Sob a alcunha de “país do futebol”, o sentimento que uma Copa do Mundo representa aos brasileiros vai muito além de uma simples confraternização para assistir aos jogos.
A paixão é refletida nas ruas, que, por meio da união de moradores e vizinhos, ficam tomadas pelas cores verde, amarelo, azul e branco, com diversas bandeirinhas, fitas, murais e pinturas reproduzidas em todos os espaços possíveis: casas, asfalto e postes.
O resultado é uma manifestação em forma de arte que simboliza, acima de tudo, a força da seleção brasileira em criar harmonia em prol de um único sentido. Em Fortaleza, a tradição segue viva em alguns bairros e O POVO os visitou para entender os bastidores do processo de decoração.
A rua 916, localizada na segunda etapa do Conjunto Ceará, tem uma guardiã fiel: dona Mauricéia, de 80 anos de idade. A senhora, que me recebeu em uma cadeira de balanço do lado de fora da sua casa no fim da tarde, na presença da filha, Maurineia, e de outras amigas do bairro, contou sua história. Com um olhar firme e orgulhoso, relembrou de quando chegou àquele local, em meados de 1980.
Questionei quem organizou a bonita decoração da rua, repleta de bandeiras do Brasil, com pinturas no chão e nas casas, além de dezenas de fitas amarelo e verde nos postes. A resposta veio rápida: “Fui eu”. Não só neste ano, mas desde a Copa do Mundo de 1986, realizada no México, dona Mauricéia é responsável por arcar financeiramente com os custos e coordenar a ação. O motivo? Amor.
Apaixonada por todo tipo de esporte, acompanha tudo que envolve a seleção brasileira nas mais diversas modalidades. A preferida é o futebol e disse estar confiante no hexa. “Contra a Sérvia vai ser 3 a 0 e o primeiro gol vai ser do Neymar”, falou, com otimismo sobre a estreia de hoje do Brasil.
Para a confecção deste ano, Mauricéia disse que precisou desembolsar R$ 2 mil, valor destinado para os materiais decorativos, que envolvem tintas, cordas, bandeiras, balões e fitas. A pintura foi feita pelo marido de uma amiga — considerada familiar de coração —, chamada Marilac.
Antes de ir embora, Mauricéia fez questão de mostrar uma placa que exibe com orgulho na entrada de sua casa. Trata-se de um prêmio que venceu na Copa do Mundo de 2014, “Minha Rua na Copa”, concurso que elegeu as melhores decorações na época. Em tom ansioso, confessou para mim que, na noite de ontem, alguns detalhes na pintura do chão ainda aconteceriam. Depois de tantos anos, o momento ainda é uma alegria única para ela.
Outro local em que tudo muda em época de Copa do Mundo é na Canuto de Aguiar. Embora já existisse o costume de personalizar a rua, foi no Mundial de 2014, realizado no Brasil, que um grupo de pessoas resolveu se mobilizar para tornar a decoração ainda maior.
Desde então, os moradores se unem, de quatro em quatro anos, para colorir o local em verde, amarelo, azul e branco. A dedicação reúne crianças, adolescentes, adultos e idosos, que, durante o turno da noite — muitas vezes varando a madrugada —, aproveitam o menor fluxo de carros para se dedicar ao enfeitamento.
Para arrecadar o dinheiro que será destinado à compra dos materiais, Alexandre Rodrigues, instrutor de surfe e um dos organizadores da decoração, disse que são realizados alguns bingos, em que as cartelas são vendidas por todo bairro. As tintas, que costumam ser um dos principais problemas, geralmente são obtidas por meio de parcerias com lojas fornecedoras.
“A gente não faz mais pensando se o Brasil vai ganhar ou não, fazemos mesmo pelo sentimento. Quando chega perto da época da Copa, a gente começa a se mobilizar, fala com um, fala com outro, e aos poucos vai fazendo. Independente do Brasil ganhar, a festa aqui na rua é a mesma”, explicou Alexandre.
Para a estreia do Brasil contra a Sérvia, uma televisão será colocada na rua para que os moradores assistam em conjunto, prática que também é uma tradição do local.
Alguns metros acima do Canuto de Aguiar está o Beco do Cajueiro, uma vila que dá na José Vilar. Charmosa e estreita, a rua também não abre mão de, em toda Copa do Mundo, mudar o clima do local.
“Toda Copa a gente faz. A gente gosta de assistir aos jogos com a rua enfeitada, dá mais animação. Temos um vizinho que bota um telão maior, se junta todo mundo. Aqui no caso, cada um faz uma contribuição”, contou o comerciante Alércio Morais, que ajuda na decoração.
Embora mantenha-se firme na tradição de enfeitar a rua, Alércio Morais reconheceu que a prática perdeu força em relação à gerações anteriores. Para o comerciante, o jejum de títulos do Brasil no Mundial está entre os principais fatores.
“Eu que assisto futebol, eu acho que é porque a gente tinha uma tradição de sempre ganhar. Já são 20 anos sem ganhar uma Copa, essa geração nova não viu e não sentiu o prazer de ganhar. A sensação que eles tiveram foi de perder. Acho que foi desmotivando. A gente que é mais velho sabe o que é comemorar uma vitória da copa do mundo”, disse.
Colaborou Domitila Andrade