Logo O POVO+
Relatório denuncia tortura e más condições em unidades socioeducativas do Ceará
Farol

Relatório denuncia tortura e más condições em unidades socioeducativas do Ceará

Inspeções ouviu cerca de 200 adolescentes e identificaram situações de insalubridade, violência física e psicológica, hipermedicação e falta de acesso à água potável
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
INSPEÇÃO do CNDH aponta violações estruturais (Foto: Divulgação/CNDH)
Foto: Divulgação/CNDH INSPEÇÃO do CNDH aponta violações estruturais

Inspeções surpresa realizadas em seis unidades socioeducativas do Ceará, na terça-feira, 29, e na quarta-feira, 30, revelaram graves violações de direitos humanos contra adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas. A vistoria foi coordenada pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e integra um relatório que será apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

As inspeções ocorreram nas unidades masculinas Dom Bosco, Patativa do Assaré, Canindezinho, São Francisco e São Miguel, além da unidade feminina Aldaci Barbosa. Cerca de 200 adolescentes foram ouvidos.

A missão envolveu representantes do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), Coalizão Pela Socioeducação, GAJOP (PE), Coletivo Vozes (CE), Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Ceará (CEDDH), Fórum DCA, Visão Mundial (CE), Cedeca Ceará e Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará.

LEIA TAMBÉM | IJF reabre 66 novos leitos, com previsão de funcionamento em até 10 dias

Infraestrutura precária e violações graves

O relatório aponta que muitas unidades são antigas e se assemelham mais a presídios do que a espaços de ressocialização. Dormitórios com aparência de celas, falta de ventilação e infestação por ratos e baratas foram constatadas. Um dos pontos mais graves é a falta de acesso livre à água potável — inclusive para higiene e descarga — sendo necessário solicitar permissão aos agentes, o que caracteriza violação de direitos.

“A condição de humilhação a que os adolescentes estão submetidos no sistema socioeducativo não é algo pontual — é estrutural. Em todas as unidades do estado do Ceará”, afirmou Thaisi Bauer, consultora do Conselho Nacional dos Direitos Humanos.

Coletivo de mães denuncia repetição de violações

Alessandra Félix, pedagoga e coordenadora do Coletivo Vozes — formado por mães de adolescentes em cumprimento de medida — também participou da missão. Ela destaca que, apesar de alguns avanços desde 2013, ainda há violações sistemáticas como o impedimento ao acesso à água e denúncias de retaliação.

“Nos entristece muito reconhecer que, em 2025, ainda vemos violações de direitos, como a falta de acesso à água. Isso é uma repetição do passado. Não dá pra pensar só em unidades de referência para alguns. A política de socioeducação precisa alcançar todos os corpos que habitam ali”, afirmou.

LEIA MAIS | Guerra entre facções: Vicente Pinzón chega ao 12º homicídio em um mês

Casos de tortura e hipermedicação

Foram documentadas situações que configuram tortura, como isolamento por 5 a 7 dias sem colchão, toalha, lençol ou itens básicos de higiene, com alimentação servida em tampas de marmita. Há relatos de marcas de balas de sal disparadas pelo Grupo de Intervenção Tática (GIT) e de agressões físicas cometidas por agentes. A violência psicológica inclui ameaças explícitas: “Os direitos humanos podem vir aqui, mas quem manda aqui é a gente”, relataram adolescentes as entidades na inspeções .

O padrão de hipermedicação também chamou atenção: adolescentes recebem de 6 a 8 comprimidos psiquiátricos por dia, muitas vezes sem atendimento psicológico regular. Em algumas unidades, 80% dos internos fazem uso de medicação contínua.

Mara Carneiro, assistente social da Associação Nacional dos Centros de Defesa (Anced), relatou casos de automutilação entre as meninas. “Elas raspavam a ferrugem das grades e usavam os filetes para se cortar. Isso demonstra o grau de sofrimento psíquico e a ausência de cuidado com saúde mental”, relatou.

As entidades destacaram as seguintes observações:

  • Dormitórios isolados e insalubres (Aldaci Barbosa);
  • Adolescentes com sintomas de doenças sem atendimento;
  •  Vasos sanitários sem descarga;
  •  Infestação de ratos e alimentos servidos em condições precárias;
  •  Homens em plantão noturno na unidade feminina.

Medidas cautelares ignoradas há uma década

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) cobra há dez anos o cumprimento de medidas cautelares pelo Estado brasileiro, aplicadas em 2015 após denúncias de violações em unidades cearenses. Em fevereiro de 2025, a CIDH voltou a solicitar explicações após novos indícios de descumprimento. As peticionárias são Cedeca Ceará, Fórum DCA e ANCED Brasil.

Diego Alves, advogado e conselheiro do CNDH, afirma que, mesmo após condenações internacionais, o Estado ainda não promoveu as mudanças necessárias. “As medidas cautelares da Corte Interamericana não estão sendo cumpridas na prática”, alerta.

Rogério Duarte, perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, foi contundente: “O que vimos foi tortura em sua forma clássica e reiterada. A estrutura física precisa ser demolida, assim como a cultura institucional. Os relatos são graves, os agentes precisam ser responsabilizados e o Estado, cobrado nacional e internacionalmente.”

LEIA MAIS | Influenciadora é denunciada por tentar entrar em penitenciária com drogas escondidas no corpo

Superintendência nega denúncias e destaca avanços no sistema socioeducativo

Procurada pelo O POVO, a Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (Seas) informou, por meio de nota, que “não foi formalmente citada em qualquer relatório ou resultado decorrente da mencionada inspeção”.

A Seas também destacou que o mais recente posicionamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) reconheceu “avanços significativos” no sistema cearense, como a ausência de superlotação, a implementação do Plano Político-Pedagógico em todas as unidades e a adoção de metodologias de Justiça Restaurativa.

Sobre as denúncias de violência institucional, a pasta afirmou manter o compromisso com a apuração rigorosa dos casos, por meio de registros formais, exames de corpo de delito e abertura de processos administrativos. “As sanções aplicadas podem variar desde advertências e afastamentos até demissões e processos penais devidamente instruídos.”

Em relação ao uso excessivo de medicamentos psicotrópicos, a superintendência declarou que “não há, em nenhuma unidade, utilização de medicação sem recomendação e prescrição médica”, e que todas as unidades contam com psicólogos para o acompanhamento técnico dos adolescentes. A Seas também negou a existência de solitárias, alegando que há apenas alas disciplinares previstas em regimento interno e acompanhadas por comissões específicas.

Questionada sobre a presença de homens em plantões na unidade feminina Aldaci Barbosa, a pasta justificou a medida pela “existência de adolescentes trans na unidade”, informando que os acompanhamentos seguem o gênero dos internos. Também afirmou que “não há registros ou relatos de assédio moral ou sexual” e que a unidade é regularmente inspecionada por órgãos como o Ministério Público, o Judiciário e a Defensoria Pública, “sem apontamentos nesse sentido”.

Por fim, a superintendência informou que está em andamento a construção de um novo Centro Socioeducativo feminino, com investimento de R$12 milhões, além da convocação de 164 novos profissionais e da previsão de R$ 3,4 milhões em melhorias de infraestrutura para 2025. (Colaborou Alice Barbosa)

ERRAMOS: diferente do que foi publicado anteriormente, o relatório não apontou superlotação nas unidades socioeducativas

O que você achou desse conteúdo?