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Não suportamos nem "mais um pouquinho" de violência
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Não suportamos nem "mais um pouquinho" de violência

A revolta pelo caso da menina de Santa Catarina nunca foi sobre a especificidade do estupro, mas sobre a enorme dificuldade de acessarmos nossos direitos enquanto menina e mulher
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Juíza Joana Ribeiro Zimmer deixou o caso da menina de 11 anos que foi estuprada e impedida de fazer um aborto autorizado em Santa Catarina (Foto: Reprodução/Instagram)
Foto: Reprodução/Instagram Juíza Joana Ribeiro Zimmer deixou o caso da menina de 11 anos que foi estuprada e impedida de fazer um aborto autorizado em Santa Catarina

A alguns dias de completar 11 anos, a menina grávida de um estupro em Santa Catarina precisou passar por uma série de violências. A gestação precoce de uma criança em um corpo de outra criança, por óbvio, é de risco. Anemia grave, pré-eclâmpsia, maior chance de hemorragias e até histerectomia (retirada do útero): tudo descrito em laudo médico. Mesmo assim, a juíza Joana Ribeiro Zimmer tentou barrar o aborto legal. Movida, como ficou nítido nas gravações veiculadas pelo The Intercept Brasil, no último dia 20 de junho, por convicção pessoal.

Sim, porque no Brasil o aborto é legal em situação de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto. No caso de uma criança menor de 14 anos, a hipótese é de violência presumida. Sem qualquer margem, uma menina não tem maturidade para "consentir"; pior ainda viver as transformações físicas e emocionais de uma gestação de risco. E mais, a menstruação precoce não significa que o corpo está pronto para gestar.

Além de privar uma vítima de estupro de um direito, Zimmer pergunta sobre os sintomas da gravidez e insiste: "Você suportaria ficar mais um pouquinho?", diz em um trecho da audiência. A psicóloga Amanda Kliemann precisa "lembrar" a juíza de que "a gestação é fruto de violência".

Em outro momento, a mãe da criança estuprada pede: "Eu só queria fazer um último pedido. Deixa a minha filha dentro de casa comigo". É desesperador assistir que a decisão naquela altura seria da magistrada, e não de mãe e filha, como deveria ser. Bem diferente se fosse uma família rica - por outros meios, o aborto seria garantido sem necessidade de autorização judicial.

Também não faltam casos na mídia de tentativas de grupos religiosos de impedir o direito do aborto legal a vítimas de estupro. Sempre me horrorizou esse movimento, e não só pela falta de empatia com a dor de uma pessoa violentada, de uma criança estuprada. É porque o Estado é laico (e nenhuma religião deveria estar acima disso).

Porque, não custa lembrar, as meninas e os meninos pobres não são "mais maduros" do que o seu filho, sobrinho e vizinho aí do prédio de luxo. Você consegue ver essas crianças como mães e pais? Como capazes de "consentir", de entender, resistir ou se defender de um estupro? Eu não.

Ao usar o privilégio do cargo para decidir a vida da família, a juíza só prolongou o sofrimento da criança. Ela ficou mantida mais de 40 dias em um abrigo. O caso precisou ter alcance nacional para a criança ser liberada e, posteriormente, interromper a gravidez. Uma "vitória" que ainda foi seguida por outro revés no mundo quanto ao direito reprodutivo das mulheres: nos Estados Unidos, decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos nessa sexta, 24, acabou com a garantia do direito ao aborto legal no país.

É muito triste imaginar quantos desmandos destas pessoas da "justiça" não são veiculados. Ver como um direito conquistado há quase 50 anos (no caso dos EUA), nos é tirado. Mas talvez por isso seja tão necessário explicar: a revolta pelo caso de SC nunca foi sobre a especificidade do aborto, mas sobre a enorme dificuldade de acessarmos nossos direitos enquanto menina e mulher. E o risco de retrocedermos cada vez mais.

 

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