Quando todos dormiam, era a hora delas brilharem. Fugiam de casa, cobriam-se os cabelos e aproveitavam roupas mais largas para esconder suas figuras. Na penumbra da noite era difícil diferenciar quem “pertencia” às ruas que viravam estádios. Entre o som emborrachado dos sapatos, as batidas de bola e os gritos contidos, elas conseguiam dar um drible na sociedade e na legislação. Eram tempos de proibição, em que ser mulher e jogar futebol não coexistem na mesma sentença.
A Era Vargas, de 1930 a 1945, é marcada por implementações, regulamentos e proibições. O futebol feminino caiu em meio às amarras das propagandas de Getúlio Vargas que declaravam o que era certo ou não para meninas e mulheres fazerem. Não seria gracioso para esse gênero praticar um esporte tão “masculino e violento”. A “graça” feminina era ameaçada.
A pesquisadora esportiva brasileira, Aira Bonfim, conta que o corpo feminino tinha essa função social de ser mãe, de ser suave, delicado e não musculoso. Em resumo: não praticante de esportes de contato físico ditos violentos.
Em abril de 1941, o decreto-lei (3199, art 54) que proibia a prática de esportes que feriam a natureza da mulher foi assinado. Além do futebol, lutas, halterofilismo e o beisebol também fizeram parte dessa proibição.
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“Os campos suburbanos são impedidos de receber eventos femininos e nos estádios também. Inicia-se um afastamento das mulheres desse ambiente de participação do futebol, seja ela qual for, na prática, e aí até a educação física sendo afetada diretamente”, explica Aira.
Mesmo com a lei, muitas mulheres nunca baixaram a bola. Criavam estratégias para continuar. Alguns se vestiam como homens, saiam à noite para as ruas ou se aproveitavam de eventos e espaços privados.
Por trás da justificativa de preservar a feminilidade da mulher, escondia-se um preconceito contra as que desafiavam normas da sociedade apenas por existirem. Muitas pessoas que jogavam futebol eram homossexuais, de periferias ou que se diferem do padrão imposto de alguma forma. Proibir a prática do futebol era eliminar espaços seguros para elas.
Linha do Tempo
Aira comenta que os esportes, no geral, foram nascidos, criados e pensados para homens. Eles são essas lideranças, representantes de clubes e dirigentes dentro da esfera da elite. A pesquisadora também destaca que o fato do futebol não ter sido criado no Brasil. É um esporte importado, e “como tudo que é importado, ele também tinha um status de quem deveria ou poderia praticá-lo”.
Durante a década de 30, inicia-se uma discussão sobre a profissionalização do futebol masculino, em que apenas pessoas brancas e da elite poderiam fazer parte. Com o impedimento de negros e trabalhadores, por meio da legislação da liga, nasce um movimento de classe.
As periferias do Rio de Janeiro se tornam um espaço acolhedor e de esperança para os rejeitados. No caso do futebol masculino, criava-se uma possibilidade de ascensão social. Longe do olho regulador do Estado, as meninas também foram para os campinhos.
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Aira contou que esses eventos começam a ganhar visibilidade na imprensa, surgindo a oportunidade dessas equipes fazerem uma exibição do futebol pela América Latina. “Esse marcador de classe, de raça, que representam essas mulheres que estão praticando futebol nessa época, vai afetar as decisões que vão ser tomadas a partir desses grandes eventos”, explicou.
Com isso, os murmúrios dão início: “Vão poder essas meninas representar o Brasil nessa ocasião? “Como assim essas meninas pobres de uma periferia vão representar o Brasil no exterior?”, diz a pesquisadora, interpretando esses mesmos pensamentos que ocorriam na época.
O decreto só foi revogado em 1979. Porém, foram 38 anos de jogos escondidos até que, em 1983, o futebol feminino fosse oficialmente regulamentado.
Alguma coisa
Por essa época, a seleção brasileira masculina já brilhava no campo. Esbanjava-se de três vitórias na Copa do Mundo. Enquanto isso, o feminino ainda se resumia à vontade individual das jogadoras para acontecer.
Em 1988, a Federação Internacional de Futebol de Associação (Fifa) realizou um campeonato chamado de “Women 's Invitational Tournament”, na China. O Brasil juntou-se a outras doze seleções e ficou com o bronze nos pênaltis.
