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As gentes do Ceará
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As gentes do Ceará

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, CE, BRASIL, 18-10-2019: Expedição Borboletas.  (Foto: Aurelio Alves/O POVO). (Foto: AURELIO ALVES)
Foto: AURELIO ALVES , CE, BRASIL, 18-10-2019: Expedição Borboletas. (Foto: Aurelio Alves/O POVO).

"Povos destes lugares há já, desde Aracati para cá, muita gente branca e alva, parece-me gente de boa índole, de caráter firme e de espírito bastante inteligente", escreveu Francisco Freire Alemão, presidente da Comissão das Borboletas, nome pelo qual ficaria conhecida a Imperial Comissão Científica e Comissão Exploradora das Províncias do Norte.

Nome comprido, que o cearense logo encurtou, acrescentando-lhe predicado gaiato: borboletas. Sinal de que gente graúda viera de longe para se ocupar de tarefa trivial. Longe disso. Embora não tenha produzido um relatório etnográfico, como planejado, a expedição legou observações de natureza humana que, passado tanto tempo, enriquecem o panorama de nossa história.

Quase tudo a cargo do próprio Freire Alemão, já que o responsável pela parte narrativa da viagem, o jovem poeta Gonçalves Dias, enredava-se em assuntos secundários ou alheios ao escopo dos trabalhos, tais como bebedeiras e fanfarras. Daí outro nome embaraçoso que a jornada receberia: "Comissão Defloradora".

Alemão registra com frequência estripulias de membros da comissão, como Manuel Ferreira Lagos, da seção Zoológica. Em seu diário, o presidente da expedição queixa-se de que o colega desobriga-se das tarefas para estar com as fêmeas que se lhe ponham na vista.

Freire Alemão ainda comenta que o presidente da seção Geológica, Guilherme de Capanema estivera embriagado e caído pelas ruas. Capanema, por sua vez, escreveu sobre o pintor José dos Reis Carvalho: "Amava a boa pinga e chegou a viajar com rameira à garupa de seu cavalo". (Renato Braga, História da Comissão Científica de Exploração).

Afora percalços e notas cômicas, Freire Alemão esboçou uma tipologia e um perfil da natureza humana do Ceará. Exemplo está num trecho breve, mas simbólico: "Um grupo de sete ou oito meninos, quase todos vizinhos; duas moças que moram em uma casa térrea fronteira, mais duas, que não conhecia, (...) se ajuntaram e sentaram-se em cadeiras formando um círculo fora da porta". Em 1859, decantava um traço cultural: as cadeiras nas calçadas, hábito por trás do qual se esconde ritualidade que atravessa tempos e geografias para se manter viva nos bairros de uma Fortaleza que mantém um pé fincado nos tabuleiros e serras interioranos.

RUSSAS, CE, BRASIL, 15-11-2019: Expedição Borboletas. Galego encontrado no Mercado de Russas.  (Foto: Aurelio Alves/O POVO).
RUSSAS, CE, BRASIL, 15-11-2019: Expedição Borboletas. Galego encontrado no Mercado de Russas. (Foto: Aurelio Alves/O POVO).

Sol inclemente e boa carne

"Chegamos a Russas às 11 horas da manhã. O lugar é muito quente, bem que ainda lavado de ventos. Há aqui poucas moscas e menos mosquitos, ainda não vi ratos, baratas poucas. A carne é muito boa, os ovos a dois por vintém. Não há hortaliças, não há fruta de qualidade alguma, apenas laranjas mui verdes."

Registrada em seu diário, a descrição de Francisco Freire Alemão mudou pouco em 160 anos.

A Comissão ali se deteve por alguns dias antes de seguir para Icó, tempo suficiente para que "o nosso Lagos" ficasse "enamorado duma das filhas do ferreiro (que realmente era bonitinha)".

