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Assim na terra como no céu
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Assim na terra como no céu

Nascida em Redenção, Irmã Clemência pode ser a segunda beatificada cearense. Os feitos de bondade são contados em Fortaleza, Pacoti e Baturité
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FORTALEZA, CE, Brasil. 20.10.2019: Livro Irmã Clemência. (Fotos: Deísa Garcêz/Especial para O Povo) (Foto:  Deísa Garcêz/Especial para O Povo))
Foto: Deísa Garcêz/Especial para O Povo) FORTALEZA, CE, Brasil. 20.10.2019: Livro Irmã Clemência. (Fotos: Deísa Garcêz/Especial para O Povo)

Irmã Clemência foi filha da Caridade de São Vicente de Paulo. Freirinha franzina, nascida em Redenção, no Ceará, em 1896. Viveu até 1966, perto de completar 70 anos. Em casa, era "Benecinha", Francisca Benícia de Oliveira, a primogênita de 13 irmãos. Escritos do confrade vicentino Murilo Alves Bessa e da irmã Elisabeth Silveira, da mesma ordem, falam das obras de bondade, atos de caridade e o exercício do dom de cura, praticados entre Fortaleza, Pacoti e Baturité, em 47 anos de vida religiosa. Oito meses de noviciado no Rio de Janeiro e logo Benecinha vestiu o traje de sua vocação: o hábito e um chapelão branco.

Há mais virtudes de Clemência sendo investigadas pela Igreja Católica no processo de beatificação que tramita no Vaticano. A história a seguir é contada em relatos biográficos como um feito de milagre. Os anos foram apagando nomes, datas e confirmações. Já tarde da noite em Baturité, a ocorrência policial era de um homem esfaqueado, agonizando, levado para o chão da delegacia local. O intestino exposto, era certo que não resistiria. Não conseguiam ambulância para levá-lo até a Capital nem um médico àquela hora. O delegado lembrou de chamar a freira.

A religiosa era afamada no Maciço por atender e cuidar de feridentos com pestes de pele, tuberculosos, queimados, gente com verminoses, verrugas de bouba, hemorragias e outras mazelas. Nunca estudou enfermagem nem medicina, aprendeu na lida. Foram buscá-la, Clemência se dispôs como sempre.

No ambulatório São José, onde remediava os miseráveis da cidade, juntou material curativo (gazes, esparadrapos, álcool, mercúrio). Ferveu água para esterilizar uma agulha de costurar sacos de grãos. Chegou aonde estava o homem, benzeu-se e fez uma oração. Decidiu suturá-lo. Só dispunha de linha comum. Policiais e mais algumas testemunhas viram Clemência recolocar as vísceras do esfaqueado de volta ao abdômen. E ponteou-lhe a barriga ali mesmo, no chão. Apesar das condições, o sujeito sobreviveu e sarou em poucos dias.

Irmã Clemência poderá ser a segunda cearense beatificada pela Congregação para as Causas dos Santos. É o tribunal do Vaticano que formaliza os novos santos e beatos da Igreja Católica, rastreando devoções espontâneas dos altares populares. A primeira da lista deverá ser a Menina Benigna, de Santana do Cariri. Clemência hoje está no posto de Serva de Deus, uma etapa que abre sua possível canonização.

Em vida, a vicentina cearense teve o trabalho comparado ao de Irmã Dulce, baiana canonizada por ajudar pobres e desamparados de Salvador. O processo religioso de Clemência foi aberto em 1995, pelo então arcebispo de Fortaleza, cardeal Aloísio Lorscheider. Estendeu-se até 2010, concluído pelo arcebispo atual, dom José Antônio Aparecido Tosi. Foi reconhecida serva por unanimidade, ao analisarem sua fama de santidade.

Era uma etapa ainda diocesana. Na fase seguinte, conduzida a partir de Roma, foram examinadas 14 virtudes heroicas: Fé, Esperança, Caridade, Amor a Deus, Amor aos irmãos, Prudência, Justiça para com Deus, Justiça para com os irmãos, Fortaleza, Temperança, Pobreza, Humildade, Obediência, Castidade. Em latim, Super virtutibus et fama sanctitatis. Foram aceitas, mas o protocolo ainda tem regras para elevá-la ao posto de venerável.

"O processo no Vaticano requer uma documentação específica. O que está pendente hoje é o Positio. Esta é a fase atual", explica o professor de Filosofia Moisés Rocha Farias, estudioso da vida de Clemência. O Positio é o estudo, elaborado por um teólogo, que reúne elementos para dizer se as virtudes são verdadeiras e pode sugerir a beatificação. Este parecer demanda custos com viagens, análises presenciais, coleta de documentos e depoimentos. O processo esteve parado e dependerá de petição para ser restabelecido.

"O trâmite é semelhante a um processo judicial", explica o professor, que é membro da Academia Brasileira de Hagiologia, dedicada ao estudo dos santos. Rocha ocupa a cadeira 5 da entidade - Clemência é a patronesse. Se o processo seguir, ela será beatificada após um primeiro milagre atestado. Um segundo milagre, nas mesmas condições de inexplicável, imediato, constante, e será oficialmente santa.

Desde os 36 anos, Clemência foi diagnosticada com infecções pulmonar e renal muito graves. Adquiriu com o calor dos fogões da cozinha do colégio Imaculada Conceição, em Fortaleza, onde trabalhou por duas décadas. Também costurava desde jovem. Havia ido repousar e se tratar no Pacoti. Deparou-se com a pobreza extrema na região serrana e passou a ser a irmã enfermeira de Baturité. Logo que morreu, bastante adoentada, começaram preces e orações em seu nome.

No tempo de noviça no Rio, alfabetizou-se em francês. No livro Prise d´Habit (Tomada de Hábito), descreveu sua devoção: "Jesus, je desire plutôt mourrir que de vous etre infidele, et accordez-moi la grace de vous aimer de plus en plus" (Jesus, prefiro morrer do que ser infiel a você e conceda-me a graça de amá-lo cada vez mais). No seu jazigo, transferido do cemitério para a igreja matriz de Nossa Senhora da Palma, em Baturité, está dito: "Prestou relevantes trabalhos caritativos junto aos pobres doentes. Como serva humilde, tomou-os como senhores e mestres".

O ROSÁRIO

O terço é um dos símbolos mais associados aos devotos de Irmã Clemência, o elo de manifestação com a santa

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