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"Fazer Ciência no Brasil é pra quem tem coragem"
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"Fazer Ciência no Brasil é pra quem tem coragem"

Filho caçula de uma mãe solo e analfabeta, criado com mais três irmãos em uma casa onde a comida era uma incerteza. Leidivan Cunha, 24, cresceu na periferia de Fortaleza ouvindo da mãe que o caminho pra mudar a própria vida era um só: a educação
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Leidivan no laboratório onde atua como pesquisador e pós-graduado em Biomedicina (Foto: Acervo pessoal )
Foto: Acervo pessoal Leidivan no laboratório onde atua como pesquisador e pós-graduado em Biomedicina

Leidivan Cunha andava dois quilômetros para estudar. Hoje, com 24 anos, atua no diagnóstico de câncer, faz mestrado com bolsa na Universidade Federal do Ceará (UFC), publicou artigo em revista internacional e integra um grupo no Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM), que presta serviços ao SUS, nos Hospitais Geral de Fortaleza, São Vicente de Paulo e Doutor César Cals. “A gente trabalha, pesquisa e estuda. E ainda tem quem ache que não fazemos nada”, dispara.

Em conversa ao O POVO, conta como foi trilhar esse caminho da periferia até o laboratório, diz ele, sem romantizar, sem milagre. Para o cientista, o caminho foi suor, resiliência, amor pela Ciência e uma dose de teimosia também.

O POVO - Como foi sua trajetória até conquistar a bolsa pra Biomedicina?

Leidivan Cunha - Minha história é parecida com a de muitos jovens da periferia. Cresci com minha mãe, que é analfabeta e criou quatro filhos sozinha. Nossa vida nunca foi fácil. Faltou muita coisa, inclusive comida. Mas uma coisa nunca faltou: a cobrança dela pra gente estudar. Ela sempre dizia que a educação era o único jeito de não passar pelo que ela passou. 

A gente levou isso muito a sério. Todos os quatro fomos bons alunos, ganhamos medalhas na escola pública… E eu, sendo o caçula, fui o último a terminar. Vi meus irmãos entrarem na universidade com bolsa, e aquilo me motivava demais.No ensino médio, me apaixonei pela ciência. Queria entender, descobrir coisas, fazer pesquisa.

Mesmo sabendo que no Brasil a gente nem conhece os próprios cientistas, eu queria fazer parte disso. Prestei Enem e consegui a bolsa de 100% para Biomedicina, que era o curso que fazia meus olhos brilharem.

OP - Quais foram os maiores desafios como aluno de escola pública?

Leidivan - Olha… foram muitos. Às vezes, a única refeição garantida do dia era a da escola — e tinha dia que nem lá tinha. A gente também fazia uns bicos, mesmo com nossa mãe batendo o pé que só podíamos trabalhar depois de terminar os estudos. E, claro, aquela realidade de sempre: falta de estrutura, pouco investimento… Mas eu também tive professores incríveis, que fizeram total diferença na minha vida. Tenho muito orgulho da escola pública que me formou.

OP - O que te manteve firme nos estudos, mesmo com tanta dificuldade?

Leidivan - Minha família, sem dúvida. Minha mãe, meus irmãos… E essa vontade que eu sempre tive de querer uma realidade diferente, sabe? Eu sou só mais um cara comum da favela. Minhas dificuldades são as mesmas de milhares de jovens da periferia. Mas eu queria ser o meu melhor. Nunca busquei fama, nem palco, nem status. Só queria deixar algo de bom pro mundo e me orgulhar do que construí.

OP - Quando a pesquisa virou seu caminho?

Leidivan - O interesse pela ciência sempre esteve ali, meio escondido. Quando entrei na faculdade, aí sim virou certeza. Me apaixonei pela pesquisa. A clínica era legal, mas a pesquisa… cara, aquilo fazia meu olho brilhar. Entrei para grupos de pesquisa, fiz iniciação científica, participei de monitoria. No começo foi muito difícil — escrever, entender os métodos, tudo era um desafio. Mas publiquei meu primeiro artigo em uma revista internacional e, dali pra frente, não parei mais.

Depois, veio o mestrado. Prestei a seleção, passei em primeiro lugar. Hoje tô no laboratório, na pesquisa, na prática, ajudando no diagnóstico de câncer para hospitais públicos aqui de Fortaleza.

OP - E como é sua rotina hoje?

Leidivan - Puxada, pra dizer o mínimo. A gente fala que faz pós-graduação, mas na prática somos trabalhadores do mestrado e doutorado. A pesquisa no Brasil depende muito da gente — e, muitas vezes, sem reconhecimento, com bolsa que não cobre nem o básico. Acordo, vou pro laboratório, atendo demandas do SUS — ajudamos no diagnóstico de câncer pro Hospital Geral, Hospital São Vicente de Paulo, Hospital César Cals… Fora minha pesquisa, que tá sempre rolando. E, no meio disso tudo, tento achar tempo pra viver também. Porque se não tiver amor pelo que faz, não tem como sustentar.

OP - Você teve apoio de quem nessa caminhada?

Leidivan - Da minha família, da minha noiva, Ellen, que é minha parceira de vida. E também dos meus professores, que até hoje fazem parte da minha trajetória. Destaco muito minha professora Silvia Helena, da EEMTI Poeta Otacílio Colares, que acreditou em mim desde sempre.

OP - Você participa de algum projeto financiado? Isso faz diferença?

Leidivan - Muita. Sou bolsista Capes e nosso projeto tem apoio do CNPq e da Funcap. Sem isso, nem existiria pesquisa no Brasil, essa é a verdade. A gente já luta com muita dificuldade, imagina sem esse suporte?

OP - Você acha que sua história inspira outros jovens?

Leidivan - Olha… não acho que é a minha história que inspira. Acho que são as histórias de tantos como eu. Eu não sou exceção. Fiz o que tinha que ser feito. Trabalhei, estudei, insisti. Não quero ser lembrado como alguém que fez algo extraordinário, mas sim como alguém que fez o certo. Que venceu sendo só um cara comum da quebrada, igual meus irmãos foram pra mim: exemplo de que dá, mesmo que seja muito, muito difícil.

OP - Já te reconheceram por isso?

Leidivan - Na minha antiga escola, sim. E isso já vale muito. Se minha história, de alguma forma, toca um, dois, três alunos, meu coração se enche de felicidade. É saber que, de algum jeito, eu consegui ser uma boa referência pra minha comunidade.

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