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Quando a geopolítica é protagonista na Copa do Mundo
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Quando a geopolítica é protagonista na Copa do Mundo

Maior evento do futebol é recheado de histórias em que o esporte serve como pano de fundo para questões que transcendem as quatro linhas
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O goleiro nº 23 da Sérvia, Vanja Milinkovic-Savic, segura o meio-campista nº 10 da Suíça, Granit Xhaka, pela garganta durante a partida de futebol do Grupo G da Copa do Mundo do Catar 2022 entre a Sérvia e a Suíça no Estádio 974 em Doha em 2 de dezembro de 2022 (Foto: MANAN VATSYAYANA / AFP)
Foto: MANAN VATSYAYANA / AFP O goleiro nº 23 da Sérvia, Vanja Milinkovic-Savic, segura o meio-campista nº 10 da Suíça, Granit Xhaka, pela garganta durante a partida de futebol do Grupo G da Copa do Mundo do Catar 2022 entre a Sérvia e a Suíça no Estádio 974 em Doha em 2 de dezembro de 2022

Irã e Estados Unidos, que se enfrentaram na última terça-feira, 29, no Catar, marcaram a Copa do Mundo de 1998 com cenas de fraternidade entre os jogadores dos dois países rivais. Ontem, apesar da tradicional e histórica neutralidade da Suíça, a partida contra Sérvia foi rodeada de tensão no aspecto geopolítico por questões envolvendo o país dos Balcãs e imigrantes kosovares da seleção suíça.

Principal evento de futebol do planeta, a Copa do Mundo não raramente costuma ser marcada também por episódios em que esporte e política se misturam. Histórias em que o campo e a bola às vezes servem mais como plano de fundo para outras disputas em questões nacionais, ideológicas ou até mesmo bélicas vêm à tona. A seguir, outros momentos em que a geopolítica foi protagonista em Copas:

1938: França x Itália

Em um contexto geopolítico muito tenso, com o fascismo na Europa, a França organizou a terceira Copa do Mundo da história. Em 12 de junho, a seleção francesa disputou as quartas de final contra a Itália no estádio Colombes, com vitória dos visitantes por 3 a 1.

Os italianos vestiram uma camiseta preta, semelhante à dos milicianos do regime de Benito Mussolini, e fizeram uma saudação fascista aos 60 mil espectadores. O público respondeu vaiando ruidosamente o hino italiano.

Para Mussolini, o futebol sempre foi uma forma de mostrar a superioridade da ideologia fascista. A Itália chegou à final daquela Copa e conquistou o seu segundo Mundial consecutivo.

1974: Alemanha Ocidental x Alemanha Oriental

Em 22 de junho, a Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental se enfrentaram no Wolksparkstadion, em Hamburgo, lotado. Em plena Guerra Fria, esse confronto mostrou a tensão entre os dois blocos. Mas não deveria haver incidentes: os dois países estavam em processo de normalização de relações e assinaram um tratado de reconhecimento mútuo em 1972.

O duelo, considerado arriscado, ocorreu sem grandes contratempos. A Alemanha Oriental surpreendeu os donos da casa e venceu por 1 a 0, graças a um gol nos 15 minutos finais de Jürgen Sparwasser, que entrou para a história como aquele que deu a vitória ao bloco Oriental. No entanto, foi a Alemanha Ocidental quem chegou à final da competição e conquistou seu segundo Mundial.

1986: Argentina x Inglaterra

No dia 22 de junho, Argentina e Inglaterra se enfrentaram pelas quartas de final no México, quatro anos depois da Guerra das Malvinas, que matou 649 argentinos e 255 britânicos. O clima foi muito tenso entre as duas seleções, cujos países haviam cortado relações diplomáticas desde 1982.

Em cada partida ao longo do torneio, torcedores argentinos exibiram faixas com os dizeres "as Malvinas são argentinas" e entoaram cânticos nacionalistas pedindo "morte aos ingleses". À margem da partida, confrontos entre torcedores dos dois lados deixaram dezenas de feridos.

A Argentina venceu o jogo, em grande parte graças a Diego Maradona, autor de dois gols lendários: a “mão de Deus” e o “gol do século”. O mito do futebol argentino declarou: "Foi uma final para nós. Não se tratava de ganhar uma partida, tratava-se de eliminar os ingleses".