O investimento começa a surgir, mas em contextos “desfavoráveis, sem uma reparação, sem uma discussão pública”. Os jogos são alimentados pelo amor à camisa.
Essa reportagem deveria estar recheada de atletas que viveram na pele a proibição, censura e vitória de poder praticar algo de maneira tão simples quanto os homens. Mas é quase impossível encontrá-las.
Se procurasse homens da época talvez não fosse tão difícil de achá-los. Na verdade, existem técnicos, torcedores e testemunhas oculares – todos homens. Mas não as verdadeiras protagonistas da história. Nem ao menos nomes é possível resgatar.
Apesar de Karine Nascimento, jornalista e pesquisadora, já ter tentado – e conseguido – reunir atletas em seu livro, “A Verdadeira regra do Impedimento”, ela também não conhece mulheres que jogaram durante a proibição.
Mas aquelas histórias estão grafadas em páginas que desenrolam como era ser mulher e jogadoras em um período que, há pouco tempo atrás, era crime mexer com a bola nos pés.
A Kombi de Pedro César já era conhecida em Fortaleza. Lá se via o automóvel subir e descer pelas ruas da Cidade. Dentro ele transportava um dos legados do Ferroviário, aquelas que seriam o primeiro time feminino vencedor no Ceará após a proibição.
“Eu comprei uma Kombi que era para poder sair, fazer os jogos e levar as meninas. Tanto era que a Kombi era lotada. A gente colocava o time quase todo, viu?”, são essas as memórias de Pedro César Gomes, ex -diretor de base do time, em 1982, que ajudou a guiar as atletas a vitória.
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Cesar conta que a iniciativa do time veio de um local de torcedor. Ele percebia como o futebol estava em evidência e aproveitou o acesso que tinha à diretoria. “Sabia da dificuldade, eu sabia que as jogadoras, na época, todas já trabalhavam, já tinham condições”, relembra.
O time não era “tão caro para o Ferroviário”, mas o diretor ainda tirava de seu bolso para bancar algumas passagens para elas. Também precisava apertar os horários para encontrar o melhor momento para os treinos.
“Poucos tínhamos destaque e nós estávamos trabalhando, e o horário de trabalho das meninas também era inconveniente”, explica. Normalmente os finais de semana se tornavam o único momento para elas, quando não havia outras competições.
Mas o esforço era mútuo. As meninas nunca se atrasavam, se deslocavam pela Cidade, seja na kombi de César ou em seus carros próprios, para treinar, realizar amistosos em outros bairros. “Foi muito bem sucedido porque as meninas se doaram, né?”, afirma.
Ele se lembra do momento da vitória do primeiro Campeonato Cearense de Futebol Feminino, feito pela Fundação de Assistência Desportiva do Estado do Ceará (FADEC). A empolgação da torcida e a felicidade que todo o time sentia.
Eram momentos tensos em campo. As jogadoras gritavam para marcar a que estava recebendo as jogadas. Ao invés de se afundarem na possível derrota, criaram fôlego e resistência.
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Passagem rápida e um chute forte, feito por Maria, marcou o primeiro gol logo no primeiro tempo. Euforia espalhada pela torcida e infectou cada uma das jogadoras. Ali no Castelão, costurava-se o início do futebol feminino profissional no Ceará.
O segundo gol veio do mesmo pé. Gleyce, aos 14 anos, corria ferozmente pelo campo. A bola que manobrava passou novamente para Maria que fez a bolada que transformou o time no primeiro e único vencedor do campeonato da época.
Gleycy, Maria Auxiliadora, Lúcia, Erisvanda, Tati, Eliene, Ama, Teresinha, Caminha, Timbu e Socorrinha. Estes são os nomes das jogadoras que guardam as memórias de vitória, recordações essas que estão guardadas somente na mente das jogadoras e no livro de Karine, já que a imprensa não acompanhou ou relatou o que acontecia naquele dia no Castelão.
Quando tinha seis anos, Ale costumava observar seu irmão jogar bola na rua. Queria sempre estar com ele para assistir os dribles cada “goool” que gritava, sendo espectadora do sonho de ser jogador profissional que ele construía.
