrutamento e treinamento. Estudos da Universidade de Oxford, citados por Kitahara apontam que investir em bem-estar e felicidade aumenta a lucratividade, alinhando o tema ao core do negócio, não apenas ao calendário de campanhas.
Há ainda um componente frequentemente subestimado: a saúde social no trabalho. A FDC ecoa achados recentes que colocam relacionamentos de qualidade como determinantes de bem-estar e longevidade, e observa que solidão crônica no trabalho tem impacto comparável a fumar 15 cigarros por dia em termos de saúde, com reflexo inevitável no desempenho.
Quando a negligência se prolonga, a conta não é apenas de produtividade: crescem passivos trabalhistas (assédio organizacional, metas abusivas, jornadas sem pausas) e riscos de imagem, especialmente em setores que disputam talentos.
Políticas de compliance laboral que incluam diretrizes de saúde mental, gestão de metas e canais seguros de denúncia, combinadas a programas de apoio psicológico com confidencialidade, reduzem exposição e estabilizam times, linha adotada nas referências de boas práticas que entrevistamos nesta série.
O salto de concessões por transtornos mentais no Ceará ajuda a dimensionar o tamanho do problema e justifica por que empresas locais estão migrando de ações pontuais de Setembro Amarelo para políticas permanentes de bem-estar, métricas de clima e formação de lideranças.
A tendência nacional de alta nos afastamentos, refletida no recorte cearense, reforça que não agir sai mais caro do que estruturar prevenção.
Para a psicóloga Mayara Rios, o aumento do consumo de antidepressivos, ansiolíticos e estabilizadores de humor no Brasil revela contradições. “Essas medicações podem melhorar a qualidade de vida quando bem indicadas e acompanhadas, mas há riscos de dependência, uso inadequado e de se tornarem a única alternativa diante da falta de outras formas de cuidado”, afirma.
Ela chama atenção para a normalização do remédio como solução rápida: “Muitas vezes, conflitos emocionais ou adoecimentos que poderiam ser tratados em psicoterapia acabam sendo encaminhados diretamente para o uso de remédios.
Como não há psicoterapia para todos, nem psiquiatra para todos, a medicação aparece como a saída mais rápida e acessível. Mas é também a mais arriscada, porque pode deixar pessoas desassistidas em outros aspectos do cuidado”.
Mayara defende que o uso de psicotrópicos seja parte de um tripé: prescrição criteriosa, acompanhamento contínuo e suporte psicossocial.
“Sem esse equilíbrio, os riscos aumentam: tolerância, abstinência, crises de ansiedade na interrupção da medicação, sonolência, prejuízos de memória, queda de engajamento e de criatividade. Isso afeta diretamente o desempenho no trabalho.”
Segundo ela, o mau uso pode levar tanto a pedidos de demissão por esgotamento ou vergonha da dependência quanto a desligamentos pelas empresas diante de baixo desempenho e faltas recorrentes.
Os impactos já foram medidos. Entre 2012 e 2017, um estudo sobre servidores federais registrou 5,6 milhões de dias de licença por transtornos mentais, equivalentes a R$ 1,89 bilhão em custos indiretos.
“É esse tipo de peso que muitas vezes não entra na conta, mas afeta tanto quanto os gastos diretos com benefícios e medicamentos”, observa.
O consumo de psicotrópicos reflete desigualdades:
Nas áreas urbanas, há mais médicos e farmácias; no meio rural, o acompanhamento fica restrito ao clínico geral e a estoques limitados. Grandes empresas oferecem planos de saúde e programas internos, enquanto pequenas dependem mais do SUS, aumentando o risco de automedicação.
A pandemia intensificou a procura por psicotrópicos e agravou sintomas. “O home office misturou vida pessoal e profissional, aumentou estresse, ansiedade e insônia. Vimos burnout, fadiga de tela, transtornos adaptativos e medo do adoecimento”, relata.
Mayara reconhece avanços da indústria em desenvolver fármacos com menos efeitos colaterais, mas alerta para distorções: “O problema é quando interesses comerciais se sobrepõem ao cuidado integral. Há risco de medicalizar sofrimentos normais, disfarçando marketing de prevenção.”
Ela defende colaboração ética entre psicologia, políticas públicas e indústria, com limites claros: combinar medicação, psicoterapia e suporte social; apoiar genéricos para o SUS e Farmácia Popular; investir em pesquisas sobre adesão; e criar campanhas conjuntas sem viés de venda.
“O foco deve ser sempre o paciente, não as metas do mercado”, conclui.
Dependência e desigualdade: os riscos do consumo de psicotrópicos
Para a psicóloga Mayara Rios, o aumento do consumo de antidepressivos, ansiolíticos e estabilizadores de humor no Brasil revela contradições. “Essas medicações podem melhorar a qualidade de vida quando bem indicadas e acompanhadas, mas há riscos de dependência, uso inadequado e de se tornarem a única alternativa diante da falta de outras formas de cuidado”, afirma.
Ela chama atenção para a normalização do remédio como solução rápida: “Muitas vezes, conflitos emocionais ou adoecimentos que poderiam ser tratados em psicoterapia acabam sendo encaminhados diretamente para o uso de remédios.
