O projeto nasceu de uma ideia tímida. Quando Valéria Pinheiro, 40, falou aos amigos que planejava algo para amenizar os impactos da pandemia na vida de mulheres em situação de vulnerabilidade, em março de 2020, ela imaginava começar com pequenas ações. Um ano depois, a iniciativa, batizada de "Ser Ponte", já é responsável por ajudar no sustento de 250 casas chefiadas por mulheres em Fortaleza.
O funcionamento das ações obedece aquilo que o nome do projeto se propõe a ser: um meio para um propósito maior. Primeiro, a pesquisadora, em conjunto com mediadores, reúne doações de voluntários. Depois, com o auxilio de agentes territoriais, pessoas engajadas com a comunidade, escolhe famílias que se enquadram no perfil procurado pelo grupo e transfere mensalmente o valor de R$ 180 a elas.
Como critério para ser beneficiado, além de serem chefiados por mulheres, os grupos familiares precisam ter um idoso ou criança, pelo menos, e não receber ajuda governamental, de preferência. Dentre as famílias atendidas, estão algumas situadas em comunidades dos bairros: Vila Velha, Bom Jardim, Jangurussu, Barroso e Goiabeiras. Ao todo, iniciativa atua em 23 territórios da Capital cearense.
Atualmente, a grande maioria dos doadores, que dão vida e possibilitam a continuidade do projeto, são do sexo feminino. O dado diz muito. Isso porque, além de se transformar em uma enorme rede de solidariedade em meio à pandemia, a iniciativa virou um canal onde mulheres ajudam outras mulheres. Uma corrente muito maior e mais poderosa do que aquela que Valéria ousou desenhar um dia.
O POVO - Como surgiu a ideia de criar o projeto?
Valéria Pinheiro - O Ser Ponte foi criado em abril do ano passado. No fim de março, eu convoquei um grupo de amigos para apresentar a ideia que eu tinha tido, e os amigos toparam ajudar. E aí a gente foi atrás de doadores e, em abril, a gente já fez o primeiro repasse pra 75 famílias. Quando eu desenhei o projeto, minha ideia era repassar pra 20 famílias chefiadas por mulheres a renda básica durante quatro meses, de abril a julho do ano passado, e acabou que a coisa deu muito certo, muito rápido, e em abril a gente já conseguiu começar com 75 famílias. Aí fomos aumentando gradualmente à medida em que os doadores e doadoras aumentavam.
OP - A iniciativa tem como foco principal auxiliar na renda de mulheres em situação de vulnerabilidade. De que forma ocorreu a escolha por esse perfil em específico?
Valéria - Isso se colocou como prioridade desde o primeiro segundo em que eu pensei o projeto. Eu tenho aí uma experiência de 20 anos atuando junto a comunidades, territórios precarizados de Fortaleza. Então, tenho muita convicção de que são as mulheres que estão à frente dos processos de sobrevivência, dos cuidados de suas famílias nos territórios. Desde o primeiro segundo me veio à mente a necessidade de priorizar mulheres. Além delas serem mais duramente atingidas pelos processos de vulnerabilização, a gente também sabe que a mulher tem mais qualidade na gerência do orçamento doméstico e também a importância de a gente dar mais autonomia às mulheres. Elas recebendo o recurso nas mãos para poder gastar no que for mais prioritário para suas casas. A gente nunca pensou de maneira diferente. Todo mundo que topou ajudar no projeto desde o principio entrou com essa convicção de que precisamos priorizar mulheres em processos como esse, de ajuda.
OP - Além de precisar ser chefiada por mulheres, quais os critérios utilizados para escolher as famílias que serão atendidas?
Valéria - A gente coloca também como importante que as famílias tenham pelo menos quatro membros, que as famílias tenham pelo menos um idoso, uma criança, ou uma pessoa com deficiência e que façam parte desses territórios em que a gente atua. E, preferencialmente, as famílias que não estejam recebendo outras ajudas. Têm famílias que estão em redes de movimentos sociais, que têm ajuda das igrejas. A gente tinha a intenção de chegar naquela mulher que está lá na ponta, que nenhuma outra ou pouca ajuda chegou. Há mulheres que não têm nem documento, sabe. Então, a gente também passou por uma tentativa de ajudar essas mulheres a ter algum documento, a por exemplo pedir ajuda governamenta. Tem um casal de mulheres lésbicas, que são de uma comunidade que a gente atende, que elas têm dois filhos, e elas falaram que nenhuma outra ajuda tinha chegado até elas porque as ajudas, por exemplo, de igrejas que chegam lá no território não as consideram uma família.
OP - Fora a distribuição da renda, o Ser Ponte realiza outras ações para as beneficiadas?
Valéria - Recebemos muitos mantimentos. Só neste semestre foram 15 toneladas de mantimentos, pessoas que fazem campanha em seus condomínios de arrecadação, no seu trabalho, empresas que se tornam parceiras e ajudam, membros do poder judiciário, artistas, rifas. Foi criada uma teia de solidariedade muito bonita em Fortaleza. Nos surpreendeu. Mesmo em um cenário de tanta miséria, de tanta tragédia, de tanta tristeza, de tantos problemas graves, a gente conseguiu com o Ser Ponte ir além, muito além do que pensávamos. Somos um grupo pequeno. Todas e todos nós muitos cansados, trabalho é muito grande, fazemos isso nas brechas dos nossos tempos, mas a gente não consegue interromper essa corrente que a gente criou, não podemos interromper. A gente tem um número grande de doadores e doadoras que instituições consolidadas aqui de Fortaleza não conseguem esse fluxo de recurso. Então, a gente conseguiu achar um modelo, um caminho.
