Em 30 anos de atividade, o projeto Surf Salva Vidas se tornou um marco na segurança marítima do Ceará. O programa tem como objetivo capacitar surfistas para atuarem como colaboradores no resgate de vítimas de afogamentos no litoral cearense. Ao longo dessas três décadas, o projeto já capacitou mais de 6 mil surfistas em todo o Estado.
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Ofertado pelo Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE), o programa oferece treinamento teórico e prático, ensinando técnicas de resgate com pranchas de surf, identificação do grau de afogamento e aplicação de primeiros socorros.
O curso foi idealizado pelo coronel Ronald Aguiar, com a proposta de que os surfistas se tornassem agentes de segurança aquática. Aposentado há 10 anos, o coronel Ronald conta sobre os desafios iniciais do projeto e suas percepções ao longo destes anos.
O POVO — Como surgiu o projeto Surf Salva Vidas?
Ronald Aguiar — Essa é uma pergunta interessante, pois o projeto foi uma soma de ideias. Na adolescência, eu era surfista e, mesmo não sendo um grande competidor, gostava de pegar algumas ondas. Lembro também que assistia a alguns seriados na TV, como SOS Malibu. Anos depois, cheguei a ver iniciativas semelhantes no Rio de Janeiro e também no Paraná.
Já como aspirante ao Corpo de Bombeiros, levei uma prancha para dentro do quartel como instrumento de trabalho e fui desafiado a mostrar, por A + B, que a prancha era um equipamento adequado. E provei! Mostrei que, de fato, ela é um excelente equipamento de resgate. A partir de então, fomos recebendo as devidas instruções e, alguns anos depois, resolvi estruturar o projeto no papel.
O POVO — O projeto é considerado um marco na segurança marítima do Ceará. Como o senhor avalia a importância dos surfistas no salvamento de banhistas em situação de risco?
Ronald Aguiar — A posição dos surfistas é privilegiada, porque eles ficam além da zona de rebentação, ou seja, a parte onde a onda quebra. Ali, temos uma grande visibilidade, tanto de quem está dentro d’água quanto de quem está nas proximidades. Isso é uma grande vantagem se comparado a quem está na terra, que precisa correr, descer, entrar na água e passar pela rebentação. Então, o surfista tem essa vantagem.
O POVO — Ao longo desses quase 30 anos de atividade, o senhor percebe mudanças no cenário de afogamentos nas praias do Estado?
Ronald Aguiar — Estou há 10 anos na reserva e não tenho acompanhado mais o projeto nem as estatísticas. Mas o que posso dizer é que, através dos surfistas voluntários, conseguimos fortalecer nosso poder operacional no que diz respeito à prevenção dos banhistas.
O POVO — Mas na época em que ainda estava em atividade, o senhor percebeu mudanças nesse cenário?
Ronald Aguiar — Com certeza! Naquela época, tivemos uma aproximação não só com os surfistas, mas também com praticantes de indy. Durante muito tempo, o surfista era rotulado de forma negativa, e essa aproximação foi importante para a sociedade perceber que o surfista era um cidadão de bem. Era um universitário, um advogado, um médico, uma pessoa que, como qualquer outra, praticava um esporte.
Com isso, diminuiu o preconceito e aumentou ainda mais o nosso poder operacional. Foi um ganho para todos: para a comunidade como um todo, para o banhista, para o Corpo de Bombeiros e também para os próprios surfistas, que provaram ser cidadãos e que podiam cooperar.
O POVO — Com relação à aceitação dos surfistas, tanto pela comunidade quanto pelo Corpo de Bombeiros, houve alguma dificuldade?
Ronald Aguiar — Não! Nós não tivemos essa dificuldade. Para o Corpo de Bombeiros foi muito positivo, porque alguns bombeiros já eram surfistas — como é o meu caso — então, internamente, foi muito bem-vindo. E para o público externo, a aceitação também foi tranquila.
O POVO — Quais foram os principais desafios enfrentados nos primeiros anos do projeto?
Ronald Aguiar — Com certeza, o apoio. Tivemos dificuldades para encontrar patrocinadores e pessoas que pudessem divulgar melhor o projeto. Precisávamos de camisas e tínhamos o desejo de realizar campeonatos, e tudo isso tem um custo. Mas, quando os patrocinadores perceberam que podiam divulgar sua marca — como, por exemplo, a Pena — as coisas ficaram mais fáceis.
O POVO — Existe um perfil predominante entre os surfistas que se interessam em participar da iniciativa?
Ronald Aguiar — Não, não existe um perfil pré-definido. É aberto tanto para jovens quanto para adultos, homens e mulheres. É uma proposta bem inclusiva. Nós só temos um perfil ideal: pessoas que realmente tenham vontade de se voluntariar, porque isso é um ato de solidariedade e respeito à vida — uma das maiores características que nós, bombeiros, temos.
O POVO — O projeto também tem um caráter educativo. Como o senhor avalia o impacto da formação preventiva nas comunidades litorâneas?
Ronald Aguiar — Avalio de forma muito positiva, porque, para que possamos entregar um certificado, é necessário que o surfista se comprometa, com uma quantidade mínima de horas-aula e pontualidade. Outra coisa muito importante é o respeito: pelo banhista, pelo instrutor, pelos monitores do Corpo de Bombeiros... Vejo que é uma contribuição muito boa, principalmente para o jovem mais carente, que geralmente chega com certa timidez, mas depois se solta e faz amizade com os outros membros.
Também compartilhamos muito conhecimento sobre o mar, o uso da prancha e os primeiros socorros. Então, o surfista precisa dominar essas técnicas para realizar um salvamento com eficiência. Dessa forma, além de acumular conhecimento, ele contribui diretamente para o bem da sociedade.
O POVO — O Surf Salva Vidas já inspirou iniciativas similares em outros estados ou países?
Ronald Aguiar — Não posso afirmar isso de forma categórica, mas acredito que sim. Existem instituições como a LIGABOM (Liga Nacional dos Corpos de Bombeiros Militares) e a SOBRASA (Sociedade Brasileira de Salvamento Aquático), que é uma certificadora nacional para formação de guarda-vidas e utiliza a prancha como equipamento de salvamento aquático. Acredito que nosso projeto tenha se difundido, mas não sei afirmar com precisão quais outras iniciativas beberam dessa fonte.
O POVO — Como é ver novas gerações dando continuidade ao projeto?
Ronald Aguiar — Fico muito feliz sempre que recebo notícias sobre o andamento do programa. Às vezes encontro alguns jovens na praia e isso me deixa muito contente. É bom saber que, a cada dia, estamos contribuindo para o bem-estar da sociedade. Já recebi homenagens da Assembleia Legislativa e do Corpo de Bombeiros pelos serviços prestados ao projeto.
Hoje mesmo, pensando nessa entrevista, comecei a refletir sobre a possibilidade de voltar a ter contato com a formação dos surfistas. Acho que vocês me inspiraram a acompanhar o projeto mais de perto e a relembrar a minha história. E, quem sabe, até voltar a entrar na água e pegar algumas ondas. Porque o mar é encantador, mas merece muito respeito.