Resguardar a história do extremo leste de Fortaleza é a missão por trás do Acervo Mucuripe, trabalho desenvolvido pelo bacharel em Turismo e Marketing e especialista em Gestão Pública, Diêgo Di Paula. Em uma pequena casa de fachada azul, no bairro Varjota, ele mantém vivas as memórias dos sete bairros que compõem o Grande Mucuripe.
Para além dos pontos turísticos e dos estereótipos geralmente associados ao imaginário do que se é ser fortalezense, Diêgo lança um olhar sensível à Cidade, ao se debruçar sobre a perspectiva histórica e sociocultural de quem vive às margens do fenômeno da especulação imobiliária, que verticaliza a orla da Capital.
Ao catalogar documentos, livros, recortes de jornais e fotos antigas, que constituem o Acervo Mucuripe, fundado em 2017, o turismólogo busca resgatar o sentimento de pertencimento da periferia que vive à beira-mar. Neste ano, em parceria com a Flutuante Produtora Cultural e a Secretaria de Cultura do Ceará, ele lança a websérie “Mucuripe: Território de Memórias”, já disponível no YouTube. Com três episódios, a produção aborda temas como o reisado, a cultura da pesca e o impacto da educação patrimonial na vida dos habitantes da região.
Ao O POVO, Diêgo fala sobre a importância do incentivo ao turismo comunitário em Fortaleza, sobre a resistência de antigas tradições ainda realizadas pelos moradores mais antigos e versa sobre um Mucuripe para além do que é visto nos cartões-postais.
O POVO - Como surgiu o Acervo Mucuripe?
Diêgo Di Paula — Ele basicamente parte das minhas experiências enquanto guia de turismo. Eu trabalhei na área, pude ter essa vivência, com turista, com a lógica do trabalho sempre voltada para o outro, e isso fez eu me questionar um pouco o porquê não havia esse trabalho voltado realmente para a cidade. Isso começou a me incomodar durante alguns anos de trabalho. E aí saio dessa área do turismo de massa e começo a trabalhar o turismo cultural, olhando para o território de bairros e de comunidades que é o grande Mucuripe.
Falar sobre esse trabalho é falar sobre a minha vida. Porque não tem como dissociar o trabalho do Acervo Mucuripe da história local — ele é o segundo a ser realizado por alguém. No caso, o primeiro projeto foi realizado pela Vera Lúcia Marcelino Miranda, conhecida como a Verinha do Mucuripe, que realizou isso durante a sua vida, no século XX. Ela faleceu em 2016. Já em 2017, eu fundo esse projeto no dia 22 de fevereiro.
Então o projeto do Acervo Mucuripe é uma continuidade do trabalho da Verinha. Mesmo que eu não tenha a conhecido em vida, esse trabalho — se você olhar para o atual e para o antigo — tem a mesma relação, que é sempre olhar para a cidade, para esse recorte do que é o Grande Mucuripe e olhar para as transformações que também estão acontecendo aqui. E, paralelamente, ir registrando isso. É como se fosse uma profissão realmente de um historiador, de um memorialista. A gente vai guardando essas memórias para o futuro de um povo, que merece entender um pouco mais sobre esse lado do extremo leste da cidade de Fortaleza.
O POVO - Como o turismo comunitário contribui para manter vivas as memórias do bairro?
Diêgo Di Paula — Eu comecei fazendo as trilhas de forma pedagógica, mas não as via como uma oportunidade para poder manter o projeto. Hoje ela se tornou um produto, são valores simbólicos, para que todo mundo possa acessar, tanto as instituições quanto, principalmente, a própria comunidade. A trilha proporciona, além de um turismo comunitário, um turismo sustentável, porque ela não deixa lixo, não deixa marcas. A gente consegue olhar a cidade de dentro para fora e ela se transforma nesse museu a céu aberto. É importante também compreender que esse trabalho de trilha urbana, que parte do Acervo, permite compreender a cidade de várias óticas, dependendo do grupo. Por exemplo, se estamos em um grupo de estudantes de arquitetura, a trilha segue a linha de raciocínio mais voltada para o urbanismo, já se permite olhar um pouco mais a questão da cidade através da geografia, no sentido mais amplo, ambiental ou cultural. E essas óticas são muito importantes porque elas vêm para somar e para legitimar o trabalho do Acervo. Então se as pessoas entram em contato com o Diêgo, que faz esse projeto de memória e que sai também para a rua para fazer esse percurso. É porque elas acreditam e validam isso. Isso é muito importante.
