O Chile tem um novo presidente eleito. O deputado e ex-líder estudantil Gabriel Boric, 35, venceu o segundo turno no país andino ao derrotar o opositor de extrema direita, o advogado José Antonio Kast, também chamado de “Bolsonaro chileno”. Com cerca de dois terços das urnas apuradas, Kast reconheceu a derrota na noite de ontem e ligou para Boric parabenizando-o pela vitória.
Com 99,9% de urnas apuradas até às 22 horas desse domingo, 19, Boric tinha 55,87% dos votos válidos contra 44,14% de Kast. “Acabo de falar com Boric e o felicitei pelo grande triunfo. Desde hoje é o presidente eleito do Chile e merece nosso respeito e colaboração construtiva”, escreveu Kast ao reconhecer a derrota irreversível.
Quando tomar posse, em março de 2022, Boric será mais um governante de espectro mais à esquerda a assumir o poder na América do Sul. No ano que vem, o cenário na região terá Argentina, Bolívia, Chile, Peru e Venezuela com governos mais à esquerda, enquanto Brasil, Colômbia, Equador, Paraguai e Uruguai terão gestões mais à direita. Novas eleições presidenciais estão previstas no Brasil e na Colômbia no próximo ano.
É importante ressaltar que no Chile o voto é facultativo. Apesar da alta abstenção, com 45% dos 15 milhões de eleitores aptos a votar não indo às urnas, em números absolutos foi a maior participação desde a redemocratização: 8,3 milhões de chilenos votaram. No primeiro turno, em novembro, 7,1 milhões foram às urnas. Em porcentagem, 55% de eleitores, é a maior presença desde 2009.
Com a vitória de Boric, o Chile deve ampliar a agenda de transformações sociais exigidas na onda de protestos iniciada em outubro de 2019, também chamada de "estallido social". Boric foi voz ativa na campanha pela redação de uma nova Constituição. A atual Carta Magna, bem como o modelo político-econômico, é uma herança da época da Ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990) que ao longo dos anos agravou desigualdades.
Presidentes da Argentina, Alberto Fernández (esquerda), e da Colômbia, Iván Duque (direita), felicitaram Boric. O argentino falou em “fortalecer os laços de fraternidade que unem os países", enquanto o colombiano expressou o desejo em continuar trabalhando juntos para “fortalecer a relação bilateral histórica” entre Colômbia e Chile.
No Brasil, até o fechamento desta página, o presidente Jair Bolsonaro (PL) não se manifestou - nem era esperado que o fizesse -, No entanto os presidenciáveis Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Ciro Gomes (PDT) celebraram a vitória do candidato da esquerda chilena em seus perfis nas redes sociais.
Lula disse estar “feliz por mais uma vitória de um candidato democrata e progressista na América Latina”. Ciro afirmou que "todos os democratas do mundo têm o que festejar com a vitória de Boric" e que seu triunfo afugentou o “perigo de mais uma mancha da extrema-direita no mapa da democracia mundial”.
O agora presidente eleito do Chile defende bandeiras que envolvem a legalização do aborto e do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Além de políticas sociais para diminuir desigualdades históricas.
Na religião, Boric declarou-se agnóstico e disse que respeita todas as expressões de fé. Foi a primeira vez nas eleições presidenciais, desde a redemocratização, que o candidato melhor colocado no primeiro turno chileno não terminou como vencedor no segundo turno.
O novo governo assumirá o comando do Chile em março e encontrará pela frente uma série de desafios: a unificação do país, após uma campanha marcada pela polarização, a inflação e a implementação das regras da nova Constituição chilena, que começou a ser elaborada este ano e pode entrar em vigor em 2022
Boric defendeu em sua campanha um Estado de bem-estar com atenção especial às pautas feminista, ambientalista e regionalista. Kast levantava as bandeiras da redução do Estado e dos impostos, do combate à migração irregular.
De olho em conquistar os eleitores de centro, os dois candidatos vinham buscando moderação desde o fim do primeiro turno. "Boric adotou parte do discurso de Kast sobre 'ordem social' e teve que mudar o conceito de 'refundação', com o qual trabalhava, para o de 'reforma', com uma orientação mais social-democrata", afirma o sociólogo do Centro de Estudios Publicos Aldo Mascareña. "Kast, por sua vez, foi orientado a oferecer garantias de que os direitos conquistados no Chile não recuariam, mantendo sua ênfase na segurança."
Essa moderação pode ajudar a conquistar a governabilidade e unir o país. Boric não terá apoio suficiente para garantir maioria simples na Câmara dos Deputados. A aliança Aprovo Dignidade, pela qual se elegeu, alcançou apenas 37 cadeiras, bem abaixo dos 55 deputados necessários para garantir maioria simples.
O bloco Fuerza Social Cristiana, que apoiou a candidatura de Kast, conquistou apenas 15 cadeiras, e só poderia governar se construísse alianças com o Chile Podemos Más, dono de 53 cadeiras. Boric terá o desafio de conquistar o eleitorado chileno que não manifestou apoio nem à sua candidatura nem à de Kast.
A inflação será outro grande problema. O país está sob pressão há meses e o orçamento das famílias começa a ser atingido. O Índice de Preços ao Consumidor (IPC) do Chile subiu 0,5% em novembro, acumulando 6,3% neste ano e 6,7% em 12 meses, seu maior valor desde dezembro de 2008.
A implementação da nova Constituição também pode ser um dilema. Com possibilidade de entra em vigência ainda em 2022, ela irá condicionar o mandato do próximo presidente, que começara a governar com as normas atuais, mas será responsável pelas novas normas e fazer uma transição no país. Seu texto pode inclusive tornar o governo provisório ou modificar sua forma, passando do atual regime presidencial para um semipresidencialista.
A Convenção Constitucional que redige a nova Carta Magna é de maioria progressista. Embora Boric esteja mais alinhado aos valores da Convenção, ele também deve ter dificuldades para conciliar as coisas, diz Kenneth Bunker, analista político e fundador do site TresQuintos.
"A Convenção está mais à esquerda que Kast, mas também está mais à esquerda que Boric", afirma. "Ela é muito semelhante ao programa de Boric no primeiro turno, mas seu novo programa, apresentado para o segundo turno e trabalhado para mostrar moderação, o posicionou mais ao centro."