OP - Você conta que desenhou a ideia em decorrência da pandemia, que na época estava ainda no início. Pretende continuar com as ações mesmo depois da crise sanitária?
Valéria - É um grande debate para a nossa equipe. Tá todo mundo muito cansado, tá todo mundo esgotado de tanta pressão que a gente vivencia em meio à pandemia, o medo de morrer. Temos pessoas no grupo que estão, inclusive, sem emprego, que desempenhavam atividades de remuneração, mas de freelance, pessoas que não têm dinheiro sobrando. A gente costuma dar passos curtos. O cenário é muito instável para tomar decisões a longo prazo, geralmente, de três em três meses, de seis em seis meses, a gente faz uma reunião geral, coloca no balanço, como é que a gente está de recurso, como é que está o fluxo de doação e como é que estão as condições de cada um, de doar tempo para o projeto. A gente tem sempre se reunido e visto que dá sempre para continuar mais um pouco. Nós conseguimos através do Ser Ponte uma rede de solidariedade muito bonita. A gente decidiu que vai continuar, sim, até quando der. Nós inclusive pensamos em nos institucionalizar.
OP - Como é olhar para o projeto hoje? Qual o sentimento de ter impulsionado essa corrente de solidariedade?
Valéria - Eu sinto uma grande alegria. O Ser Ponte sempre me emociona muito. Eu atuo junto a redes de exigibilidade de direitos humanos há muitos anos, mas eu nunca tinha atuado sequer em um projeto mais nessa perspectiva de solidariedade. As pessoas vêm mais como caridade, como assistencial, mas não é isso. A gente enxerga nessas pessoas seres humanos que têm direito de viver dignamente. Claro que com R$ 180 a gente não está conseguindo proporcionar dignidade para essas pessoas, mas é o mínimo. Porque para além do dinheiro, cada mulher dessa recebe a cada mês uma injeção de confiança. É um aprendizado, e é muito emocionante ver as coisas acontecendo, pessoas se colocando para ajudar. Gente que eu não conheço, mas que me contatou, que contatou o projeto, que procurou as redes sociais do projeto, que repassou R$ 5 mil, até a pessoa que veio aqui na minha portaria de bicicleta deixar R$ 10 porque é o que ela tinha. É importante no cenário de tanta desesperança, de tanta miséria, de tanta violência, a gente encontrar um caminho para trilhar de forma coletiva e que faça diferença na vida das pessoas. A gente costuma dizer que em muitos momentos desta pandemia o Ser Ponte foi algo que nos salvou, que nos manteve em pé.
OP - Como tem sido a recepção das famílias ao serem auxiliadas? Vocês têm um contato direto com elas?
Valéria - A gente, infelizmente, tem muito pouco contato com as famílias pessoalmente. O nosso link são os agentes territoriais. Nós temos 19 agentes territoriais, pessoas que nesses 23 territórios têm uma atuação comunitária solidária. Cotidianamente, todos eles e elas também passando suas necessidades com a pandemia, mas que se colocam a serviço de famílias ainda mais vulneráveis. Há uma cobrança das famílias de conhecer a gente. Ainda vai acontecer, mas é porque a gente não quer colocar as famílias em risco. A gente não quer se colocar em risco, então a gente tenta ao máximo respeitar o distanciamento social durante a pandemia. O projeto se preocupou bastante com a proteção dos agentes territoriais e das famílias. Com parte dos recursos, inúmeras vezes compramos álcool em gel, compramos e recebemos de doações também, de álcool em gel e máscaras.
OP - Segundo estimativas do projeto, a maioria dos doadores são mulheres. Como você enxerga a potência disso, desta rede feminina de apoio?
Valéria - Não chega a surpreender, né? Nós que somos mulheres sabemos bem que isso acontece em diversos campos da vida, são as mulheres que priorizam o cuidado, que dão muita atenção a isso. São as mulheres que estão preocupadas cotidianamente, 24 horas, com o bem-estar de quem está ao seu redor. Mas é importante isso ser sinalizado, porque são também as mulheres que têm os menores salários, são as mulheres que são prioritariamente demitidas. São mulheres que têm mais instabilidade nos empregos, que se sentem mais expostas, mais ameaçadas, e, mesmo assim, mesmo com essas condicionantes que tornam as nossas fontes de recursos mais ameaçadas, mesmo assim a gente quer escolher doar, no sentido de saber que tem gente em piores condições do que nós. A porcentagem de doadores do Ser Ponte sempre esteve, desde o seu inicio, entre 72% e 73% de mulheres. É uma maioria bastante significativa.
OP - Qual mensagem você espera passar por meio do projeto?
Valéria - Eu tive muito pouco tempo para refletir sobre o que a gente faz. Vai ser preciso tirar um tempo para refletir sobre as ações da gente. As tarefas são sempre muito urgentes, nós todos temos mil e outras funções, pessoais, de militância, por fora do Ser Ponte, inclusive. Há muito pouco [tempo] para refletir. O que pra mim é mais evidente é aquele frase meio clichê, mas que é super verdade: "Um mais um é sempre mais do que dois", que a gente junto, a gente pode muito. A gente se fez ponte. O nome do projeto se fez muito feliz nesse sentido.
Para ajudar com doações, basta entrar em contato com o perfil que o projeto mantém no Instagram, o @serpontefortaleza. Também é possível entrar em contato com mediadores por meio do site, disponível no link: https://lnk.bio/Mn0D. Nesse endereço, o grupo disponibiliza opções de doações e ainda mostra relatórios que possibilitam fazer um acompanhamento do projeto.