No falecimento de seu irmão, ela comprou esse sonho que nunca tinha desejado antes, Desde então, Ale continuou o legado por ele, jogando bola e transformando o luto em vocação, até se tornar profissional. “Fui atrás de oportunidades e fiz o sonho dele se tornar um sonho meu também. Sei que ele está orgulhoso de mim”, completa a jogadora.
Atualmente, joga como zagueira pelo Ceará e entende que ser mulher no ambiente esportista é uma superação todos os dias. Precisa lidar com o machismo, preconceito, assédio e várias outras situações, como a falta de apoio, falta de investimento e até mesmo igualdade. “Não é tão fácil como muitos imaginam”, reforça Ale.
Ela completa que infelizmente esse não será o primeiro relato e nem será o último: “Enquanto tiver quem passe ‘pano' para esse tipo de situação, nunca mudará”. Infelizmente ela ainda não teve a sensação de um melhor acolhimento no futebol.
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Ao contrário de Bruna, sua visão sobre o momento do futebol feminino é positiva. Ela entende que as atletas lidam bem com as dificuldades: “A gente tá caminhando para um cenário melhor”.
Bruna iniciou sua paixão pelo futebol com sete anos de idade. Era pequena quando seu pai a levava para jogar com os “moleques” da escolinha Chute Inicial do Corinthians.
Desde então pegou gosto. Conseguiu subir para o profissional aos 17 anos e foi convocada para a Seleção Brasileira Sub-20 em 2019. Hoje é zagueira e capitã do Fortaleza.
Acredita que as atletas têm conquistado futebol e que isso tem aberto espaço.
Mas a igualdade só vai até a linha do meio de campo. Se em campo Bruna já enxerga menos desafios e conflitos, do outro lado Ana Paula Oliveira ainda apita num terreno cheio de armadilhas — “um campo de prova constante”.
Ela trabalha como árbitra e relata que é preciso mostrar competência o tempo todo — não só para acertar o lance, mas para conquistar respeito. “Durante muitos anos, escutei que “futebol não é lugar de mulher”, e por diversas vezes fui questionada por simplesmente estar ali, fazendo meu trabalho”, desabafa.
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Mas quando está no campo, com a bandeira na mão, ela enxerga o motivo de continuar ali: “É uma posição de força, representando tantas outras mulheres, me deu coragem pra seguir e abrir caminho pra quem veio depois. Mesmo com todos os olhares de desconfiança, eu sabia que estava onde queria estar”.
Iniciou nova, também por influência do pai. Era mesária nos jogos, com 14 anos, e fez cursos de formação de árbitros na Liga Hortolandense de Futebol, na cidade de Hortolândia, interior de São Paulo, onde morava.
Apitava os jogos na base e era bandeirante na primeira e na segunda divisão do Campeonato Amador. Não parou mais: “A arbitragem e, como consequência, futebol se tornaram minha segunda pele, sou perdidamente apaixonada pela minha profissão e pelo esporte”.
Sua paixão, porém, não a cega dos problemas. Ela sabe que o futebol feminino “precisa de mais vitrine”, estrutura e uma maior valorização de modo integral, e não somente quando é acompanhado da época de Copa do Mundo. Esta que só teve a transmissão oficial em TV aberta apenas em 2019.
“O incentivo existe, mas é pontual. Falta continuidade, profissionalismo. A valorização começa quando tratam o futebol feminino com a mesma seriedade que o masculino e isso ainda não acontece como deveria”, critica Ana Paula.
Aira relembra que a jogadora profissional é a ponta de uma pirâmide e que a discussão é muito maior: “ É permitir que qualquer criança, menina, adolescente, uma mulher mais velha, tenha acesso à prática desse lazer”.
A pesquisadora sabe que existem muitas maneiras de ser mulher e de se colocar no mundo e que essas “são discussões inerentes do nosso tempo e que carregam com si uma perspectiva de melhoramento do futebol praticado pelas mulheres e pelas brasileiras”.
A pesquisadora xx que o progresso, a evolução se interliga com o deslocamento dos movimentos sociais de mulheres dentro dessas narrativas, dos discursos, do próprio feminismo, empurrando um debate sobre essas desigualdades de acesso, de profissionalização, de salários.
“O futebol precisa ser mais acolhedor com as mulheres em todos os sentidos”, arremata Ana Paula.