"Então sonhei um sonho tão bom: sonhei assim: na vida nós somos artistas de uma peça de teatro absurdo escrita por um Deus absurdo. Nós somos todos os participantes desse teatro: na verdade nunca morreremos quando acontece a morte. Só morremos como artistas. Isso seria a eternidade?", assim perguntou Clarice Lispector, em Um Sopro de Vida (Pulsações). Haroldo Serra, nesse contexto, tornou-se eterno com o seu fazer teatral concretizado, no seu dia a dia, por muitos anos à frente de seu grupo. Aos 84 anos, o coração de Haroldo não resistiu e veio a silenciar por volta das 5 horas desse domingo, 16. "Foi diagnosticado tumor no cérebro e foi operado. Em complicações pós-operatório, teria tido infarto", esclareceu o ator, diretor, dramaturgo e amigo Ricardo Guilherme.
Listen to "#93 - Vida e obra do teatrólogo Haroldo Serra" on Spreaker.
Fundador do grupo Comédia Cearense, um dos mais tradicionais da Cidade, Haroldo Serra foi contemporâneo de outros nomes intrinsecamente ligados à arte, como Marcus Miranda ("Praxedinho"), Hugo Bianchi e B. de Paiva. Formado em direito e administração, trabalhou no Tribunal de Contas. Passou em primeiro lugar no concurso e foi chamado para assumir um cargo de direção, porém recusou a promoção em nome do teatro. Na década de 1950, acostumou-se a sentar no "banco dos radialistas" (pela participação na fundação da Rádio Iracema, em 1948), na Praça do Ferreira.
O espaço, considerado o "point" dos artistas, aposentados, políticos e jornalistas da época, também serviu de mote para o início de uma parceria com Praxedinho: em 1952, os dois criaram o Teatro Experimental de Arte (TEA), fazendo história até 1956, quando foi extinto. De um a um, os integrantes se mudaram de Fortaleza em busca de oportunidades em outros estados. Permaneceu Haroldo, o único. Com o desmanche, fundou nova companhia, a Comédia Cearense (1957). Escolheu o "Cearense" para compor o nome do grupo numa tentativa de valorizar as raízes. Já a "Comédia" vinha para simbolizar o teatro como um todo, não só peça de humor, em suas palavras.
Na hora de construir um espetáculo, Haroldo o montava sempre visando o público. Munia-se do tripé público, autor e ator, pensando sempre na receptividade da plateia, com a qual tinha uma cumplicidade. "Eu respeito, confio e acredito na inteligência do público", contou às Páginas Azuis do O POVO, em 2017. Em 62 anos da Comédia Cearense, suas montagens foram levadas a diversos estados, como São Paulo e Rio de Janeiro. Haroldo Serra, a Companhia e o teatro resistiram aos "anos de chumbo" no Brasil. Na mesma entrevista de 2017, ele revelou que naquele período a Comédia estava montando dois espetáculos de forte cunho social: Morro do Ouro e A Rosa do Lagamar.
Conseguiu não só apresentá-los em outros estados, como também burlar a censura ditatorial. "No Morro do Ouro tinha uma cena que a gente fazia como se fosse um pau-de-arara de tortura. O delegado estava interrogando um preso enquanto ele cantava aquela música 'Só deixo meu Ceará no último pau-de-arara". Eu dizia para o censor que era só música popular. A gente enganava sempre".
"Perdi um grande e querido amigo. Meu colega de turma na Faculdade de Direito. Meu Diretor em Morro do Ouro. Uma das pessoas que respeitei e de quem tenho muito orgulho da nossa grande amizade e que vai me fazer muita falta. Devo muito a Haroldo Serra. Ele confiou em mim no seu projeto de transformar a peça de Eduardo Campos em um musical, isso em 1971, quando me convidou pra fazer a trilha sonora do espetáculo", escreveu Jorge Mello, compositor e escritor, em seu perfil nas redes sociais.
Foi nos palcos que Haroldo encontrou o amor da sua vida, Hiramisa. A união resultou numa família artística, sempre relacionada, direta ou indiretamente, ao trabalho da companhia. A idade nunca afastou Haroldo completamente dos palcos. Aposentado, diminuía suas idas ao teatro, não saía muito de casa, mas preservava a paixão e o cuidado pela arte. O filho Hiroldo ficou na linha de frente dos projetos teatrais da família. Recentemente, Haroldo se aventurou em outro tipo de escrita e lançou um livro de contos, também em 2017. O Chicamilo e Outras Histórias & Poetar resgata cotidianos de sua cidade natal, Tamboril, interior do Ceará. Em outubro de 2018, em matéria sobre os 30 anos do caderno Vida&Arte, Haroldo recebeu a equipe do O POVO em casa para relembrar a decisão de persistir fazendo arte no Ceará. "Teatro é difícil de fazer em qualquer parte do mundo. Se fosse difícil só aqui, isso teria me estimulado a sair do Estado".
