Em encontro que reúne organizações sociais, autoridades, pesquisadores e adolescentes, Fortaleza sedia até a próxima sexta-feira, 26, o Seminário Nacional e Internacional sobre Boas Práticas para a Proteção de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua. O evento, promovido pela Associação O Pequeno Nazareno, teve abertura nesta quarta-feira, 24, no auditório Murilo Aguiar, na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece).
O seminário pretende promover diálogo, troca de experiências e fortalecimento de redes de proteção, compartilhando metodologias e boas práticas voltadas à proteção de crianças e adolescentes em situação de rua.
Manoel Torquato, coordenador da associação, destacou a relevância do seminário e chamou atenção para a falta de dados sobre o tema no Brasil. “Não existem estatísticas no Censo brasileiro sobre a quantidade de pessoas em situação de rua”, afirmou.
Segundo ele, há políticas públicas desenhadas – como Centros POP, Consultórios na Rua e programas de habitação popular – mas ainda em número insuficiente. “O problema começa na habitação e no acesso a uma moradia digna, seguido da inserção no mercado de trabalho. (…) Precisam de esforços articulados entre governos em diversas áreas – assistência, habitação, trabalho, cultura, lazer, esporte e educação”, completou.
Para Torquato, o evento é também um ato de denúncia sobre a realidade da infância e adolescência em situação de rua, com a presença de representantes da ONU e expectativa de repercussão internacional. “Nossa Constituição garante prioridade absoluta à infância, e crianças não podem viver desprotegidas, sem amparo de políticas públicas”, reforçou.
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Dados do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), divulgados em abril, apontam que Fortaleza registra 9.952 pessoas em situação de rua cadastradas no CadÚnico. A capital cearense ocupa o quarto lugar entre as cidades brasileiras com maior número de pessoas nessa condição.
Entre as pautas prioritárias, o coordenador citou a garantia do direito à moradia como ponto de partida para a cidadania. “Há um programa muito conhecido no mundo, mas pouco desenvolvido no Brasil, chamado Housing First (‘Moradia Primeiro’). Hoje, muitas crianças estão nas ruas com suas famílias, e o Estado prefere abrir vagas de acolhimento. O acolhimento é importante, mas é provisório e não garante moradia permanente nem contempla famílias inteiras”, pontuou.
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Já Anderson Miranda, coordenador-geral do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Ciamp-Rua Nacional), destacou os desafios institucionais do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no acompanhamento dessa realidade.
“Nosso entendimento é de que o Estatuto precisa ser atualizado. Propomos uma revisão de artigos para garantir proteção específica às crianças e adolescentes em situação de rua. Caso contrário, a lei continua não assegurando os direitos de quem mais precisa”, afirmou.
Um dos destaques do seminário é a participação direta de adolescentes em mesas de debate e oficinas. Entre eles está Isaac da Silva Barros, 16 anos, estudante e jovem aprendiz como auxiliar administrativo no CEI Jesus Cristo, no Jardim Iracema. Ele conheceu a organização Pequeno Nazareno por meio de amigos e destacou a importância de contribuir com ideias em um evento voltado para a proteção de crianças e adolescentes em situação de rua.
“Acho importante para que a gente possa trocar ideias, dar opiniões e discutir melhorias, tanto para a galera da periferia como de outros bairros e regiões. É um espaço para pensar em mudanças”, contou.
Outra história marcante apresentada no encontro foi a de Nilton Policena, 46 anos, que viveu por 10 anos nas ruas de Porto Alegre. A experiência o motivou a se tornar assistente social, profissão que exerce atualmente. Ele relembrou a infância perdida no ciclo de vulnerabilidade e violência.
“Minha resiliência não é só para mim. Eu queria que minha história pudesse representar muitos outros que passaram ou ainda passam pela rua. O movimento social é o que me mantém firme para não voltar. Porque, através da luta, mesmo pessoas que eu nunca vou conhecer, são beneficiadas — seja com um espaço de acolhimento, um consultório na rua, uma cozinha solidária. Isso dá sentido à caminhada”, declarou.
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A iniciativa conta com o apoio da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania (CDHC) da Alece e da Câmara Municipal de Fortaleza, além de ser realizada em parceria com a Rede Nacional Criança Não é de Rua (CNER), a Rede Internacional pela Defesa de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua (Ridiac) e a própria organização O Pequeno Nazareno (OPN).
Entre os temas levantados no seminário, destacou-se a relação entre famílias em situação de rua, vulnerabilidade agravada pela faccionalização e a necessidade de políticas públicas específicas para crianças. O deputado estadual Renato Roseno (Psol-CE) reforçou a urgência de fluxos de atendimento e políticas integradas.
“É urgente criar fluxos de atendimento para garantir moradia, restabelecimento de vínculos e construção de saídas. Assim como em 1988 afirmamos que criança não é de rua, precisamos reafirmar isso agora e desconstruir a estigmatização que criminaliza crianças que acabam nas ruas por conta das violências sofridas”, destacou.
Outra autoridade presente foi Pablo Bassi, membro da Red Internacional por la Defensa de la Infancia y Adolescencia en Situación de Calle (Rede Internacional de Defesa de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua). Ele atua em uma rede que reúne organizações de diversos países da América Latina, incluindo Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, México, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai.
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Bassi ressaltou a escassez de dados sobre a prevalência dessa vulnerabilidade na maioria dos países da região e destacou a importância de se chegar a um consenso sobre a definição de “crianças e adolescentes em situação de rua”. Ele enfatizou que não se trata apenas de quem pernoita nas ruas, mas também daqueles que realizam práticas de sobrevivência para obter recursos básicos, como alimentação e proteção contra a violência.
“É fundamental que as organizações trabalhem em conjunto para abordar problemas complexos, como a situação de crianças e adolescentes em situação de rua, que exigem a transformação de situações de extrema vulnerabilidade.”
No último dia do seminário, 26, estão programadas a leitura da Carta de Reivindicações da Ridiac e da Carta de Reivindicações das Crianças e Adolescentes da América Latina e Caribe, reforçando a centralidade da voz da juventude na construção de políticas públicas.
Colaborou Gabriele Félix/O POVO