1998: Irã x Estados Unidos

Em sua segunda participação em uma Copa do Mundo, o Irã caiu em 1998 no grupo dos Estados Unidos, seu grande inimigo. As relações diplomáticas entre os dois países foram rompidas desde a tomada de reféns na embaixada dos Estados Unidos em Teerã, após a Revolução Iraniana de 1979.

O confronto, em 21 de junho em Lyon, foi uma oportunidade para acalmar as coisas. Após os hinos nacionais, os jogadores americanos apertaram as mãos de seus rivais e entregaram flâmulas a eles. Cada um recebeu, em troca, um buquê de rosas brancas. Os jogadores de ambas as equipes posaram para uma foto juntos. Os iranianos venceram o jogo por 2 a 1, conseguindo a primeira vitória num Mundial.

No reencontro entre as seleções na última terça-feira, 29, no Catar, os americanos venceram por 1 a 0, se classificaram às oitavas de final da Copa de 2022 e eliminaram os iranianos. A partida ocorreu no contexto dos protestos em Teerã contra a repressão do regime às liberdades das mulheres no país.

2018: Suíça x Sérvia

Em 22 de junho em Kaliningrado, a Sérvia jogou contra a Suíça, que conta até hoje com vários jogadores de origem kosovar.

O Kosovo é uma ex-província da Sérvia, povoada principalmente por albaneses, que declarou sua independência em 2008. Não é reconhecido pela Sérvia e as relações entre Belgrado e Pristina são péssimas.

Granit Xhaka, nascido na Suíça de família kosovar, e Xherdan Shaqiri, que nasceu no Kosovo, marcam um gol cada, levando a seleção suíça à vitória sobre a Sérvia por 2 a 1. Os dois jogadores comemoram imitando com as mãos a águia da bandeira albanesa, um gesto de apoio ao Kosovo, provocando a ira da imprensa sérvia, que denuncia uma "provocação vergonhosa". Os atletas receberam uma sanção da Fifa, uma multa de 8.660 euros cada.

Ontem, Sérvia e Suíça se reencontraram no Catar. Dentro de campo, os jogadores das duas seleções voltaram a se estranhar. Primeiro após Shaqiri marcar e provocar a torcida sérvia pedindo silêncio.

Em outro momento, foi a vez de Xhaka estar em bate-boca com os sérvios que estavam no banco de reservas. O suíço fez gestos obscenos para os rivais que ameaçaram entrar em campo. Após discussão intensa, as tensões dissiparam e a partida seguiu. No fim, a Suíça voltou a vencer por 3 a 2, conseguiu classificação às oitavas de final da Copa e eliminou a Sérvia do Mundial

FORTALEZA, CEARA, BRASIL, 24.11.22: Estreia da |Seleção na Copa do Mundo, Moradores do Bairro Passare se juntaram para fazer a festa na estreia da seleção na Rua E. (Aurelio Alves/ O POVO)
FORTALEZA, CEARA, BRASIL, 24.11.22: Estreia da |Seleção na Copa do Mundo, Moradores do Bairro Passare se juntaram para fazer a festa na estreia da seleção na Rua E. (Aurelio Alves/ O POVO)

Apesar dos pedidos de boicote, Copa mantém apelo na TV

Da França ao Japão, passando pelos Estados Unidos, as audiências televisivas da Copa do Mundo no Catar continuam consideráveis, apesar dos apelos ao boicote e da programação de outono (no hemisfério norte) da competição.

"A Copa sempre é muito popular", comemorou na semana passada a Fifa, ao analisar as audiências da partida de abertura da competição entre Catar e Equador, em alta em alguns país em relação à Copa da Rússia de 2018.

Foi o caso em países como Brasil (24,3 milhões de telespectadores de média, +6%), Reino Unido (6,3 milhões, +57,5%), Colômbia (5,5 milhões, aumento não informado) ou França (5,1 milhões, +30%).

No entanto, a competição tem gerado inúmeros questionamentos desde dezembro de 2010, quando o Catar foi escolhido como sede, em grande parte devido ao desrespeito dos direitos humanos ou da proteção do meio ambiente no país.