O termômetro marcava 37°C quando Cícero Dias Sobreira passou se abanando. Aos 48 anos, o filho de Juazeiro do Norte encarnava um papel antigo, que havia atraído a atenção da expedição científica naquele distante 1859 ao chegar à localidade: o de galego. À atividade, o vendedor de porta em porta acrescentava o predicado de cordelista. "Olha o controle remoto que controla a TV, controla o videogame e também o DVD. Só existe um empecilho. Ele não controla os filhos, muito menos você", Cícero declamou, apontando os produtos que trazia expostos.

Furto de moças

Nem só de arquitetura ou intrigas se ocupou Freire Alemão na passagem por Icó. Famosa pela beleza de suas mulheres, a cidade era então alvo constante de uma modalidade comum na época: o furto de moças. A prática não passou despercebida pelo botânico, que identificou na boniteza das fêmeas a causa por trás dessa atividade que assombrava as famílias de boa gente.

"Ele (Freire Alemão) conta que, para casar em Icó, o homem primeiro roubava a moça e depois voltava. Quatro ou cinco dias depois, trazia a filha de volta, e o pai deixava a filha casar. Temos tudo isso documentado", conta Altino Afonso, memorialista de Icó.

Em par com o roubo passional, andava outra prática: vinganças entre famílias e rivalidades políticas. Alemão anotou: "Há aqui no Icó uma prostituta (casada) chamada Germana de tal Feitosa, é dos Inhamuns e parda, com que o Lagos tem tido conversas e que as tem aproveitado". O botânico continua: "Parece que ela já mandou atirar em alguém e também lhe deram já tiros. Não desdiz da raça. As antigas questões morticiosas entre os Feitosa, os Monte e Moraes fazem uma página negra da história do Ceará e se pode prestar para um romance".

Horizonte de carnaubais

"Pelas duas léguas e meia primeiras, era a vegetação quase a mesma que notei atrás: carnaúbas quase únicas e o mesmo pasto queimado e algumas lagoas e casas raríssimas, pouco gado exceto cabras, de que vimos bastantes." O verde dos carnaubais ainda se destaca, guardando semelhança com as anotações de Freire Alemão na passagem pelo Vale do Jaguaribe. A indústria da cera minguou e esqueletos de fábricas pontilham.

Icó e as riquezas do Ceará

Em Icó bateu-lhe saudade. "Hoje tenho passado um dia bastante triste e sempre lembrando da minha gente", escreveu Francisco Freire Alemão. Era 4 de novembro de 1859, nove meses após o desembarque no Ceará.

Irritava-se principalmente com o companheiro de viagem, Manuel Ferreira Lagos, chefe da seção Zoológica e arquivista da empreitada - tarefas que exercia só parcialmente e quando lhe dava na telha, diz Alemão. Em Icó, a paciência com Lagos esgotou-se. "Esta minha tristeza, que é habitual, tem tornado estes dias penosos, por ver que estamos perdendo tempo e eu, amarrado ao Lagos, hei de estar pelo que ele quiser". Assim descreveu o colega: "despótico, arrebatado, não atende a nada, não sofre a menor oposição a seus desejos nem aceita a mais pequena reflexão que o contrarie".

O profundo desagrado não impediu que Freire Alemão fizesse valer todo o seu rigor e registrasse as principais características da localidade, então uma das mais prósperas do Ceará, posto de escoamento de mercadorias.

A pujante economia se refletia na cultura. Em Icó foi construído o primeiro teatro do Ceará. Freire Alemão visitou-o logo antes da conclusão. "Às cinco horas da tarde veio aqui o dr. Théberge (Henrique Théberge, engenheiro pernambucano que fixou residência no Ceará), como tínhamos ajustado de manhã, para ir me mostrar o interior do teatro", narra no diário. "Fomos depois ao teatro e o achamos muito bom dentro".

Historiador e memorialista, Altino Afonso, 64, conta que a Comissão marcou a história de Icó, ao registrar a cidade no apogeu e, principalmente, pela pintura de José dos Reis Carvalho, onde aparecem as ruas que constituíam o centro nervoso daquele pedaço do Ceará.

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