Para Rogério Mesquita, do Grupo Bagaceira de Teatro, a lembrança de "Seu" Haroldo Serra estará sempre viva. "Não tenho palavras pra dizer como eu adorava ser contemporâneo de uma pessoa que realizou tantos feitos na história cultural do meu País. Ia sempre feliz ver espetáculos da Comédia e achava tão bonito vê-lo nos bastidores regendo sua família. Uma parte nossa vai com ele". Produtor e diretor de cinema, Clébio Viriato resume a importância de Haroldo: "O teatro brasileiro lhe será eternamente grato. Palmas para o Senhor, hoje e sempre. Orgulho medonho ter cruzado seu caminho".
Haroldo Serra aprendeu a não ter medo da morte. "Você não pode brigar com o que você não pode transformar. Morte é irremediável: para que discutir?", questionou em entrevista. Eternizado na memória do Ceará, fez teatro numa época que nem mesmo o jornal fazia cobertura de teatro (palavras do mestre), teve sua história documentada em livro(Haroldo Serra - um homem chamado teatro, 2017) e construiu um espaço cultural na Cidade (Casa da Comédia Cearense, no Rodolfo Teófilo). Haroldo vive na memória de cada um que conhece a sua trajetória, e resiste na alma de cada jovem artista cearense que sonha em fazer a arte no Estado.
Colaborou Gabrielle Zaranza
"Aqui jaz um homem que foi muito feliz"
Louvado pelas vozes da cantora e atriz Ayla Maria e do tenor Franklin Dantas, o mestre do teatro cearense Haroldo Serra foi velado no Cemitério Parque da Paz na tarde de ontem, 16. Familiares, amigos, parceiros profissionais, alunos e admiradores compareceram ao sepultamento para homenagear o teatrólogo e prestar condolências. Entre os presentes estavam o secretário da cultura do Ceará Fabiano Piúba; o ex-secretário de cultura de Fortaleza Magela Lima; o professor, coreógrafo e bailarino Hugo Bianchi e o ator, dramaturgo e diretor teatral Ricardo Guilherme. Os filhos Hiroldo e Harolmisa Serra também compareceram à cerimônia iniciada às 15 horas.
Listen to "#93 - Vida e obra do teatrólogo Haroldo Serra" on Spreaker.
Em setembro de 2019, Haroldo Serra completaria 62 anos desde sua estreia nos palcos. Para Fabiano Piúba, o velório e o sepultamento representaram também uma celebração da extensa trajetória do teatrólogo. Em suas redes sociais, o secretário declarou que "a história do teatro e das artes cênicas do Ceará se fundem com a vida e com a obra do Haroldo Serra. Elas estão entrelaçadas, uma existe com a outra". O Governo do Estado, em nota oficial, destacou que "o Theatro José de Alencar celebra 109 anos, nesta segunda-feira,17, com programação especial em homenagem ao ator, que já chegou a ser diretor do equipamento".
Parceiro de Haroldo, o dramaturgo Ricardo Guilherme relembrou o primeiro trabalho compartilhado com o amigo: a peça O Morro do Ouro, de Eduardo Campos. "A primeira peça que eu estreei com Haroldo é também a última peça que fiz com ele: O Morro do Ouro. A estreia foi em 1972 e, nos 60 anos do grupo Comédia Cearense, fizemos de novo. São muitas lembranças". A atriz Carolina Geraldo, protagonista na remontagem do espetáculo em 2017, também compareceu ao sepultamento.
Para o diretor de cinema Glauber Filho, Haroldo Serra representa as artes cênicas no Ceará e no Brasil. O teatrólogo participou do novo filme do realizador, o longa-metragem ainda em fase de montagem Bate Coração. "É uma pequena participação pra um grande homem, um grande talento. E isso, pra mim, é iluminado, é mágico. Foi uma homenagem particular ao Haroldo e eu tenho uma imensa gratidão por ele ter participado. Pra mim, dirigir aquela cena foi um sentimento de um enorme respeito a um grande homem. Minha enorme gratidão para Haroldo Serra", pontuou em entrevista ao Vida&Arte.
Pesquisador de teatro, Magela Lima destaca Haroldo Serra como um ilustre representante do moderno teatro cearense. "O teatro, até os anos 1950, era muito paroquial, amador e esporádico, sem essa figura do encenador, do diretor. O Seu Haroldo participou desse movimento de mudança. Eu acho que o grande compromisso do Seu Haroldo foi com uma perspectiva de formação de plateia, de dotar o Ceará de uma programação continuada de teatro. Seu Haroldo é uma figura que deixa um legado muito importante para o Estado — essa coisa dele ser um obstinado, um guerreiro, de não medir esforços pelo teatro é um legado que eu não vejo comparação na história do teatro cearense. (Foi) Muita dedicação, muito empenho, muito vigor para tornar esse lugar possível", finaliza.
Emocionado, Hiroldo Serra retomou uma fala do pai ainda em vida: "Quando eu morrer, não ponham uma laje fria sobre o meu túmulo, eu prefiro sentir calor! Quando eu morrer, quero que cantem uma bela canção de amor". Após o sepultamento, o filho do mestre agradeceu e afirmou: "Aqui jaz um homem que foi muito feliz".