O POVO - A websérie é dividida em três episódios, cada um narra uma perspectiva diferente sobre o Grande Mucuripe. Quais critérios foram levados em consideração ao selecionar os temas a serem discutidos em cada um deles?
Diêgo Di Paula — Neste ano de 2023, o Acervo Mucuripe teve a oportunidade de criar uma websérie, junto de Juliana Tavares, da Flutuante Produtora Cultural. A gente já vinha conversando, até mesmo antes da pandemia, sobre elaborar um trabalho juntos. E aí, no ano passado, a gente escreveu esse projeto pra Secretaria de Cultura do Estado, de fazer uma websérie que fosse dividida em alguns episódios. Ela foi dividida em três capítulos. O primeiro capítulo é o do reisado, com a participação do Mestre Marcos, que é meu vizinho e quem organiza o reisado de Nossa Senhora da Saúde. A família dele faz esse trabalho de memória há quase 20 anos, sem ser reconhecida, sem ser registrada. Ele foi escolhido por ter esse trabalho importante para a comunidade, que se volta à cultura, à arte e à educação. O segundo a ser escolhido, foram os pescadores, porque falar do Mucuripe é falar da pesca. E o último episódio foi sobre educação patrimonial, que foi comigo e com a Mundinha do Mucuripe, que é a artista plástica viva mais antiga do território. Achei importante ter essa narrativa de alguém que além de fazer o trabalho de artes plásticas, também era militante e ativista ambiental.
O POVO - Um dos personagens da websérie fala sobre a extinção de antigas tradições do bairro ao longo dos anos — entre elas, a dança do coco, a caninha verde e as festas juninas. Quais fatores podem ter levado a isso?
Diêgo Di Paula — Isso aconteceu por conta de um processo chamado especulação imobiliária, porque todas as pessoas que faziam essas tradições nesses projetos trabalhavam e moravam na faixa de praia, que hoje é conhecida como Beira-Mar. Então quando esse processo de remoção branca ou gentrificação acontece, a gente tem o fim dessas tradições. Não se pode colocar a culpa só na especulação imobiliária, mas na falta de uma política cultural também. Nas décadas passadas, com a chegada do turismo, os olhares se voltam muito para a cidade de Fortaleza. Ela deixa de ter o aspecto da pobreza e passa a ter o aspecto do turismo de lazer, aquela coisa toda da hotelaria. E aí esquecem de valorizar mesmo a tradição, a cultura local. Isso fez com que o poder público não corresse atrás desse prejuízo e as pessoas vão envelhecendo, vão morrendo e, muitas vezes, o parente não continua com essas tradições. A tendência mesmo é acabar, quando não se faz um registro, um inventário e a própria proteção por meio de leis.
O POVO - Enquanto pesquisador, como você observa que a atividade pesqueira no Mucuripe impacta na economia local?