Mas, em tempos de queda de espectadores da TV, uma mídia que sofre com a popularidade crescente do conteúdo produzido na internet, "os grandes eventos esportivos permanecem entre os últimos em nível planetário" com caráter unificador, analisou Christophe Lepetit, do Centro de Direito e Economia do Esporte de Limoges, na França.

Esta afirmação, que se comprova a cada Copa do Mundo ou Eurocopa, "não foi desmentida este ano", completou o economista.

"Fora de casa"

Na França, onde os 'Bleus' contaram com uma audiência entre 11 e 13 milhões de telespectadores para seus dois primeiros jogos, "claramente não há qualquer efeito de boicote", garantiu Philippe Bailly, do escritório NPA Conseil.

No entanto, estes números, próximos aos de 2018, têm nuances, alertou Christophe Lepetit, indicando que são proporcionalmente inferiores se for levada em conta toda a população que estava em frente à televisão.

Na Espanha, mais de 11 milhões de telespectadores acompanharam a partida da seleção nacional contra a Alemanha, o que representa "o programa mais visto do ano entre todas as emissoras" do país, segundo a televisão pública TVE.

Tetracampeã mundial, a Alemanha sofre, no entanto, de uma inusitada desilusão por parte de seus torcedores. Em 2018, seus três primeiros jogos tiveram, em média, mais de 26 milhões de telespectadores no país, contra 9 milhões este ano na derrota para o Japão e 17 milhões no empate contra a Espanha.

As razões são diversas: revelações sobre as condições de vida dos trabalhadores estrangeiros no Catar e as violações dos direitos humanos no país minaram o interesse do público alemão antes do início da competição. Alguns grupos de fãs mais ativos até pediram um boicote da competição.

Momento único

Em escala continental, de acordo com cálculos da revista francesa Challenges, somente 54 milhões de europeus assistiram ao primeiro jogo de sua seleção, contra 94 milhões em 2018.

Mas as comparações de uma Copa do Mundo para outra devem ser feitas com cautela, pois os números podem variar dependendo do horário ou dia das partidas.

Para Christophe Lepetit, isto "se insere em um contexto mais global de diminuição do consumo televisivo deste tipo de programas", com os jogos mais interessantes concentrando picos de audiência e os melhores momentos podendo ser vistos pela internet.

Já África, América do Sul e Ásia se afirmam como "mercados que exigem conteúdo futebolístico de alto nível", não necessariamente envolvidos nos "debates relacionados a boicote", mais ocidentais.

Parece mais difícil que esses torcedores desdenhem "do único momento" em que suas seleções "enfrentam os melhores jogadores do mundo".

No Japão, o público foi incentivado pelas surpreendentes vitórias dos 'Samurais Azuis' por 2 a 1 sobre Alemanha e Espanha. Apesar do horário tardio, a partida teve 35,3% de audiência média na região de Tóquio, de acordo com a Video Research.

Do outro lado do mundo, o jogo entre Estados Unidos e Inglaterra registrou recorde de audiência para um jogo de futebol masculino nos Estados Unidos, com mais de 15 milhões de espectadores em média, segundo a Fox Sports.

O atacante número 10 do Brasil, Neymar, caminha com um tornozelo inchado no final da partida de futebol do Grupo G da Copa do Mundo do Catar 2022 entre Brasil e Sérvia no Lusail Stadium em Lusail, norte de Doha, em 24 de novembro de 2022.
O atacante número 10 do Brasil, Neymar, caminha com um tornozelo inchado no final da partida de futebol do Grupo G da Copa do Mundo do Catar 2022 entre Brasil e Sérvia no Lusail Stadium em Lusail, norte de Doha, em 24 de novembro de 2022.

"Haters de Neymar": polarização brasileira respinga na Copa do Catar

Normalmente, uma lesão sofrida pela estrela da seleção nacional seria uma má notícia para os torcedores de futebol de qualquer país do mundo. Mas, mesmo enquanto esperavam angustiados para que um Brasil sem Neymar marcasse contra a Suíça na última segunda-feira, 28, alguns brasileiros ficaram tristes por sentirem falta do camisa 10 da seleção, irritados com o fato da estrela da equipe ter prometido dedicar seu primeiro gol na Copa do Mundo para o presidente de Jair Bolsonaro.

