Catalina Pagés começou sua carreira como psicanalista em trabalhos terapêuticos de grupo. Antes disso, viveu cinco anos em Londres para aprender e aperfeiçoar seu inglês. Depois de receber o convite de uma tia para vir ao Brasil, ela garantiu seu primeiro emprego como cabeleireira no Rio de Janeiro.
Aos 37 anos de idade, Catalina ingressou na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) para cursar Filosofia. Algum tempo depois, ela começou a estudar mais profundamente alguns teóricos, como Sigmund Freud e Platão, além de fazer cursos de psicoterapia de grupo e familiar.
Após concluir sua formação em psicanálise, Catalina desenvolveu um método próprio de terapia, no qual abordava filosofia e literatura com seus pacientes. Mais tarde, reconhecida pelo Instituto Fernand Braudel, ela levou seu projeto às escolas públicas de São Paulo, com o objetivo de conversar e ajudar os jovens.
Desse cenário surgiram os Círculos de Leitura, iniciativa que há 20 anos vem transformando a vida de muitos em relação ao protagonismo juvenil. Aos 80 anos de idade, Catalina leva para os grupos de leitura uma bagagem repleta de histórias e conhecimentos que mesclam literatura e terapia.
No ano de 2020, o projeto promoveu um concurso entre as escolas públicas para incentivar a escrita dos jovens em meio à pandemia. Os vencedores tiveram seus textos publicados no livro “Lembranças da Leitura 2020”, que já possui mais de 70 mil cópias nos ambientes escolares.
O POVO - Quando chegou ao Brasil, o que despertou seu interesse em iniciar o curso de Filosofia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro?
Catalina Pagés - Desde jovem eu gostava muito de ler e com 23 anos eu me mudei da Espanha para a Inglaterra onde passei cinco anos estudando inglês. Então eu ainda não havia estudado formalmente, só comecei a faculdade quando estava no Brasil. Senti necessidade de estudar e aprofundar filosofia apenas no Rio de Janeiro. Isso me dava segurança, eu ia parar para estudar e conhecer a mim mesma.
O POVO - Como e quando surgiu seu interesse por psicanálise?
Catalina - A filosofia, pelos estudos de Platão, me levou a querer estudar psicanálise. Fiz uma formação no Instituto Sedes Sapientiae, e essa formação em psicanálise já foi feita aqui em São Paulo, como também os estudos de grupo, eu sou especialista em terapia de grupo. A ideia é que foi muito bonita e fascinante. No tempo em que eu fui cabeleireira, ainda no Rio de Janeiro, foi incrível como, através de cortar o cabelo dos meus clientes, eu ia conhecendo eles. No final, eu senti que não podia mais ser cabeleireira, porque as pessoas estavam vindo muito mais para conversar comigo, foi como se uma coisa me levasse a outra. Chegou um momento em que me dei conta que não queria mais ficar quietinha ouvindo os clientes falarem; me dei conta que muitos problemas das pessoas existem por elas estarem muito centradas nelas mesmas, “eu, eu, eu”. Então eu voltei a ler Platão, um livro chamado “O banquete de Platão à luz da psicanálise”, e comecei a convidar os clientes, não só para irem ao consultório e falar de problemas, mas para falarem de Platão e das diferentes manifestações de amor. Depois de bastante tempo fazendo esse trabalho no meu consultório e de apresentar essa modalidade terapêutica de ler os clássicos em conjunto, o Instituto Braudel me fez uma proposta para levar esse trabalho às escolas e ler com os jovens, foi o que originou os Círculos de Leitura.
O POVO - O que você mais espera das pessoas que participam dos Círculos de Leitura?
Catalina - Eu sinto que a palavra cura, tanto a literatura quanto a filosofia. Esse nosso trabalho dos Círculos de Leitura nos colégios já faz 20 anos, fora dos colégios acredito que 30. Então, o que eu espero, e tenho visto acontecer, é os jovens se reconhecerem no que leem e é muito bonito. Uma coisa é você ler sozinho, mas quando você lê em grupo, você pensa “O que será que esse texto tá querendo dizer?", e isso nos leva a pensar, a literatura nos leva a isso. Os jovens ficam pensando, lendo e imaginando juntos. O que tenho visto é como eles passam a se conhecer mais nesse processo, assim como conhecem os outros jovens. Eu sinto que tanto a literatura como a filosofia são nossos ancestrais, os livros antigos estabelecem um contato entre nós e aqueles que vieram antes, é um diálogo. Quando você se conhece melhor você se torna mais livre, e mais livre você se relaciona muito melhor com as pessoas. Eu sempre digo que nós, através de pequenos grupos, mudamos a nós mesmos e conseguimos mudar a sociedade e a desigualdade social. Eu estou muito feliz de estar nesses colégios e poder ler esses livros, que passam por uma curadoria muito seletiva. Nós ajudamos os colégios, os professores, a desenvolver esse protagonismo juvenil, fazendo com que os adolescentes encontrem mais sentido na vida.
O POVO - Como os Círculos de Leitura funcionaram durante a pandemia?
Catalina - Tudo estava muito perdido com a pandemia, mas a gente não pode deixar as crianças sozinhas. Então, continuamos com os círculos e inventamos um concurso, “Lembranças da Leitura”, que conseguiria fazer os jovens participarem, se concentrarem e escreverem. Saíram textos muito profundos e lindos que sentimos a necessidade de publicá-los em um livro que viria a ser o “Lembranças da Leitura 2020”. Tem uma carta neste livro, de um jovem chamado Gustavo, que ele descreve o que acontece no círculo de leitura, ele vai falando como se o círculo fosse algo mágico, como se até os objetos do local estivessem dando as mãos nos momentos de reunião em grupo.
O POVO - Os concursos de leitura continuarão acontecendo?
Catalina- Quando iniciou a pandemia nós queríamos ficar perto dos jovens, e deu tão certo que agora estamos no segundo concurso. São aquelas coisas que dão certo e é muito bom de se ver, incentivar os jovens a escreverem, se conhecerem e também publicar o que eles pensam. Eu fiz uma dedicatória muito bonita no livro de 2020; queria que esse livro fosse de todas as pessoas, para conhecerem quem são nossas crianças e qual é o futuro do Brasil.
O POVO - O que você define como o mais importante para chegar onde chegou? Algum momento específico?
Catalina - Acho que eu tive uma ideia muito criativa quando eu me dei conta do quanto as pessoas sofriam pela dificuldade de sair do narcisismo, saírem de si mesmas. Foi muito bom começar os grupos de conversa no consultório, eu tive, modéstia à parte, uma ideia muito boa. Mas se não fosse pelo Instituto Braudel, que abriu as portas dos colégios, que buscou patrocínio, que me apresentou pessoas muito competentes, a ideia não teria saído dos consultórios e não estaria onde está, pela sociedade. O momento, com certeza, foi ter sido identificada e reconhecida por uma instituição. Eu sei que fiz uma parceria muito bonita, e se não fosse pelos colégios o meu trabalho não teria ido tão pra frente.