O Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2021 foi concedido ontem, conjuntamente, aos americanos David Julius, de 65 anos, e Ardem Patapoutian, de 54. Os dois cientistas fizeram pesquisas que revelaram como o sistema nervoso central percebe na pele as sensações de quente e frio, o toque e os movimentos corporais.
Os trabalhos abriram um novo caminho para o desenvolvimento de remédios que funcionem contra a dor crônica e provoquem menos efeitos colaterais. Professor de Fisiologia da Universidade da Califórnia, em São Francisco, David Julius usou em seu trabalho um componente da pimenta malagueta. A substância ajudou a identificar a proteína das células nervosas que responde a temperaturas altas. Biólogo molecular na Scripps Research, em La Jolla, Califórnia, o libanês naturalizado americano Patapoutian liderou um grupo de pesquisadores que identificou o receptor que responde à pressão, ao toque e ao posicionamento de partes do corpo.
"Todos nós sabemos que existe uma falta de medicamentos e abordagens para tratar a dor crônica", afirmou Julius em entrevista após o anúncio do prêmio. "Um dos grandes impactos do nosso trabalho é identificar novas estratégias para o tratamento de dores crônicas e persistentes."
Inesperado
O comitê teve dificuldade para contatar os dois cientistas. Os nomes dos vencedores foram anunciados por volta das 2h30 da madrugada no horário da Califórnia. A dificuldade é indício de que o prêmio foi inesperado. Muitos acharam que o Nobel de Medicina de 2021 teria outro destino. Alguns apostavam que iria para pesquisas que levaram às vacinas de RNA mensageiro contra a covid-19. Essa expectativa não foi confirmada.
De origem armênia, Patapoutian cresceu no Líbano. Partiu para os EUA aos 18 anos, com o irmão, e para bancar o ensino superior chegou a trabalhar como entregador de pizza e foi até astrólogo para um jornal armênio. Nativo do Brooklyn, Julius se interessou originalmente pelos efeitos dos cogumelos alucinógenos e do LSD e trabalhou com substâncias exóticas.
Para Matheus Fonseca, pesquisador em Neurobiologia do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, a escolha de Julius e Patapoutian foi inesperada, mas "indubitavelmente merecida". Segundo ele, os trabalhos dos dois são importantes para desenvolver remédios contra a dor crônica.
As descobertas dos dois, feitas separadamente, ampliaram a compreensão sobre a relação entre os nossos sentidos e o meio ambiente. Os trabalhos determinaram os receptores celulares que percebem e transmitem ao sistema nervoso central a sensação de quente, frio e de pressão sobre a pele.
Para identificar o sensor nas terminações nervosas da pele que responde ao calor, Julius usou a capsaicina. Trata-se de um componente da pimenta malagueta. Ela induz a sensação de ardência/queimação. O trabalho revelou que o receptor TRPV1 é ativado por temperaturas percebidas como dolorosas (acima de 43ºC). Depois, tanto Julius quanto Patapoutian, trabalhando com o mentol, identificaram o receptor TRPM8, ligado à sensação de frio.
Patapoutian usou células sensíveis à pressão para descobrir uma nova classe de sensores, chamada PIEZO, que respondem aos estímulos mecânicos na pele e nos órgãos internos. "Os canais TRPVs, por exemplo, estão ligados a dores nas vísceras, dor inflamatória, entre outras", explicou Matheus Fonseca. "Os canais PIEZO estão envolvidos na respiração, pressão arterial e micção." Entender como atuam esses canais permite o desenvolvimento de drogas capazes de ativá-los.
Na análise do comitê do Nobel, os dois ajudaram a responder a uma profunda questão da condição humana: como sentimos o meio ambiente? "Os mecanismos por trás de nossos sentidos atiçaram a nossa curiosidade por milhares de anos", escreveu o comitê do Nobel ao justificar o prêmio. "Por exemplo, como a luz é detectada pelos olhos, como as ondas sonoras afetam nosso ouvido interno, como diferentes componentes químicos interagem com receptores no nosso nariz e boca para gerar odor e sabor."
‘Brilhante’
A neurocientista Marília Zaluar Guimarães, da UFRJ, e do Instituto D’Or, trabalhou diretamente com Julius na Califórnia por quatro anos e descreve-o como "brilhante". Para ela, o trabalho dele "foi revolucionário, porque não tínhamos ideia de como os estímulos dolorosos eram transformados em linguagem dos neurônios, e ele mostrou como isso ocorre".
A pesquisa, acrescentou, "revela parte importante do que nos faz humanos". "Identifica como transformamos estímulo de dor em sinal elétrico. O toque das pessoas, do qual sentimos tanta falta no isolamento desta pandemia, é fundamental para funcionarmos em todos os aspectos, afetivamente e fisiologicamente."