O estudante de Direito Henrique Melo, 23 anos, explicou o dilema, enquanto assistia ao jogo em um bar lotado no centro do Rio de Janeiro.

"Ele faz falta", afirmou Melo, que vestia com orgulho a camisa do Brasil, rodeado de torcedores que, como ele, esperavam com nervosismo pelo que acabou sendo o único gol da partida, marcado pro Casemiro aos 38 minutos do segundo tempo.

Como apaixonado por futebol, o estudante torce desesperadamente para que Neymar se recupere da lesão de tornozelo sofrida na estreia do Brasil na Copa, na vitória sobre a Sérvia por 2 a 0.

Ao mesmo tempo, Melo afirmou que o fato do camisa 10 da seleção ter jogado apenas a estreia e ainda não ter marcado na competição "foi o melhor resultado do Brasil na Copa do Mundo" para evitar uma situação em que os "apoiadores de Bolsonaro pudessem dizer: estamos ganhando".

"Como pessoa, Neymar é um cara que deixa muito a desejar. Como jogador é incrível, é um artista", completou Melo.

Na praia de Copacabana, onde uma multidão se reuniu para acompanhar a partida em um telão, a vendedora Tainara Santana, de 29 anos, sentia o mesmo dilema.

"Eu gosto de futebol, então eu quero que ele jogue porque eu sei que ele joga bem. Mas eu não fiquei triste porque ele não marcou não. Fiquei feliz. O Neymar se ferrar é muito bom", afirmou rindo.

Com milhões de seguidores nas redes sociais, Neymar é um dos maiores nomes do esporte no planeta, mas sua magia com a bola nos pés muitas vezes é ofuscada por causa de atitudes polêmicas.

Dentro de campo, os críticos acusam o atacante do PSG, de 30 anos, de simular faltas ao se jogar excessivamente ao chão e de não aparecer nos momentos decisivos. Fora dele, Neymar foi acusado de ser pouco profissional, de sonegação fiscal e de ter um comportamento que não condiz com sua fama e relevância social.

"Ele é um babaca", afirmou Santana. "não só pelo posicionamento político dele, por vários motivos. Eu acho ele meio machista, eu acho ele egoísta. Ele não é nada humilde".

"A que pontos chegamos?"

A campanha do Brasil para conquistar o hexacampeonato mundial ocorre logo após as polarizadas eleições presidenciais de outubro. Neymar apoiou publicamente Bolsonaro contra Lula e se tornou em alvo de um exército de "haters" nas redes sociais.

No fim de semana, "Foda-se o Neymar" se tornou uma das principais tendências do Brasil no Twitter. O ex-atacante Ronaldo "Fenômeno" rapidamente saiu em defesa de Neymar no domingo.

"Você é foda, @neymarjr! Gigante!", escreveu no Instagram o ex-camisa 9 da Seleção, campeão do mundo em 1994 e 2002.

"É também por isso, por ter chegado aonde chegou, pelo sucesso que alcançou, que tem que lidar com tanta inveja e maldade. Num nível de comemorarem a lesão de uma estrela como você, com uma história como a sua. A que ponto chegamos?", questionou Ronaldo, que incentivou Neymar a fazer com que "todo o ódio vire combustível."

Casemiro e Raphinha, companheiros de Neymar na seleção brasileira, também saíram em defesa do companheiro, afirmando que Neymar não merece os ataques virtuais que recebe.

Sem Neymar em campo, o Brasil teve problemas no passado, principalmente na histórica derrota por 7 a 1 para a Alemanha, pelas semifinais da Copa do Mundo de 2014. Na época, o atacante não foi a campo por causa de uma lesão nas costas sofrida na partida anterior, em Fortaleza, contra a Colômbia..

Em Copacabana, Charleo Luis, eleitor de Lula, preferiu manter política e futebol separados. Os "haters" de Neymar "são os babacas que não entendem de futebol", afirmou o vendedor ambulante de 24 anos.

"Se ele é Bolsonaro ou se o outro é Lula, não importa. Sou fã do Neymar desde criança, sempre fui fã dele, eu luto pela recuperação dele", continuou.

A Copa do Mundo "é um momento para animar o Brasil juntos, como uma grande família", concluiu Luis.

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