A naturóloga e especialista em neurociências Vanessa Castello Branco Pereira atua na prática clínica interdisciplinar desde a graduação, em 2006. Atualmente, ela é mestranda do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), na área de Psicologia Experimental — Sensação, Percepção e Cognição. Ela escolheu como tema de pesquisa uma proposta de treino olfativo personalizado que ajuda pacientes que perderam o olfato como efeito colateral da Covid-19.
Ela explica que o tratamento experimental tem como base a modificação de um treino clássico proposto pelo cientista alemão Thomas Hummel, em 2009, e leva em consideração os aspectos psicológicos de cada sujeito. "Uma vez que observamos as trocas neurobiológicos compartilhadas entre os sistemas olfatório e afetivo, podemos reforçar as conexões neurais que ficaram prejudicadas a partir da valência afetiva positiva quando usamos um aroma que temos afinidade", explica Vanessa.
A mestranda de psicologia narra que a ideia para proposta do treinamento olfativo surgiu antes da pesquisa do mestrado. "Foi lá em 2019, quando tive contato com minha primeira paciente que apresentava um quadro de perda de olfato persistente (há cerca de dois anos) e sem diagnóstico, aos 92 anos de idade, com saúde impecável", conta.
Atualmente, a pesquisa está em período de triagem. Em entrevista, a mestranda detalha a origem do projeto, remonta a relação entre olfato e memória e traça a importância e o futuro da proposta.
O POVO - Como surgiu a ideia para a pesquisa?
Vanessa - A proposta de intervenção em casos de disfunção persistente do olfato (anosmia) surgiu antes da pesquisa do mestrado, lá em 2019, quando tive contato com minha primeira paciente que apresentava um quadro de anosmia persistente e sem diagnóstico, aos 92 anos de idade, com saúde impecável.
Neste momento da minha prática clínica eu já trabalha com o olfato e os aromas como mediadores de processos afetivos e memórias em contexto terapêutico e este caso me apresentou um contexto diferente pois sua maior queixa era que ela não conseguia mais comer geleias de frutas pois, agora sem o olfato, além de perder o aroma deste alimento, estava perdendo a memória da mãe, que surgia sempre que ela abria um pote de geleia e era transportada diretamente para a infância e os momentos onde a mãe fazia geleia em casa e todo o ambiente ficava impregnado daquele aroma. Ela dizia que parecia que a memória da mãe deixava de ser vívida sem o aroma da geleia.
Neste momento eu estava na França, passando uma temporada com meu então namorado, hoje marido, que é de lá e estava trabalhando e, neste contexto, fiz alguns workshops com uma "Nez" — perfumista e terapeuta olfativa que atua nos chamados Ateliers Olfactifs que acontecem em uma série de hospitais franceses e atendem pacientes de diferentes setores, desde oncologia a traumatologia, que tiveram o olfato alterado. Estes ateliers têm por objetivo oferecer atividades em grupo de estimulação do olfato a estes pacientes, com temas e aromas do cotidiano, mas que trazem memórias e emoções positivas, a fim de facilitar o retorno do olfato.
Este encontro com essa professora, Patricia Canac, foi muito inspirador e, quando retornei ao Brasil, coincidentemente tive o meu segundo caso de paciente com disfunção do olfato, desta vez com um quadro severo de parosmia, que começava a afetar seu casamento, pois assim que sua esposa saía do banho, ele dizia que ela cheirava a fezes. E assim comecei a estudar mais sobre os distúrbios do olfato e tentar trazer a ideia de uma terapia através do olfato, se valendo das emoções e memórias afetivas e olfativas.
No início de 2020 conheci a professora Mirella Gualtieri e começamos a trabalhar num possível projeto de pesquisa, que inicialmente era aberto a distúrbios do olfato de diferentes fatores etiológicos, ou seja, como sequelas de diferentes doenças, desde quadros neurodegenerativos a traumatismos, bem como doenças virais, como a Covid-19. Durante a pesquisa para o projeto fomos surpreendidas pela pandemia e, em meados do ano passado, decidimos mudar o projeto para restringir para quadros de disfunção do olfato apenas relacionados à Covid-19.