Como não há psicoterapia para todos, nem psiquiatra para todos, a medicação aparece como a saída mais rápida e acessível. Mas é também a mais arriscada, porque pode deixar pessoas desassistidas em outros aspectos do cuidado”.
Mayara defende que o uso de psicotrópicos seja parte de um tripé: prescrição criteriosa, acompanhamento contínuo e suporte psicossocial.
“Sem esse equilíbrio, os riscos aumentam: tolerância, abstinência, crises de ansiedade na interrupção da medicação, sonolência, prejuízos de memória, queda de engajamento e de criatividade. Isso afeta diretamente o desempenho no trabalho.”
Segundo ela, o mau uso pode levar tanto a pedidos de demissão por esgotamento ou vergonha da dependência quanto a desligamentos pelas empresas diante de baixo desempenho e faltas recorrentes.
Os impactos já foram medidos. Entre 2012 e 2017, um estudo sobre servidores federais registrou 5,6 milhões de dias de licença por transtornos mentais, equivalentes a R$ 1,89 bilhão em custos indiretos.
“É esse tipo de peso que muitas vezes não entra na conta, mas afeta tanto quanto os gastos diretos com benefícios e medicamentos”, observa.
Nas áreas urbanas, há mais médicos e farmácias; no meio rural, o acompanhamento fica restrito ao clínico geral e a estoques limitados. Grandes empresas oferecem planos de saúde e programas internos, enquanto pequenas dependem mais do SUS, aumentando o risco de automedicação.
A pandemia intensificou a procura por psicotrópicos e agravou sintomas. “O home office misturou vida pessoal e profissional, aumentou estresse, ansiedade e insônia. Vimos burnout, fadiga de tela, transtornos adaptativos e medo do adoecimento”, relata.
Mayara reconhece avanços da indústria em desenvolver fármacos com menos efeitos colaterais, mas alerta para distorções: “O problema é quando interesses comerciais se sobrepõem ao cuidado integral. Há risco de medicalizar sofrimentos normais, disfarçando marketing de prevenção.”
Ela defende colaboração ética entre psicologia, políticas públicas e indústria, com limites claros: combinar medicação, psicoterapia e suporte social; apoiar genéricos para o SUS e Farmácia Popular; investir em pesquisas sobre adesão; e criar campanhas conjuntas sem viés de venda.
“O foco deve ser sempre o paciente, não as metas do mercado”, conclui.
Quando saúde mental vira política permanente
Criado em maio de 2020, em plena pandemia, o projeto Cuidando de Você nasceu para oferecer acolhimento psicossocial aos colaboradores do Beach Park. Conforme a assistente social Lidiane Dantas, a proposta foi pensada para atender demandas emocionais e familiares agravadas pela crise sanitária.
“Nosso olhar é integral. Trabalhamos com equipe multiprofissional — psicólogos, médicos, nutricionista e serviço social — para acolher tanto em atendimentos individuais quanto em grupos. As principais demandas são ansiedade, luto, violência contra a mulher e questões familiares”, explica.
O acesso ao programa ocorre de duas formas: por demanda espontânea, quando o colaborador procura diretamente o RH, ou por encaminhamento de gestores capacitados para identificar sinais de sofrimento e acionar a equipe. “Esse cuidado inicial foi essencial para quebrar resistências. Hoje já temos fila de espera para o atendimento psicológico”, diz Lidiane.
A equipe realiza, em média, 60 atendimentos sociais, 80 sessões de psicoterapia e cerca de 400 participações em grupos por mês, integrando colaboradores dos diferentes empreendimentos do complexo.
Os resultados são monitorados com indicadores de absenteísmo, turnover, presenteísmo e pesquisas de clima organizacional, incluindo levantamentos de riscos psicossociais conforme a nova NR1.
Um dos diferenciais do projeto é a criação de grupos específicos, como para pessoas LGBTQIAPN+, gestantes e pais de crianças com deficiência ou com TEA.
Há ainda ações voltadas ao enfrentamento da violência de gênero, que combinam acolhimento psicológico, orientação sobre direitos — incluindo a Lei Maria da Penha — e encaminhamentos à Casa da Mulher Brasileira. “Também trabalhamos com os homens, para que sejam aliados no combate à violência contra a mulher”, acrescenta Lidiane.
De acordo com Lidiane, o projeto não se limita a datas simbólicas, mas atua durante todo o ano. “O Setembro Amarelo é importante, mas o cuidado precisa ser permanente. A saúde mental deixou de ser pauta pontual para se tornar política estruturada dentro da empresa”, afirma.
Colaboradores relatam ganhos em confiança e engajamento. Entre eles, o assistente de atendimento Mário Freire Neto, que participou de grupos de apoio e ajudou a fundar o projeto interno Na Onda da Diversidade. Para ele, “as rodas de conversa e o acolhimento mudaram a cultura do ambiente de trabalho, tornando-o mais saudável e inclusivo”.
O Beach Park ampliou a equipe desde o início — que contava apenas com uma psicóloga —, mas segue ajustando a oferta diante da alta procura. “Ainda enfrentamos preconceito. Muitos acham que terapia é ‘coisa de doido’. Nosso desafio é ampliar os atendimentos e reforçar a ideia de que saúde mental é para todos”, conclui Lidiane.