"Uma mulher negra de axé a quem devemos pedir a benção". Assim é dona Ivone Lara para o psicólogo Anderson Carvalho, professor do curso de Medicina da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisador de temas como racialidade, colonialidade, atenção psicossocial e atlântico negro em uma abordagem descolonial.
"Filha de Oxum, filha de um casal de músicos, uma das primeiras mulheres negras a ter acesso ao ensino superior, cursou a faculdade através de uma bolsa porque ficou entre os primeiros lugares no processo seletivo. Então a primeira coisa que tem que se colocar é que ela foi contemporânea, sobretudo porque pegou um período em que a forma de fazer saúde e psiquiatria era orientada pelo racismo e pela eugenia, o que tem muito a ver com o processo do pós-abolição.
Àquela altura, ela já percebia a importância do envolvimento da família e da arte na reabilitação psicossocial", analisa. Na avaliação de Carvalho, uma série de elementos combinados juntos explicam por que não há um reconhecimento à trajetória dela na saúde: "tanto racismo quanto a questão do gênero, passando pelo próprio poder médico, tendo em vista que, em linhas gerais, a figura do médico geralmente é tomada como a principal quando se pensa nos processos de saúde".
Para o professor, "é fundamental que essas histórias de profissionais negros como dona Ivone sejam inseridos na formação em saúde mental no sentido de enriquecer e de reconhecer que, intelectualmente falando, esses profissionais têm profundas contribuições".
"Quantos mais outros, quantas mais outras a gente sequer conhece? Fala-se muito de Nise da Silveira, mas não de Ivone Lara; fala-se muito de Paulo Amarante mas não de Juliano Moreira, Rachel Gouveia Passos, Virgínia Bicudo, Neusa Santos Souza, Sônia Barros. São poucas as pessoas que conhecem essas referências. É o próprio epistemicídio, como a gente chama essa forma deliberada de não reconhecer ou de invisibilizar essas produções", coloca.
No cenário atual da luta antimanicomial, a presença de um profissional de saúde negro ou de um gestor negro, pode, sim, na opinião do psicólogo, trazer reflexões sobre quem construiu o próprio Sistema Único de Saúde (SUS) e a própria política de saúde mental.
Carvalho acredita que "diminuir as estatísticas que demostram que população negra sofre um descaso no atendimento de saúde é algo que não se resolve apenas colocando profissionais negros nessas posições. Mas a questão é mobilizar toda uma clínica que tenha a racialidade como um dos seus componentes, assim como gênero e questões de classe".
Na análise da psicóloga, psicanalista e antropóloga Tamires Marinho, "esse deveria ser um assunto bem mais lembrado, pois assim como outras figuras negras, dona Ivone Lara tem sua contribuição apagada da história".