O POVO - Você pode nos contar como está sendo esse momento de triagem da pesquisa? Quais mensagens mais chamaram a sua atenção e qual foi a sua primeira impressão geral dos pacientes que entraram em contato?
Vanessa - Posso afirmar que só a triagem já foi um momento muito importante para a pesquisa, pois permitiu que as pessoas afetadas pela Covid-19 e que estão com a sequela neurológica de disfunção persistente do olfato pudessem se expressar, contar suas histórias, falar livremente de algo que as afeta em dimensões diferentes, mas que nem sempre encontram espaço de acolhimento.
Inicialmente a triagem estava sendo feita através de vídeo conferências individuais, onde eu tinha a oportunidade de ouvir e interagir com as pessoas durante suas narrativas, mas quando a chamada "viralizou" e começamos a receber uma mensagem nova no e-mail e WhatsApp por minuto, foi necessário modificar este formato para que fosse possível responder a todo mundo, então transformamos a entrevista num formulário online e os relatos agora estavam vindo escritos.
Confesso que me emocionei com frequência lendo os formulários e, anteriormente, nas entrevistas. Numa delas, um rapaz que dizia ter esperado estes quase dois anos de pandemia para abraçar o pai e quando assim pôde fazer, não conseguiu sentir o cheiro dele, justo do pai dele, ele disse, tão cheiroso e começou a chorar. Aliás, esta foi uma fala frequente, a falta de sentir cheiro da mãe, do pai, filhos, namorada... Como tem sido difícil e doloroso não sentir e reconhecer o cheiro das pessoas que amamos.
Aqui entram também muitos relatos de mães que deram à luz na pandemia, após ter Covid-19 e que nunca tiveram a chance de sentir o “cheirinho” dos seus bebês. Uma quantidade expressiva dos relatos menciona a dificuldade da alimentação: algumas pessoas deixam de comer, emagrecendo 10-20kg, outros até comem, mas sentindo náuseas e tendo refluxo a cada mordida, porque o aroma dos alimentos fica completamente distorcido.
E há quem relate ter perdido o prazer pela vida, dizendo que viver não faz mais sentido.
São muitas histórias, angústias e diferentes tipos de dificuldades vivenciadas, em diferentes esferas da vida. Recebemos contatos do Brasil todo, de todas as faixas etárias, principalmente entre 20 e 40 anos, tanto homens quanto mulheres.
O POVO - Em suas palavras, além da importância que é ajudar pessoas que tiveram Covid a recuperar seu olfato, qual é a relevância da sua pesquisa?
Vanessa - Acredito que nossa pesquisa também seja relevante por entender a necessidade do espaço de fala para as pessoas relatarem suas angústias e dificuldades, sem julgamentos, sobre uma doença até então pouco conhecida, além de possibilitar que a história de cada pessoa seja de grande importância para o contexto da intervenção proposta.
Buscar observar e acolher o fenômeno do adoecimento de forma integral, incluindo nossos afetos, é um ponto central da nossa pesquisa, pois muitas pessoas que nos procuraram relataram frustração na busca por profissionais e por tratamentos. Acredito que, mesmo quando há a necessidade de dizer “sinto muito, é provável que no seu caso não temos ainda possibilidades de tratamento”, podemos fazer isso de forma acolhedora, com respeito e empatia, propondo recursos para amenizar o impacto do que pode surgir como consequência de um estado de disfunção ou patologia persistente, em diferentes esferas, inclusive a emocional, social.