Diêgo Di Paula — A atividade pesqueira é ainda uma das mais importantes utilidades para esse território, que é conhecido como território de pesca. E eles (os pescadores), enquanto categoria, lidam com uma concorrência injusta — com o comércio, os serviços, o próprio porto e com a própria atividade pesqueira industrial. Porque, enquanto o pescador faz todo um trabalho sustentável de sair da sua casa e continuar essa tradição indo para dentro do mar, trazendo esse alimento que chega na nossa mesa, existe a pesca industrial, que é uma pesca predatória. Ela meio que faz uma limpeza no fundo do mar e isso inviabiliza com que os peixes consigam crescer e se multiplicar. Então tem essa situação e não há uma fiscalização para evitá-la. Infelizmente essa questão tem atrapalhado a atividade pesqueira de uma forma plena, digo, “a pesca que não prejudica”. E eu percebo que temos ainda muitos pescadores. Por mais que a gente fale que essa produção pesqueira tende a acabar, eu acredito que nunca vai se acabar, de fato. É uma coisa que existe há muitos anos, mas que falta todo um aparato para que o pescador consiga passar também esse trabalho adiante, para as próximas gerações.
O POVO - Qual influência as demonstrações culturais presentes ainda hoje no bairro exercem na vivência dos moradores?
Diêgo Di Paula — Vamos falar aqui das tradições que ainda estão ali, querendo se acabar mas ainda resistentes. No Reisado de Nossa Senhora da Saúde, realizado pelos meus vizinhos, quem participa do projeto tem uma outra visão de mundo, compreende melhor essas manifestações artísticas e o trabalho de arte. Então alguns, quando vão crescendo, enveredam para esse caminho de ser artista, de seguir a vida do teatro. Tentando olhar para outras tradições, há também o pastoril, que é feito no Serviluz, por meio do Núcleo de Base Comunitária, vinculado à igreja. (A partir desses projetos) É possível também educar melhor a criança, o adolescente e o público mais velho. Quem participa deles tem sempre uma compreensão melhor sobre o que é a vida. É uma coisa que merece ser sempre reforçada e sempre dita, porque, para que você tenha essa compreensão, é preciso se ter a valorização.
O POVO - Como a luta contra a especulação imobiliária reverbera o sentimento de pertencimento dos residentes do Mucuripe nos últimos anos?
Diêgo Di Paula — Enquanto morador, eu posso dizer que 50% da população compreende o que é a especulação imobiliária (na região) por meio do trabalho do Acervo Mucuripe, exposto nas redes sociais, e pelo que elas viveram. Todo mundo tem uma relação com a especulação imobiliária. Ou porque alguém teve algum parente que foi removido, com a desculpa de que estava em área de risco, ou então por ser alguém que realmente foi removido por conta de algum outro projeto urbano que trouxeram para essa área. Já a outra parcela, que não compreende, vê que é necessário desenvolver, vê que é necessário a cidade verticalizar e não entende que essa verticalização também atinge, direta ou indiretamente, a casa dela, o bairro. Então, são criadas duas óticas: a ótica de quem já vivenciou isso, de quem tem consciência do que é a especulação, e a ótica de quem acha bonito mesmo ver essa modernidade chegar, mesmo que seja — muitas das vezes — atropelando os moradores.
O POVO - Quem é o Mucuripe para além do que é visto nos cartões postais?
Diêgo Di Paula — O Grande Mucuripe abarca uma série de comunidades que estão ali tendo que lidar com esse turismo predatório, com essa especulação imobiliária, com toda essa dinâmica de cidade que hoje chegou até aqui, há quase 80 anos ou quase 100 anos, junto com o porto. O Mucuripe é o Serviluz, é a Santa Terezinha, é o Castelo Encantado. Tendo como outros objetos, o Farol Velho, o Riacho Maceió, onde surge a vida do Mucuripe. Eu posso dizer que hoje o Mucuripe é o Acervo também, porque é difícil você mudar a rota de pessoas que vêm para conhecer a cidade e atraí-las até esse projeto de memória, que é um projeto feito sem nenhum apoio governamental, institucional ou empresarial. Então, o Mucuripe é uma série de coisas, de lugares, que fica difícil mencionar aqui. Mas que, basicamente, é uma cidade que ainda precisa olhar para dentro, porque a gente foi acostumado a olhar sempre para fora, sempre para o outro e para o turismo do cartão-postal mesmo. A gente precisaria olhar para conquistar novamente o que foi perdido. Eu acho que esse pertencimento à cidade precisa voltar.