Foi por este motivo que, além da pesquisa, nós resolvemos criar um grupo de apoio online para todo mundo que não pudesse participar da pesquisa, para incentivar que façam o tratamento do treino olfativo clássico ou mesmo modificado, como propomos, de forma autônoma, além de criar um espaço de encontro com seus pares, pessoas passando por situações parecidas, que possam falar de suas dificuldades e de suas conquistas neste percurso, sempre assistidos por profissionais que buscam compreender as necessidades de um grupo de pessoas que até então nem sabia que existiam doenças do olfato,
O POVO - Como você se sentiu ao saber que a sua pesquisa “hitou”, ou seja, teve uma repercussão gigantesca nas redes sociais?
Vanessa - Primeiro veio o susto! Depois a inquietação de querer fazer muito bem o meu trabalho. Não conheço a pessoa que divulgou no Twitter, mas sinto que devo um "muito obrigada" gigantesco a ela, passei dias e madrugadas respondendo mensagens, 100, 200, 300. Parei de contar após o contato número 700... (risos)
Algo muito importante neste movimento todo foi a percepção de que, mesmo num momento de muita vulnerabilidade para a ciência no nosso País, quando ela se faz acessível, as pessoas confiam e buscam ela.
Esta aproximação entre o fazer acadêmico-científico da realidade vivenciada pelas pessoas fora destas instituições acende o debate de que a ciência é feita pra gente, para nos auxiliar e melhorar cada e qualquer aspecto das nossas vidas, mas, muitas vezes, ela parece distante e, por isso, pode se tornar alvo de questionamentos e ataques.
Quando as pessoas buscam em massa, como foi neste caso, uma universidade pública que está oferecendo uma possibilidade de tratamento gratuito através da produção científica de seus estudantes, é um bom indicador de que a gente pode e deve valorizar nossas instituições acadêmicas e as agências nacionais de fomento à pesquisa e produção científica.
Imagine se esta pesquisa não fosse realizada só por uma pesquisadora, como está sendo realizada agora, mas sim por uma equipe? Poderíamos atender ainda mais pessoas, com melhores recursos, instrumentos. Estamos trabalhando com verba limitada à minha bolsa acadêmica para grande parte dos materiais, além de doações, e conseguimos verba adicional para a importação dos testes de olfato, que são de um laboratório americano.
Incentivar a produção de pesquisa científica no país significa também isso, retornar estes incentivos para o benefício da população.
O POVO - Qual é o seu maior objetivo profissional no momento? E o pessoal?
Vanessa - Clarissa P. Estes, autora do lindo livro Mulheres que Correm com os Lobos nos fala: “Se uma história é uma semente, então nós somos seu colo”.
Sou muito feliz e realizada com meu trabalho na prática clínica, acompanhando pessoas que encontram este “colo” entre aromas e suas histórias, permitindo que a digital olfativa de cada universo particular possa ser o gatilho de seus processos terapêuticos.
Claro que, neste momento, a pesquisa acaba sendo prioridade e muitas vezes penso “e agora, o que eu faço?”.
Meu objetivo é dar conta de atender todo mundo; aumentamos o número de sujeitos da pesquisa, que inicialmente foi organizada para receber 60 participantes, para 100 e criamos a extensão para os demais com o grupo de apoio online. Minha orientadora, sempre muito gentil e generosa, topou imediatamente abrir este grupo, para que pudéssemos prestar assistência além da pesquisa, requisitou alunos da graduação que já estão em fase de estágio, então todos os esforços estão na realização deste projeto, pois reabilitar o olfato destas pessoas não é apenas sobre recuperar uma função sensorial e fisiológica, mas é também devolver suas histórias.
O olfato tem um peso muito expressivo nas nossas memórias afetivas, nas nossas emoções. Possibilitar que as pessoas tenham o seu olfato íntegro é possibilitar que elas guardem as suas memórias, que tenham esta digital olfativa do mundo preservada. Devolver o olfato para as pessoas, é possibilitar que toda essa digital olfativa do mundo não seja mais uma batalha perdida para a Covid-19.